Cultura

Repetição de preposição | José Augusto Carvalho

Uma regra pouco conhecida, porque tácita, recomenda que se repitam, antes de cada complemento, as preposições a, com, de, em, para e por, sobretudo. A razão é simples: se a preposição não se repetir, o sentido pode mudar. Ex.:  a frase “Maria saiu com João e você também” significa que “você também saiu com João”. Mas na frase “Maria saiu com João e com você também”, o que se quer dizer é que “Maria também saiu com você”.

 

Às vezes, a omissão da preposição, isto é, o fato de se não repetir a preposição pode resultar no oposto do que se pretendia dizer. Em A Tribuna (ES) de 02-04-2011, p. 47, sob a manchete “Governo líbio recusa oferta de cessar fogo”, lê-se: “O governo dos Estados Unidos reforçou ontem que no final de semana irá parar de disparar mísseis Tomahawk e lançar ataques aéreos contra as forças de Kadafi.” O que a notícia diz é que o governo americano vai parar de disparar mísseis mas vai lançar ataques aéreos. Repare-se que os dois infinitivos estão coordenados: “irá parar… e lançar…”, o que permite a interpretação de que os Estados Unidos vão lançar ataques aéreos contra Kadafi.  Se a preposição se repetisse, a ideia seria outra: “O governo dos Estados Unidos reforçou ontem que no final de semana irá parar de disparar mísseis Tomahawk e de lançar ataques aéreos contra as forças de Kadafi.” Aqui a coordenação se faz entre os termos preposicionados: “…parar de disparar… e de lançar…” Isto é, se a preposição de é repetida, a notícia diz que o governo americano não vai lançar ataques aéreos. Se a  preposição não é repetida, a notícia diz que o governo americano vai lançar ataques aéreos.  O emprego da preposição é fundamental para a precisão do que se vai dizer.

 

Atente-se ainda para o fato de que “vai parar” já é futuro. Dizer “irá parar” é pôr no futuro o que já estava no futuro. Dá-se a essa redundância particular o nome de hipercaracterização, isto é, a caracterização do que já estava caracterizado. A hipercaracterização é frequente quando o falante esquece a formação da palavra ou da expressão. Em “comigo” a preposição “com” se repete, já que “comigo” se origina do latim “cum me cum”. Quando digo “arrozal” ou “cafezal”, o sufixo é “al”. Mas em “milharal”, há a repetição do sufixo: “milhal + al”  dá “milharal” (por dissimilação, o l da primeira ocorrência do sufixo muda para r). Outro exemplo: como “meio” já significa “ambiente”, a expressão “meio ambiente” se formou por hipercaracterização. Assim, em lugar de “irá parar” bastaria dizer “vai parar”, que já é uma forma de futuro.

 

Outro exemplo de que é necessária a repetição da preposição: “José vai sair com Maria e Carlos também”. A frase diz que “Carlos também vai sair com Maria”. Se a preposição se repete, a interpretação é de que Carlos não vai sair com Maria: “José vai sair com Maria e com Carlos também”.

 

Quando traduzi o livro A sombra da serpente, um romance extraordinário do lituano Saulius T.Kondrotas (publicado pela Record em 1994), tive de repetir a preposição a antes dos dois núcleos do objeto direto: “Era o pai. Nunca o ouvi rir, nem a ele nem ao avô” (página 19). A ideia do texto original era de que nem ele (o pai) nem o avô riam. O revisor foi impiedoso em sua incompetência, suprimindo as duas ocorrências da preposição: “Nunca o ouvi rir, nem ele nem o avô”, o que muda completamente o sentido, sobretudo porque o leitor fica sem saber quem é esse “ele”, que deveria ser pronome pleonástico do objeto direto o, referente a “o pai”, mas tornou-se um dos núcleos do sujeito da oração elíptica começada por nem: “Nunca o ouvi rir, nem ele nem o avô (tampouco o ouviram rir).”  E o avô passou a ser a pessoa que nunca o ouviu rir, em vez de ser a pessoa que nunca riu.

 

Tudo isso significa que é uma pena que se tenha extinguido a função dos copidesques. Ou que não se recorra à revisão de um professor de português. Ou que uma editora de peso não tenha um revisor competente…

 

 

José Augusto Carvalho é Mestre em Linguística pela Unicamp, Doutor em Letras pela USP, professor aposentado pela Univ. Federal do ES, autor da Gramática Superior da Língua Portuguesa, de Problemas e Curiosidades da Língua Portuguesa e do Pequeno Manual de Pontuação em Língua Portuguesa, todos pela Thesaurus de Brasília.



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