Cultura

Cada vez mais longe e perto ao mesmo tempo | Vítor Burity da Silva

“Os riscos abortam a nossa neurose de grandeza e fazem-nos ver a grandeza das coisas pequenas, como a suavidade da brisa, as gotas de orvalho, as pulsações do coração, o sorriso de uma criança, a fé de um idoso.”

Augusto Cury

 “Paro tudo e faço algo que me ajude a relaxar e desanuviar a mente”

Augusto Cury

 

 

1

 

Ao fundo da rua uma enorme fila de gente, sei lá com que intenção ou para quê, e ainda assim me perguntava:

 

Que estarei eu a ver?

 

Uma visão, uma ilusão, ou caminhos encontrados da mente inocente ou ingénua que absorve pura e simplesmente sem sequer se questionar. 

 

Chegando mais perto seria importante, ter que me certificar daquela imagem de sombra que seguia o carreiro e da porta que se abria, via lá bem dentro, as escadas que, para mim, significavam apenas o vazio da mente humana à medida que parece crescer, cresce erroneamente. Será? Acredito sinceramente que sim, uma estátua sem cor a colorir-se apenas, sem alma e sem espírito, não senti o seu respirar ou ouvir delas a contagem cardíaca, quem sabe a noite chagava, a chuva acompanharia garantidamente o latejar apenas e só porque havia quem nos convencesse a desacreditar da única verdade que julgamos possuir.

 

Se a filosofia ouvisse pensamentos teria também pernas e asas e ouvidos ao fundo, mas na parte de trás das orelhas largas e vazias, lá dentro só sentimentos, talvez através delas entendesse e assim caminharia e ouviria e também entenderia o que é de facto uma consciência cheia enchendo a barriga de anti-ilusões, sentiria as manifestações da natureza quando esta se zanga e nos atira os seus raios inflamados.

 

A vida seria outra coisa. Diria a mesma, pois, se dentro do ventre da origem continuássemos aptos para aqui estar e perceber o ponto certo para que se entenda coisa nenhuma, sabemos como na verdade as poucas coisas que existem são as dúvidas.

 

E como me dirão os outros da certeza que obtive, ainda que por breves instantes aquela fila imensa que quase ocupava toda a pradaria daquela cidade em que viviam apenas profetas e domadores para a religião incumbida, todos ali feitos solo para que sejam usados em nome daquela estátua, a que vi depois lá dentro, que não respirava e nem coração nenhum palpitava esperança alguma. 

 

Duvidei de mim, não, não bem isso, talvez enganado pela aparência que mostravam os olhos daquele momento, pergunto-te agora sobre o ser ou a não verdade daquela aparição numa fria tarde de cidade que, mais à frente inventarei.

***

“Não faço nada, pois não me posso dar ao luxo de ignorar os problemas”

Augusto Cury

 

2

 

Não me preocupo com o tempo que levo a contar e verificar o que existe nas coisas, nas pedras desfalcadas e a verdadeira sensação que me enche o seu silêncio. Penso talvez em tentar perceber a essência de cada pedra deitada à beira da estrada ou a estátua construída sem pinturas, tento ver-lhes a alma, o seu significado e a coisa em si, o seu possível nada ou o contrário de tudo.

 

A pedra humana construída em ventres humanos, o resultado incompleto após a conclusão do seu nascimento, a perdição ao longo de sua aprendizagem como seres ainda pedras nesta constelação, este campo imenso que poderá transformar-nos em algo diferente, pensantes, como gostaria eu que de facto tudo se consumasse nessa vertente, sermos mais pensantes e menos simples caminhantes sobre estas, de facto, pedras vindas das montanhas sem aprendermos, como muitas vezes ou na maioria das vezes acontece e nunca chegarmos a ser verdadeiros humanos. Talvez a figura geométrica apenas, a que segue a fila obtusa diante daquela porta que se abre a nada nos ensinar a não ser cumpridores irracionais para uma vida mais plena.

 

Quem serei eu para vos ensinar a serem verdadeiros, a serem humanos? Ou que apologia ética ou moral posso dispersar para que possam encontrar soluções para que a vida tenha significado sem qualquer imposição? 

 

Daí não me preocupar com o tempo. E que tempo existe de facto? Ou existem apenas momentos que se somam de forma a constituir essa prorrogativa que, somada ao longo de cada visita interior, nos ofereça clareza para que possamos, no coração ou na alma ou reinem espíritos de bem a aconselhar-nos e livros para ler sobre a cor simples dos dias? Daí sairão, talvez, iluminações a encaminharem-nos pelos nossos próprios passos? 

 

Sim. Não. Terei uma opinião entre essas duas palavras esquisitas. Ideia esquisita. Não rara. Nem vulgar. Verdadeira apenas? 

 

Necessitaríamos alguma vez de ser esculpidos? Em nome do bem, talvez sim, somos como um diamante bruto, mas nem sempre valioso, mas podemos tornar-nos nessa preciosidade lá bem por dentro da nossa razão, esculpimo-nos a nós mesmos como um grande artesão que tira do “nada” essa ideia física e nos coloca perante ou diante de mosteiros cartesianos e isso levará anos necessários, um tempo pouco importa, sabendo nós de antemão da sua incerta existência. 

 

Prestar-nos-emos essa homenagem?

***

“Por esse tempo pode finalmente ocorrer, à luz repentina de

uma saúde ainda impetuosa, ainda mutável, que ao espírito cada vez

mais livre comece a desvelar-se o enigma dessa grande liberação,

que até então aguardara, escuro, problemático, quase intangível, no

interior da sua memória”

Friedrich Nietzche

 

3

 

A beleza das coisas é o facto de não haver beleza nenhuma em todas as coisas. A beleza é uma fantasia comprada pelos olhos que vêem, mas no fundo existe apenas o vazio desse conceito ou noção de haver, seja como for ou venha de quem vier, é o prazer do saber nada sabendo que nos ocupa, preocupamo-nos apenas porque pensamos pensar sobre elas. Existe de verdade a beleza das coisas? Creio que não. Preferimos fingir que assim assumimos o que nos é imposto, as ideias impostas a cobrirem-nos a cabeça que se cobre com um chapéu protegendo-se do sol. Que inverno vivemos, nós, os abutres do que estiver desprotegido na planície aberta da terra de ninguém, esta, a que nos surge debaixo dos pés calçados para alguns, e descalço para todos. Essa é a maioria de pessoas que apenas caminham, essa ordem mundial e metafísica a que nos obriga ao que chamamos de destino fiel.

 

A fragilidade é tão real como a forma em que a consumimos com um olhar apenas, e esse, convencido que nos leva ao seu destino, senta-se na bandeja colocada pelos dízimos mensais na Capela do Obituário do senhor Dom de casa para si, onde nós, convencidos, aprovamos num pleito eleitoral plenamente democrático escrever em modos de cruz, a saída do consciente disfarçado de saudade para continuar a convencer-nos e para que possamos com uma frequência maior, depositar repetidamente o destino a que nos propomos permanentemente, enganar-nos.

 

Preferia aconselhar a que nos assenhorássemos de nós com a consciência plena de que só existe uma realidade e não as várias que nos são impostas pelos impostos e as cargas de trabalho apenas para nos consumirem com fardos de bagaço seco e, ao fim da tarde, novamente aquela porta no fim da avenida?

 

Não. Não é o que vos aconselho. Não me perguntem porque penso poder ser-vos útil, e nestas linhas rasgadas por um qualquer, me queira afastar da moral com que me caso todos os dias, a casa dos meus sentidos nem sempre é o último livro que leio, penso no primeiro, mesmo que dele já nada me recorde, mas as palavras que escolhi residem ainda na minha memória facultativa dos momentos, e não vacilo. Porque não me aceito ser feito de outros, mas que sejam o que pretendo que sejam, ou então porque vos aconselho a abandonarem aquela porta permanentemente aberta naquela avenida de fim de tarde e de imensa chuva, de prenúncios falaciosos como vos recomendam os que apenas esperam de vocês o cumprimento do dízimo na prateleira dos falsos sábios. 

 

Como será percebermos a beleza da mesma maneira dos obcecados, sentados em qualquer lugar como aquele abutre raso e rasteiro em direcção à casa de todos os incautos. Um dia seremos nós, daí o meu singelo aviso em tom de conselho escrito em todas as folhas que encontro para lhes dar bom uso delas.

4

 

Como importante é uma casa repleta de janelas. Luz livre alojando-se a todos os cantos, regarem de saudades tantas felicidades. Conseguem sentir o que mais convém ou um melhor sentido de vida? Coisa nenhuma, já que o sol incomoda durante dias de muito sol, responderam-me tantos. 

 

Talvez me tenha esquecido de referir que a ninguém fiz pergunta alguma. Tomei a liberdade de me sentir dentro dessa casa, de quem pouco me importa, tantas vezes me sinto ocupado por tantos no meu quintal que seja, nas varandas de centros comerciais apenas para me desgastar, necessidades que tantas vezes todos nós sentimos precisar, não será esse lugar uma pousada para presos? Ou somos plenamente livres? 

 

Dizerem-me que este lugar, sim, este planeta terra, isolado e solitário, que desgasta a cada rodada dos ponteiros num relógio solidário que nos adianta para a frente, sim, acrescentei o pleonasmo, não porque tenha saído por sair, mas pesquei-o enquanto navegava pelos meus pensamentos.

 

Cedo, e cedo sempre, tenho o mesmo despertar, buscar ar e andar, faço as minhas diárias caminhadas e tantas vezes por elas encontro discursos vagos de muitos que nem sequer conheço, não reduzo a passada, cansar-me-ia mais ter de o fazer, levo apenas o eco, sem me meter, como não devo, claro, a sensação de um novo mundo a cada passada. 

 

Por onde andam os outros tempos? Questiono-me, era a vontade que tinha quando lá para trás, cruzando-me com o grupo que distraidamente conversava, não querer esquecer-me que não devo nunca recuar. Ou devemos? E porquê? Que sentido faria? Que melhorias ao meu mundo interior traria? Que bem ou mal vos fazia?

 

Perguntas e respostas misturadas num turbilhão de certezas, sim, coisa de que nunca deveríamos ignorar para bem do nosso bem, o momento em que tudo aquilo aconteceu.

 

Comecei por vos alertar quanto à necessária importância das janelas numa casa, quando acabo por estar agora numa rua qualquer, creio que um jardim, quem sabe, a soletrar cada passada como um contador de quilómetros.

 

Vítor Burity da Silva, natural do Huambo, Angola, a 28 de Dezembro de 1961. Professor Honorário; Doutor Honorário em Literatura; Ph.D em Filosofia das Ciências.

 

 

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