Rónai, leitor de Rosa
“Só o Paulo Rónai e o Antônio Cândido penetraram nas primeiras camadas do derma; o resto flutuou sem molhar as penas”, escreveu Guimarães Rosa ao Embaixador Antônio Azeredo da Silveira, em carta datada de 25 de setembro de 1946, como registra a filha Vilma no livro “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, de 1999. A passagem do tempo, naturalmente, ampliou a lista dos ‘leitores qualificados’ do legado rosiano, auxiliando imenso público, no Brasil e no exterior, na fascinante jornada pela sua obra, como fizeram, com inegável talento, Benedito Nunes, Alfredo Bosi, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galvão e Davi Arrigucci Jr., entre outros.
O valor das reflexões de seus ‘leitores pioneiros’, no entanto, permanece intacto. Eles ainda são capazes de iluminar as perspectivas de interpretação de Rosa e de oferecer, até hoje, chaves fundamentais à compreensão do universo por ele criado. Originalmente publicado na revista “Diálogo”, em 1957, “O sertão e o mundo”, de Cândido, depois rebatizado como “O homem dos avessos”, é exemplo que comprova tal afirmação, assim como outro de seus ensaios, “Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa”, de 1965.
Além de acurado analista da obra de Rosa, Paulo Rónai, por sua vez, é mais: foi prefaciador, editor e um de seus melhores amigos, alguém com quem o escritor manteve, ao longo da vida, várias afinidades. Como relembra Eneida Maria de Souza, professora emérita da UFMG, no artigo “A Hungria/sertão de Guimarães Rosa”, ‘(…) filólogo e escritor cultivavam o amor da língua, não se restringindo aos idiomas maternos, mas se expandindo por outros de procedências diversificadas. Rónai ocupará na divulgação da obra de Rosa lugar de destaque, prefaciando em 1962 “Primeiras estórias” e sendo responsável pela publicação póstuma de “Ave, palavra” e “Estas estórias”. A prática tradutória, de âmbito literal em Rónai, é assumida metaforicamente por Rosa, na sua poética revolucionária e transgressora, ao condensar e inventar palavras de origens diferentes’.
A contribuição de Rónai à leitura de Rosa, antes dispersa, agora surge disponível, integralmente, em “Rosa & Rónai – o universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador” (Bazar do Tempo, 304 páginas). Organizada por Ana Cecília Impellizieri Martins – que também assina a excelente biografia do intelectual húngaro, “O homem que aprendeu o Brasil – a vida de Paulo Rónai” (Editora Todavia, 384 páginas)- e por Zsuzsanna Spiry, a edição reúne as ideias que Rónai desenvolveu, por três décadas, sobre os livros do imortal de Cordisburgo e ainda inclui uma útil tabela sobre a sua produção relativa a Rosa. Uma breve biografia e a bibliografia básica do crítico húngaro encerram a obra, que também é um eficiente guia para quem quiser conhecer melhor as tramas engendradas pelo gênio de “Grande Sertão: veredas”.
É o que evidencia o texto de Samuel Titan Jr., encarregado de abrir o volume. Começando por destacar a trajetória invulgar de Rónai, o professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP salienta a sua vocação para a vida literária, manifestada desde muito cedo, em seu país de origem, e a fidelidade a ela ao longo de toda a sua biografia, mesmo depois de se ver obrigado a fugir dos nazistas que dominavam a Europa, no começo dos anos quarenta, para tentar a sobrevivência num território completamente desconhecido. Premido pela necessidade de seguir adiante, disposto a superar todos os obstáculos, Rónai refaz a sua realidade na terra estrangeira. Renascendo brasileiro, integra-se de corpo e alma ao território responsável por acolhê-lo. Como é sabido, com incrível talento para a amizade, cria e cultiva laços com importantes nomes da vida cultural brasileira, como Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda e Cecília Meireles. Incansável, apaixonado por idiomas (trabalhava bem com cerca de nove) e leitor voraz, se afirma como professor, ensaísta, crítico, editor e tradutor, facetas que terminam por alçá-lo à condição de ‘leitor ideal’ de Rosa, na visão de Titan Jr..
A aproximação entre Rónai e o autor surge motivada por uma questão que aquele precisava resolver no Itamaraty, e permanece sólida até a morte do mineiro, em 1968, três dias depois de sua posse na Academia Brasileira de Letras, onde fora recebido por Afonso Arinos de Melo Franco. Como enfatiza Zsuzsanna Spiry, citando frase de Rónai, logo no parágrafo de abertura do texto “Nas veredas da amizade”, que sucede o de Titan Jr.: “Não estava preparado para sobreviver a Guimarães Rosa”. Outra a sublinhar os vários pontos que ligavam Rosa a Rónai, Spiry investiga a natureza da identificação intelectual entre eles, nomeando-a de ‘mútuo apreço de espíritos’, não sem lembrar como ela se materializava: ‘com o tempo, os textos críticos de Paulo Rónai passaram a integrar todas as edições dos livros de Guimarães Rosa, como prefácio, posfácio ou nota explicativa’.
O texto publicado por Rónai no “Diário de Notícias” em 11 de julho de 1946 figura em lugar de destaque no livro, e dá bem a dimensão que a pena do crítico foi capaz de conferir à estreia de Rosa, em “Sagarana”. Nele, o escritor é apontado como ‘o autor regionalista de uma obra cujo conteúdo universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo’. Premonitório, Rónai diz que Rosa – vocação épica de excepcional fôlego – ‘dar-nos à decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais à vontade’. Na conclusão, ressalta o quanto Rosa ‘não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária”.
Uma década depois, em 10 de junho de 1956, Rónai assina “O segredo de Guimarães Rosa” no jornal “O Estado de S.Paulo” e, sob o título de “Rondando os segredos de Guimarães Rosa”, o mesmo texto, no “Diário de Notícias”. É quando escreve sobre “Corpo de Baile”, oportunidade em que chama o autor de ‘inventor de abismos’: ‘Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro. Nas obras de Guimarães Rosa, tais sentimentos plasmam a mente de personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia’.
É de 16 de dezembro de 1956 o texto em que Rónai saúda, finalmente, o aparecimento do grande romance pelo qual aguardava, desde “Sagarana”. Originalmente publicado no “Diário de Notícias”, é quando o crítico definitivamente consagra o escritor, por conta de “Grande Sertão: veredas”: ‘Em redor de um mito universal, Guimarães Rosa conseguiu edificar uma obra de valor universal com elementos indígenas. O seu Riobaldo, esse Fausto sertanejo, entre inculto mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista dos acontecimentos de sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as contingências do ser – o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte – e relata-as com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo, reinventando as explicações dos filósofos numa formulação pitoresca e ingênua’.
As observações de Rónai sobre “Primeiras Estórias”, “Tutaméia (terceiras estórias)”, “Estas estórias” e “Ave, palavra” também integram o livro, que já nasce indispensável a toda biblioteca rosiana, numa bela e necessária celebração do diálogo entre duas personalidades que foram capazes de recriar, cada uma a seu modo, mas sempre magistralmente, e em favor da Literatura, o mundo que lhes coube viver. Como não ler?
Rogério Faria Tavares – Jornalista. Doutor em Literatura. Presidente da Academia Mineira de Letras.