Cultura

Quando tudo for possível ou uma declaração | Vivian Pizzinga

 

Ouço a voz de Lisa Alves repetindo a palavra ‘possível’ e, de tanto ouvi-la, ela se torna outra coisa, se torna impossível. Ouço sua voz, ela vem em minha lembrança enquanto leio este livro, a conclusão de um belo projeto que começou no início da pandemia de COVID-19. É a voz da Lisa Alves narradora, a poeta que acompanha as imagens de seu vídeo-poema, de seu vídeo-performance. O projeto “Quando tudo for possível” começa com quatro plaquetes e quatro vídeos – as estações do ano – e conclui-se agora, em 2022, com o livro que temos em mãos. 

 

Sigo a leitura, fico em suspenso, diálogo com minhas pedras, cavernas, folhagens, fico na dúvida se de fato “as pedras são indigestas”, converso com esse mundo mineral e vegetal que o texto poético nos apresenta e que tem repercussão em mim, imagens me são acionadas, percebo-me em associação livre. 

 

voltou para a tela /como uma personagem volta para o livro /uma condenação / uma repetição / um incessante ciclo de desespero/ todo mundo sabe que pedras são indigestas / e ela se alimentava daqueles minerais

 

(do poema “quarto sonho”)

 

O itinerário que o livro nos propõe me leva a um primeiro pensamento: não tem jeito, temos mesmo de lidar com nossas cavernas, com as imagens que criamos sem perceber que o fazemos, com os ruídos, os muitos ruídos, da comunicação, temos de lidar com interrupções, com súbitos finais, temos de fazer algo com os sonhos que alimentamos, com a ausência de botões que rebobinem a experiência. Temos de lidar com uma “memória que arrasta correntes no fundo da casa”. Temos de sublimar, usando aqui o conceito psicanalítico que nos ajuda a pensar que aquilo que é afeto, instinto ou pulsão (me desvencilhando de preciosismo conceitual) pode ter novos destinos, pode virar obra de arte. Esse, eu ousaria dizer, é o caso do livro que temos em mãos.

 

Ele se divide nas quatro estações do ano e nos sonhos que lhes acompanham, vinculando-se às plaquetes do vídeo-poema cuja historicidade acompanha os movimentos reclusos, íntimos, que talvez tenham acontecido sob a experiência coletiva e absurda da pandemia. Fica o sinal de que a realidade é essa coisa da qual somos também coautoras: temos tudo a ver com ela, e a forma como lemos “madre” ou “merda” ou “dream”, quando nos chegam as cinco letras, vai depender da nossa escolha, mas, conforme redescobrimos com a leitura, “difícil é sustentar nossas escolhas”.

 

penso na personagem

penso em reescrever sem o grito

penso em desenhar sem o insulto

penso na merda e substituo por madre

penso no que você falou

sobre eu não poder salvar ninguém

então volto a escrever merda

mas prefiro socorro

 

(do poema “inverno” ou primeiro sonho)

 

No inverno, temos o primeiro sonho, a primeira renúncia. Somos apresentados ao que é possível carregar quando deixamos algo para trás: memórias, sensações, ritmos. Uso palavras diferentes, mas não tenho certeza se memória e sensação são processos separados, e talvez Proust nos diga que não. Lembro-me de Daniel Stern quando fala dos “afetos de vitalidade”, noção que utiliza para se remeter àquilo que o bebê apreende do entorno em seus primeiros contatos com o mundo, antes de a realidade se enganchar em alguma linguagem. Aquilo que vai formando os “sensos de eu”, seguindo com Stern, não se dá pela linguagem formal. Inicialmente o bebê não tem léxico que possa descrever, nem mesmo a si, o que sente. Esses ritmos inaugurais, esses afetos de vitalidade, são o que carregamos pela vida, são o que permeia tudo, aquilo que constitui nossas percepções sem que nos demos conta. Não conseguimos nomear tudo o que apreendemos e apreendemos muito mais do que nomeamos. Acredito que a arte resgate esses ritmos e os coloque em formato imagético: então, no texto de Lisa, temos as menções a café coado, a repetições de gestos com a mão, porque são os gestos pelos quais ansiamos o que nos remete a lugares de afeto. O texto nos fala de folhas e peixes, de “enganos e sortes”, da mistura entre o eu e o outro. As aparências nos confundem, mas tudo bem, porque, “inverter as coisas talvez seja uma espécie de fé”

 

era agosto

e vimos o centro do Rio pegar fogo

enquanto procurávamos algum lugar

que vendesse o nosso café coado

 

era agosto

e você contava pela milésima vez 

sobre a performance da Lygia Clark

e eu fingia que era a primeira

só para você repetir pela milésima vez

aquele gesto com as mãos que eu tanto amava

 

era agosto

e era preciso alimentar certas coincidências

e era preciso alimentar certas ilusões 

e todo o “sim” que as placas diziam

mesmo quando a cidade cantava:

 

♪ Vai passar…

 

(“inverno” ou primeiro sonho)

 

‘Quando tudo for possível ou uma declaração’ é também um resgate de tudo o que é antigo em nós, de tudo o que é possível em nós, mesmo quando julgamos que há “uma falha no roteiro”, mas, não tem jeito, temos mesmo de lidar com fissuras, com pedras indigestas, com “a primavera que se destrói em um golpe”. Que tudo isso se transforme em poema, então. Que tudo isso se ofereça à escuta. 

 

O livro está na pré-venda na plataforma Abacashi: www.abacashi.com/p/quandotudoforpossivel

 

Lisa Alves (Araxá,1981) é brasileira, escritora e artista visual. Nasceu em solo mineiro dos “Catú-awa-arachás” (arachás do tupi guarani “lugar elevado” ou “primeiro lugar onde se avista o sol”).  Tem textos publicados em diversas antologias, revistas, jornais e páginas literárias no Brasil e exterior. Co-dirigiu os curtas Sou Indesejável (2018) e Depois do Sétimo Dia (2020). Teve trabalhos de videoarte exibidos em festivais no Brasil e no exterior. É a idealizadora do selo Molotov (produtora de booktrailers).

É autora de Arame Farpado (2015, Penalux) e Quando tudo for possível (2022, Mirada).

 

 


Vivian Pizzinga é brasileira, psicanalista, autora de Dias Roucos e vontades absurdas (Oito e meio, 2013), A primavera entra pelos pés (Oito e meio, 2015) e Ruído nos dentes (Urutau, 2022). Colaborou com crítica teatral para a Revista Ambrosia.

 

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