Cultura

Uma poética dos sentidos, da consciência e do combate | Ronaldo Cagiano

 

A noite desses tempos/ é a navalha/ nas mãos de um bêbado

 

Uma epígrafe de João Fonseca, que abre o conjunto de poemas de “A cor da palavra”, funciona também com um diálogo com toda o arcabouço poético de Salgado Maranhão, pois que todo o seu projeto poético que remonta à publicação de “Ebulição da escrivatura” (1978) até às mais recentes produções, é a confirmação de que “há vários livros debaixo da sua língua”.

 

Na sua vasta e polifônica oficina criativa, Salgado já priorizava os temas que hoje estão em pauta numa agenda militante que enfeixa na produção poética e na literatura contemporânea de um modo geral, pois se hoje há uma demanda para a explosão de vozes até então inacessíveis ou invisíveis num sistema editorial hegemônico e monopolizado por uma arte literária aburguesada, na poesia de Maranhão essa resistência já se fazia sentir, antecipando o eco de um grito submerso, a implosão das algemas. Sua poesia carrega bem antes esse sentido apriorístico de esterilizar as interdições e saltar os muros. Desde cedo “foi se alojando aos poucos/ nos latifúndios do coração” e exilado “na planície das palavras” é que pôde extrapolar os limites de uma arte historicamente elitista para constituir-se numa instância onde se possa acutilar, pois sua poesia nos remete ao saudoso poeta Lindolf Bell, que assentiu: “o lugar do poema/ é onde possa incomodar”.

 

Pois diz o poeta que “dentro da jaula do peito/ meu coração é um leão faminto/ que devassa a madrugada/ como um felino atento.”

 

É essa a consciência de um poeta que veio, desde suas origens, debatendo-se contra as amarras, sejam elas de ordem econômica, social, política, cultural e literária, um combate que não é vão, pois mal rompe cada manhã, é essa luta amada da palavra contra a opressão do mundo e a escravização do homem pelos fetiches de uma civilização perdida em seus próprios labirintos e ambiguidades.

 

Antenado com as emergências de nossa era e sintonizado com os contenciosos que nos afligem, Salgado correu mundos, sua arte continua a vasculhar os mistérios e perplexidades da condição humana, sua consciência estética é revestida, como em poucos autores de sua geração, de uma responsabilidade ética, pois escrever, para o autor é também uma preocupação obsessiva com o coletivo, com os destinos não apenas do homem numa sociedade cada vez mais vitimizada, mas também da poesia num tempo de tanta coisificação e etiqueta (vide poema ‘Moviemento’, símbolo de uma decodificação dessa “outra paisagem/ escrita/ no plasma” de nossos dias acossados por armas,  hot-dogmas e outros totens de uma geração que substituiu os contatos e os afetos pela inexistência  e a insularidade virtual).

 

É um poeta pensante, com sua pluri-miragem prospectiva, numa garimpagem no insondável e rastreamento dos silêncios, cuja frontalidade radical de sua poesia vem acompanhada daquela doçura cheguevariana, em cujo artefato criativo, como “um soldado no front”, vai para a trincheira “grávido de palavras” para o embate nas trevas, estas que historicamente sempre nos apartaram. 

 

Falo aqui de um Salgado Maranhão multifacético, que não obstante sua carreira vitoriosa, de recepção internacional, tradução e presença em meios acadêmicos nacionais e internacionais, estrangeiros, nunca perdeu sua relação com as raízes, com sua ancestralidade, com aquela motivação primordial que catapultou sua poesia: as origens e as dores de seu povo e de seus antepassados! É nessa latittude que o autor vai buscar matéria e circunstância para uma poesia tensa, densa, profunda, intensamente reflexiva e crítica, mas terna em sua dicção, povoada de singularidades, requintes estilísticos, riqueza metafórica. E uma alta voltagem para açoitar o que nos incomoda. 

 

É sobre “ruínas e paixões” que o trânsito poético do autor – entre o real e o onírico – flui. É nesse percurso no fio da lâmina da sua experiência existencial que “a essência das coisas range/ pedindo para nascer; ”na comunicação potente de um verbo que não se sujeita a condicionamentos de mercado ou a modismos de ocasião, porque é na vitalidade de um olhar cirúrgico que o poeta explora todos os tempos desse corpo chamado vida.

 

Poeta ávido nessa ávida vida de interrogações, busca no território de explorações sensoriais e visuais a exegese de nossa própria realidade. 

 

Numa passagem de “A jangada de Pedra”, de Saramago, o narrador e personagem pergunta: “…o que seria de todos nós se não viesse a poesia ajudar-nos a compreender quão pouca claridade têm as coisas a que chamamos claras.” É essa claridade que busca a poesia de Salgado Maranhão, enreda-se no mistério de um fazer entranhado nas vísceras de seu (e também) nosso espanto com o que o mundo nos oferece em seu arsenal de passivos, nesse pomar de bactérias, nessa aldeia miliciarizada pela ressurreição do obscurantismo e um inequívoco regresso à barbárie.

 

Salgado insurge-se contra esses tristes tempos em todos os trópicos com sua poesia-acicate, é o homem atrás do poeta a falar pelos que também não têm voz nem vez e ao homenagear seus irmãos na palavra e na dor, em “Negro Soul”, poema paradigmático que desmistifica a pseudo-cordialidade de uma sociedade ainda premida pr uma torpe consciência escravocrata e um abismo entre classes,  condensa a ira santa contra o que nos assola, apequena, humilha e inciviliza, proclamando, como a fênix generosa da mitologia grega: “sou um negro,/ orgullhosamente bem nascido/  à sombra dos palmares/ da grandemocracia/ racial/ ocidental/ tropical./ Sou bem um outdoor/ de preto/ com cara pro luar/ inflando a percussão/  do peito/ feito um anjo feliz. / Sou mais que um quadro-negro/ atrás de um giz: um livre livro/. E sangue de outras sagras/ e brilho de outros breus:/ quanto mais me mato/ mais eu sobrevivo.”

 

E esse poeta negro, feito cana no moedor,/ sofre e tira mel da própria dor, cujo corpo, cuja vida cujo olhar e cujo coração não foram domesticados nem aviltados, mas ressignificados na luta contra esse estigma tão antigo (aqui recapitulo Joseph Conrad, que em “Coração das trevas” apontou: “E o horror” É o horror” É o horror”), a poesia de Salgado Maranhão também aponta para reconhecermos essa tragédia e  sinaliza com seu farol atento, pois o seu “sentir molda a palavra/ ávida de asas/ alada ao desconhecido ”para,  em clave aguda e clarificadora,  denunciar na falsa democracia “a grandemagogia racial/ ocidental/ tropicálice.” Do soluço íntimo e da história de agressões que atravessa a nossa civilização, o poeta guarda “no corpo/ a memória que acorda o silêncio”, para nunca esquecer o que tem sido a vida sem vida dos que sofrem preconceito, racismo, perseguição, exclusão, mais do que o apartheid é a denúncia de todos os açoites que vão forjando um irreparável déficit civilizacional. 

 

Mas em sua palavra o homem e o poeta em autossimbiose, não se cala sobre os porões e diz: “eu sou o que não se conforma/ com a sentença ou desfeita/ eu sou quem bagunça a norma/ eu sou quem morre e não deita.” É quando impõe-se “a fúria sem revanche”. Sua poesia transita entre o popular e o erudito, entre a liberdade formal no modernismo e o verso rimado e de forma fixa, como no soneto, do minimalismo que nos lembra a eficácia comunicativa do haikai. Do místico ao transcendente, da subjetividade ao contorno histórico, da tradição à vanguarda, a oralidade e a escrita se fundem num caleidoscópio semântico e é nesse caldeirão criativo e efervescente que o poeta sente-se em casa no domínio pleno e polissêmico dessa linguagem com qual apresenta ao mundo a sua intervenção estética, ética e política.

 

“Do assombro nasce a poesia’, já o declarou Cabrera Infante e a poesia de Salgado Maranhão, esse inquilino das inquietações mobilizadoras, é a esperança, nesse presente rasurado, de que “o fulminante alarde da palavra” continua a ser o único território em que podemos ser livres e a sua narratividade em particular continua a ser ao mesmo tempo libelo e lirismo, reflexão e farol, advertência e compromisso humanitário, nesse tempo de escombros, sobretudo nós brasileiros, atingidos em nossa identidade pelas digitais da dor de um “escultor de tragédias” em sua fúria de coveiro do futuro impondo uma “vida rasurada pelos corvos” nessa “paisagem letal dos dias” onde “a morte está grávida”. Mas “onde a noite erigiu/ ruínas” sua poesia nunca se desvia desse ‘leitmotiv” de exorcizar os fantasmas e vertigens que emergem de uma contemporaneidade enferma, destruída e sem saídas, pois com “o sangue e seu movimento/ nos reinventam”.

 

Eis um autêntico e apaixonado “traficante de caminhos”, “mercador de eternidades” que não renuncia a ser “o acrobata do abismo” no enfrentamento do pusilânime “rapto da existência”. Com seu “instrumento de acender palavras” e ofuscar precipícios, com a liturgia de um verbo incendiado e aguerrido, seu estuário poético “que semeia antúrio no lugar dos mortos” quando “tudo é íngreme e acossado”, dialoga com essa verdade insofismável que prolatou Eugénio de Andrade: “a poesia, se não for o lugar onde o desejo ousa fitar a morte nos olhos, é a mais fútil das ocupações.” 

 

Murilo Mendes nos disse: “Vou onde a poesia me chama.” Fica aqui o nosso apelo, querido amigo e poeta maior Salgado Maranhão, vai até onde é necessário com a chama de sua poesia, vai com esse imenso “tear de afetos” ser gauche na vida e com sua sintaxe-lâmina afrontar a escuridão que ainda nos desestabiliza, nesses tristes anos em que, nós brasileiros, somos humilhados, vivemos a terrível noite da nossa recente história, como se estivéssemos na mira da “navalha/ nas mãos de um bêbado.”

 

Entre “flores e esquifes” sua invicta poesia, “essas pétalas rebeldes” traduzem-se em rivais do caos, digladia contra o efêmero (aliás, já nos disse Alphonsus de Guimaraens Filho: “se não for pela poesia/ como crer na eternidade?) é o que pode haver da mais autêntica na sua arte-subversão em sua energia criativa contra a tirania das Parcas, onde “sopra o arbítrio dos dias”.

 

Eis a sua escritura, Salgado Maranhão, vital e necessária, sobretudo nesses tempos em que a poesia e a literatura de um modo geral deixaram de ser arte para converter-se em grife ou commodity a serem mercantilizadas nas quermesses das bilionárias feiras e teias literárias que se reproduzem ao redor do mundo fazendo a alegria de agentes literários e  enchendo as burras de editores mercenários, ferindo de morte a essência da própria criação, quando o autor vale mais pelo contexto do que pelo texto, sua escritura, de engajamento não panfletário, mas consciencioso,  vai na contramão do que a avilta e nos alude com sua severa convicção: “A poesia é o lugar do coração que pensa.” E o verdadeiro poeta, “é o que esplende/ a labareda entranhada/   ao rugir/ “das pequenas agonias. E se a literatura é sempre uma expedição à verdade, como disse Kafka, a poesia de Salgado Maranhão tangencia uma verdade individual e coletiva.

 

A linguagem é como uma pele: com ela eu contacto os outros. (…) Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz. Roland Barthes

 

Como poeta afirma não ganhar dinheiro com poesia, mas já foi traduzido para o inglês, alemão, italiano, francês, sueco, e em breve, japonês. Vive de palestras que ministra pelo Brasil e mundo afora. Já esteve a convite em mais de 50 universidades americanas como Harvard e Yale, onde sua poesia virou objeto de estudo.

 

Nos EUA, um livro de poemas pode valer como uma monografia. Aqui [no Brasil] você faz um curso de letras e não sai poeta. Ao contrário, às vezes você embota.” – Salgado Maranhão

 

Em 1999, recebeu com o livro “Mural de Ventos” o Prêmio Jabuti, o maior prêmio literário do Brasil. Venceu em 2011 com o livro A cor da palavra, o prêmio da Academia Brasileira de Letras, na categoria poesia. Em 2016, o mais novo livro “Ópera de Nãos” foi premiado pelo Prêmio Jabuti, lhe concedendo o segundo título desta premiação na sua carreira.

 

Compositor-letrista, possui mais de 50 músicas gravadas por vários artistas como AmelinhaElba RamalhoNey MatogrossoPaulinho da ViolaRosa Marya ColinVital FariasZizi PossiIvan Lins.

 

Ronaldo Cagiano: Escritor brasileiro, vive em Lisboa.

 

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