Praça Vendôme | Andréia Lara Kmita
Foto: Kartable
Era junho de 1870 em Sedan, estava fraca e desnutrida, meio tonta, mas forte o suficiente para cambalear até meu destino. Rastejava o esqueleto pelo secume que se alastrava por toda Paris. Mal tinha o sustento das pernas tamanha era a fraqueza dos ossos. Andava alguns poucos passos e gemia, doía-me as tripas carcomidas. Escorava-me nos muros das casas, a cada passo parava como se fosse morrer por asfixia. O ar matava aos poucos, cada vez que respirava eram lâminas que desciam no gargalo, sentia o gosto do sangue no estômago. A temperatura sufocava. Eu tinha aquela inexpressividade na face, de quem não se chocava com a ridicularidade do absurdo, demasiada era a escassez de alimentos primários e pobreza extremada por toda parte. Estava em estado hiperbolicamente glacial. A saliva não mais se produzia em meu organismo. Sentia-me estúpida a endurecer a alma ao soprar dos vapores congelantes quais meu pulmão exortava. Tinha fome. Comeria os dedos se fosse necessário, mas, mediante a situação precisaria deles, não poderia sucumbir agora, não agora, cuja fome de liberdade me comia inteira.
A bulimia se contraía no vazio, quisera eu ser a única míngua nesta terra e não mais milhares de olhos cansados. Outros mesmo que vivos e altivos, mortos de medo. Comia ratos para resistir, ou qualquer ser rastejante que se mexesse. Eles invadiram as tantas casas e fábricas vazias. Só precisava eu sentar no chão e esperar meio minuto. O cheiro da morte os atraía, vinham aos montes. Subiam pernas, braços e pescoço, ainda temia não conseguir levantar-me, ter forças para agarrar um. Pensava no que fazer enquanto perambulavam em minha carcaça e me mordiam. Atônita… Não sentia dor tamanho buraco se integrou ao fundo do umbigo. Abri a boca, não foi preciso esperar nem dois segundos, para que três ou quatro enfiassem a cabeça adentro, tentando arrancar-me a língua. Só um pouco e… Mordi-os de vez, foi com tanta esganação que arranquei a cabeça de um, o outro ficou preso entre os dentes, os outros fugiram. Terminei de matar o que estava vivo. Ele estatelava os olhos enquanto lhe mastigava as fuças. Era preciso. Precisava manter-me viva e sobreviver.
Tudo acabado! Já não era tão sem cor, nenhuma couraça evidente, a não ser o vermelho espalhado por todo o corpo, na roupa suja e fedorenta, qual limpei a boca e a mão depois de estripar os canalhas. Foi gostoso, eu percebia uma sutil vitalidade se apropriando do meu corpo magro e chupado, um pedaço de pau. Levanta! Gritei pra mim… Anda moleza dos infernos! Não hei de arriar. Não o fiz nas mais de 16 horas de trabalho duro nas fábricas têxteis, não será nesse momento de rejeição que o farei. Seus biltres! Donos de tudo que tem pernas, donos de tudo que tem terra, espaço, do mundo… Chorei, a raiva me corroía os olhos. Que as formigas lhes comam vivos! Cartolas!
Ah Paris, Paris… minha Paris, minha amada, porque sóis tão dividida? Não é de direito do Ser a vida? Eu noto esse povo se armando para defendê-la como se fossemos a escória, armistício de merda. Fluía meus pensamentos em fúria, – isso é traição! Perfídia! Todos os olhos voltados a mim no centro da arena, um animal pronto para o abate, mas um animal enfurecido, sangrando… estanquei-me. A elite temia a audácia que me corroía, os banqueiros nos odiavam de longe, eram os despretensiosos armados que os assustavam, nós mediamos medo, pois invadidos de coragem fomos. Despojados de tudo nessa mundana vida. Berço não, ouro não, sossego não, só braços e corpo, era preciso deles, sem eles não se mantinha rotina de mula. Ah sim, destas que trabalham e trabalham, mulas das ancas caídas, umas bestas velhas.
Muitos não tinham condições de escola no tempo certo como eu. Esmolava uma rima, mendigava nas esquinas, pedinchava nas portas quando nem trabalho mais havia certa idade. Tudo quase parado, inópia de porre… Respira, respira lento, respira fundo, isso… Tudo muito carregado, denso demais, e ainda, a tensão aumentava, o medo assombrava o povo, o descaso com o pequeno proletariado tomava tamanho, o dele não era dele e ponto. O temor arde, dá ciência de fragilidade, queria sentir a deles, pois no momento tinham dores nunca sentidas, o pavor da queda dói sem doer. Acho que senti as cadeiras gordas do Governo de Defesa Nacional parisiense. Tentam eles admoestar minha ira, antes mesmo do pensamento se criar e esbaforir direções. Aprumem! Seus sacos moles. Não hei de deixar nossas crianças morrerem de sede. Do desejo líquido. Vontade desmedida de molhar a língua do cérebro. Ainda que a educação não seja gratuita, minha alma se enche em vida ao entrar em escondidas guaritas, disposta a ensinar as meninas o que vocês me negaram uma vida inteira. Elas foram excluídas do letramento para poderem servir a escravidão contínua, como suas saias rasgadas de tanta surra.
Mais rabisco e mais dias, todos juntos digam seus nomes, soletrem seus nomes, vocês conseguem vamos, vamos! Aos poucos cada um soletrava seus nomes e as sílabas de seus nomes. E o nome de seus pais? Alguém sabe soletrar? Isso mesmo, isso mesmo, repitam, mais uma vez! Os meninos já vão chegar, o turno deles é depois das três da madrugada… enquanto isso, vamos meninas, soletrem os nomes baixinho. Assim eram as aulas, escorriam-me dos dedos a cada noite, pois aconteciam no subterrâneo da guerra, em meio aos estrondos dos canhões e dos gritos da dor e da morte. Em cada linha de cópia, os ombros saltam dos velhos bancos, as sobrancelhas arrebitam-se num ritual de vigilância, elas temiam o pior, no entanto, sabiam que viver na inércia era o mesmo que entregar a própria vida aos que pagassem mais. O mundo era dos que dominavam as letras e os números. Ao longe, uma franzina mão se levanta, a última na fileira dos bancos, logo olho e ela sussurra. “Professora, porque temos que soletrar nossos nomes e o nome de nossos pais todas as aulas?”. Sem titubear explico que por pior que a situação seja todos temos uma identidade e alguém irá lembrar de nossos esforços para que não sejamos enterrados como indigentes, pois temos família, ou pai, ou mãe, ou irmãos, ou mesmo não temos nada, porém, pelo menos temos o nome.
A sala silenciou-se, aquela mocinha corajosa abaixou a mão e olhando em meus olhos cansados sussurrou “obrigada professora”. Eu queria alegrá-los, queria que sorrissem, mas nossos risos estavam em nossos esforços em estarmos todos reunidos algumas noites para construir discernimento e o mundo através das letras. Minha roupa está cheia de sangue, minhas mãos pintam de rosa o giz branco como no sorriso delas. Minhas meninas, meus meninos… eles saem escondidos todos os dias para aprenderem português e matemática, vinham ocultos até mesmo de seus pais, quando havia algum por falta deles sentir. Mais seguros estavam nessa salinha apertada e fedida, com alguns balcões e bancos podres para escreverem, mesmo sendo próximo demais dos esgotos fétidos de Paris, do que em suas próprias casas nesse período. Muitos dormiam por lá mesmo, não tinham como voltar, não tinham para onde voltar. Desabrigados, alimentava-os com letras, as poucas que sabia e que aprendi sendo faxineira de pátio escolar. Minhas roupas continuam manchadas de sangue, já não era mais novidade a eles, pois se viam em mim. Finda aula, cada um, cada todos, cada canto.
Logo amanhecia, inda nem bem havia deitado os restos mortais e já lavava o rosto para labutar. Escravidão sem fim. Entro às seis horas da manhã. Levo minha marmita em uma bolsa de pano velho, um pedaço de pão que ganhei de um comerciante, pois eu não saía da porta do comércio dele. Não incomodava, mas ele já havia me escorraçado algumas vezes, no entanto, aqueles bolos eram tão apetitosos e de encher os olhos que me paralisavam. Eu não conseguia me mexer, sonhava acordada, e essa sensação era quase a mesma de estar com a barriga cheia, a mente me pregava peças, mas noutros momentos me servia de conforto. Escorria uma baba da boca entreaberta e eu a secava com a mão, pois as mangas já estavam ensopadas. Por alguns segundos, esquecia-me da sala de aula e da gana de liberdade. Nem sempre algum dono de comida nos dava o que comer, mesmo que fizéssemos algum serviço, o pagamento não era suficiente para comprar algo, o poder de compra era bem desleal, desigual e cruel. A fome gritava-me! Bati o ponto. Entrei entregue à própria sorte, e fui.
O barulho das máquinas desnorteava meus pensamentos secretos, tomava cuidado, os capatazes cuidavam deles, cuidavam de todos os pensamentos soltos que lhes rendessem um sorriso de canto de boca. Olhavam-me o tempo todo, desconfiava que liam aforismos e tinha medo de soltar os meus. Deixava o barulho me inundar, desatinava-me, pois a desconfiança dos horrores poderia me expor se titubeasse. O dia passou ligeiro, último turno na tecelagem. Hora de mudar a canela de lugar e longe dos fios da lançadeira pela centésima vez. Estava exausta, meus olhos descuidavam dos sedentos à minha volta às vezes. Senti um puxão no cabelo, eles quase foram engolidos pelo aparelho qual estava acostumada a trabalhar. Era muito esforço para uma mulher franzina como eu, o que tinha dentro de mim? Nem eu bem sabia que podia tanto, nem eu bem sabia que queria tanto, tanto espaço para sair, tantas portas para correr, tantos céus para ver e eu ali, naquela rotina dos infernos.
Ouvia uma respiração forte do outro lado do galpão, as meninas já estavam recolhendo seus pertences para bater o ponto e irem para suas casas, e eu também, apressava-me, não era nada inteligente ficar para trás, coisas sempre aconteciam na fábrica. Outro barulho, algumas delas se assustaram e saíram correndo. Virei-me rapidamente, perguntei estremecida. Quem está aí? Contudo, morta de medo inda sou tomada pela fúria e grito “Aparece covarde desgraçado!”. Corri. Ia saindo quando levei uma paulada na cabeça e o céu escureceu. Não lembro, não sei como mensurar o que houve, somente sei que de fato não fui dar aula naquela madrugada. Os olhos custavam a abrir, pelejei para sentir o ar saindo das narinas, uma crosta de sangue duro os encobria. Meus olhos estavam grudados, não via nada, não conseguia ver nada à minha frente, mas ouvia um zumbido ensurdecedor dentro da cabeça, doía muito. Apalpei a mão sobre meus olhos a fim de descobrir, sutilmente toquei meu rosto todo, pois não enxergava, contudo, sentia.
Encontrei um taio profundo na cabeça do tamanho de um giz, e outros dois galos bem grandes, coloquei a mão para sentir a dimensão do estrago e o sangue já havia aglutinado, logo pensei estar desacordada há muitas horas. Segurei a pálpebra de cima bem forte e puxei a outra parte para baixo, meus cílios se arrancaram em partes. Segurei o agudo da voz para que ninguém me ouvisse, era perigoso alguém saber da minha existência ali naquele momento, não sabia quem estava por perto, precisava ser cautelosa até conseguir ver ao meu redor por completo. Depois de uns minutos consegui abri-los, ainda era noite, mas não ao certo qual noite, eu poderia estar ali já há uns dois dias sem saber. Posso ter acordado e apagado novamente, não lembro direito, a cabeça doía muito, apalpei o chão e senti uma espessura imunda sobre meu corpo, além do sangue.
Logo, dei-me conta que estava largada, num quartinho fechado cheio de palha que fedia a mijo. Urinaram-me não havia dúvida, mijaram em mim como animais demarcando território. Tentava achar uma saída, minha cabeça doía, latejava, aquele zumbido ensurdecedor me enganava realidade e sonhos. Fleches de uma luz atravessavam as frestas da parede, era a lua que entrava a me mostrar um caminho. Sentada ali, olhava aquela luz no total escuro, breu descomunal. Percebi minhas vestes rasgadas e sem as calçolas estava. Rolei minha carcaça próximo de um feixo de luz daqueles. Havia marcas de dentes por todoo meu corpo, meus peitos estavam roxos, sangrava-me o íntimo, eu tinha pudor e asco de mim mesma. Olhei em volta, ninguém, nem os ratos devem ter visto tal cena repugnante. Tentei levantar-me, agachei-me. Meus ossos entre o ventre e as coxas doíam facadas, molestados estavam, a paulada não deve ter sido só na cabeça e nem só uma vez pensei.
Arrastei-me até uma das paredes, usar-lhe-ia de escora, assim, consenti que pernas e braços tomassem força, fui me apoiando. Os joelhos tremiam, estava com medo mortífero de fraquejar. Ato execrável que me consumia em dor. A alma latejava. Meu corpo era só o nada, um desejo sofrível de não existir, meu corpo queria me abandonar, ele não se sustentava, não sentia reação, nem mesmo as partes da pele sentia. Torpor. Estiquei a perna por completo, desarquei-me, não me olhava, não pensava em nada, não queria chorar, não podia. Uma cólera se aboletou em mim, e foi dela que a coragem se firmou, queria matar, queria morrer, queria vingança, queria não ser mulher sem herança, um sopro de potência naquela calmaria qual minha alma foi tomada por instantes, eu quis algo mais que qualquer outro desejo insano, eu quis viver mais um pouco. Fui arrastando os pés até encontrar a rua, precisava vomitar as sujeiras. Coisas atrozes não acontecem somente nas guerras, basta estarmos sorrindo… eis o fio condutor de algumas insanidades, a felicidade alheia, e tudo pode incomodar e mudar, as ações infames e cruéis surgem sem pedir licença.
Pronto! Livrei-me do terror e do ódio. Expeli a própria boca, jorrava sangue. Lançava violentamente para fora a brasa do canhão, gorjetava no fogo gosmento o vômito da injúria. Quis chorar. A voz quase não saia. ‘Socorro… Ajudem-me, por caridade, ajudem-me’. A voz não se firmava, ninguém por perto, os que me viam de longe, logo faziam curva e saíam. Não foi um contive, mas as lágrimas caíram alguns minutos no trajeto de volta para casa, a dor no útero me emudecia. Uma vizinha me esperava na porta, queria saber das aulas, porque não havia ido naquela madrugada. Achava que havia sido capturada pelas tropas Prussianas ou de Versalhes e morta. Ela percebeu meu real estado quando me aproximei de fato e tratou de me recolher porta adentro e correu buscar ajuda. Eu estava lá, depois do trauma um outro, o de me enxergar adentro, e reconhecer da brutal situação qual me aconteceu. Eu necessitava mumificar o arcabouço externo, minha alma e meus pensamentos não precisavam ser vistos, deixei somente o restrito para que pudessem curar, pois doutra forma já estava morta.
Bem rápido chegam as três, a costureira e as lavadeiras, mães de meus alunos, e, graças a Deus todas eram mães. Esquentaram água, lavaram minhas feridas, costuraram minha cabeça, passaram um creme caseiro no meu corpo dolorido, tiveram que costurar meu ânus e nádegas e outras partes do meu íntimo; em minhas particularidades reservadas encontraram mordidas e pedaços faltando. Elas rezaram. Mal sabiam elas que a chaga maior rasgava meu coração, com cortes tão profundos que mal me reconhecia, confesso. Paralisada no abcesso daquele quarto, dia após dia, não dava jeito de abrandar flor espinhuda no peito. Acordava e dormia com os olhos em chamas, a fúria me tomou por um tempo, tornei-me aquele animal, rastejava do quarto ao banheiro, o ventre me doía, as ancas e os ossos no vão das coxas, a surra devia ter me matado, e talvez fosse esse o propósito deles. Porque deixar uma vítima viva se podem ocultar sua boca do mundo?
Belleville inteira ficara sabendo, não pude sair de casa por algumas semanas, fiquei algumas semanas sem aparecer no serviço, não aguentava evacuar as podridões que se geraram em mim. Meus velhos hábitos voltaram a se veicular em uma certa tarde, levantei e olhei o chão do quarto, não estava sujo, alguém estava limpando tudo. Vesti-me, comi uma batata que deixaram cozida na minha mesa. O trabalho noturno das poucas fábricas abertas, com jornadas de trabalho de intermináveis horas, desolava-me as veias. Eu não conseguia parar de pensar em algo parecido com mais ninguém. Ainda que veja do lado de fora da janela das casas o pó que as consomem e do meu salário, o qual não dava nem bem para pão e leite. Escorei a mão na janela da cozinha, olhei para fora, a rua não estava tão movimentada, mas também não estava vazia. Pensei com meus pulmões. ‘ainda viverei mais, preciso, hei de ver os soberbos caminharem sozinhos, hei de ver algum triunfo a favor dos desafortunados.
Penso demais, sonho ao longe impossibilidades. Vejo a Igreja a separar-se do Estado maior e a igualdade entre os sexos ser instituída, um sorriso de canto flui naturalmente naquele momento. Lembro-me bem de todas às vezes que fui à Igreja quando meus pais eram vivos, eles tinham uma terrinha, mas ainda quando mais jovem e ainda muito pobres. Eu não conseguir associar o que estava escrito nas paredes da Santa Casa, nem mesmo o que o padre pregava em seus conceitos com o que estava escrito nos folhetins de missa. Quisera saber, mas não lia bem na época, meus pais eram analfabetos, e meu futuro era incerto. Não esqueço das carrancas fechadas todas as manhãs de domingo, pois creio eu, que poucas famílias ali entendiam algo. Sentei-me na mesa, estava fraca por demais, comi mais um pouco da batata. Era tudo que eu tinha, além de pessoas na mesma situação que eu, na verdade, pouca coisa pior, pouca coisa melhor.
Pressupunha ainda naquela época que ou estas famílias eram tão bestas como a minha, ou a palavra dos Padres que eram pesadas demais para que fingíssemos verdades ocultas. Se a Igreja se importasse mesmo com seus fiéis não os abandonaria à própria sorte. Não deixaria o descaso do governo com os menos abastecidos se propagar, lutariam por eles. Os Padres deveriam pregar sermões de exemplo da partilha o tempo todo, contudo, ouvíamos eles elevarem na surdina em meio às palavras camufladas a política dos seus. Creio que tenham pregado muito, até morrerem, muitos deles, porém, alguns não, alguns eram aliados do dinheiro e a batida a camuflagem perfeita. Ao contrário do que Deus sempre nos ensinou em histórias bíblicas, escritas por seus fiéis sacerdotes evidentemente, mas talvez com intenções de minimizar o egoísmo humano, contudo, por maior esforço, mesmo diante do maior de todos na morte de seu único filho, a partilha passou a ser parte excludente das ações humanas e das palavras emolduradas nas paredes daquela igreja; no fim, passou a ser eco doutras igrejas. Eles, os ricos burgueses, a Igreja e o Estado, casais perfeitos, passagem livre para o céu; enquanto eu, mulher, pobre e desnutrida, cai-me bem a sorte por estar viva.
Dos banquetes milionários nos casarões dos Barões e nos palácios dos nobres brasões, sobravam sobras, restos, pedaços, eram dejetos cujo bagaço se ofereciam aos roedores, e, nesse tempo tal qual vivo, brigar com ratos de quatro ou duas patas normal se fazia. Pessoas se acumulavam meia hora depois do jantar das 18:30, as filas de parisienses se formavam nas saídas dos esgotos e pelas proximidades dos lixos das casas grandes. Eles não perseguiam somente os resquícios doutros, mas também, porque eram nas lixeiras que encontrariam as ratazanas mais gordas. Visto de perto, era um perfeito banquete, aglomerado de roedores se fartando de preços, enquanto os esfomeados escolhiam qual das patas lhes caíam bem no estômago, a fome era tanta que comeriam os porcos gordos de duas patas, os quais observavam sacudirem as panças dentro de seus aposentos luxuosos.
Evidentemente, os fiéis foram assassinados mais de trocentas vezes, perdi as contas. Pai, eles não sabiam ler, perdoe-os, pois havia fome no cérebro, a morte pré-anunciada, assim, como o frio que lhes doía os ossos, e me dói aqui, espírito a vaguear. O governo estava a levar o país ao abismo, galopantes inércias de ações contra a Prússia. Veio a aliança, e tudo se resumiu ao papel. Covardes sujos! Casamento de rabo de esquina, curto por sinal, visto que, não obstante, e, entretanto que, o recuo do cú era ligeiro, o senso que faltava era sacanagem, o resto era coragem da calça. Que importa! Come torta… Quem está falando? Fiz o sinal da cruz mil vezes, valha-me assombrações, até parece que tem fantasma nesse presente. Que tempos Pai! Que tempos vivemos… talvez fosse melhor partir logo, esquecer, esquecer que um dia fomos felizes nessa terra, que não precisaríamos lutar por qualquer injustiça aqui feita; eu sei o Senhor nos avisou, somos burros, por isso investir em educação é tão improvável, o poder não gosta de ser contrariado. A forca e a inércia estão mais próximas dos valentes e dos alienados.
Já era hora de sondar. Solados, centenas, bonequinhos chumbados enviados à própria sorte, era pois, o pensador que nada pensava, desestrategiava o tempo pouco eficaz. Recordo em ouvir Lissagaray quando trabalhava em minhas espionagens “que haviam sido enviados a fim de serem sacrificados”. Carnificina. Pobre rapazes que não souberam beijar, nem amar, nem fingir. Estavam a defender um sacripanta, um depósito de ganância, carcaça mal distribuída na feitura de sua genética, a transa deve ter sido rápida e paga, um cuspe decerto, uma expressão vazia do inexpressivo, sem sorte foi fecundado.
Cai a noite, os cartazes abrolhavam madrugadas, convocando caminho, impetrando passagem para a Comuna. Governo… cagão! Assinaram acordos, a preliminar plena, fundos de um aniversário, velas da Revolução em 1848, aquilo foi um tiro no pé. Eu observava as tropas prussianas marcharem em Camps Elysées. Imperativas. Que humilhação! Thiers tirano, déspota! Miserável! Os gritos doíam mais, os buracos me atravessavam fome, os buracos me atravessavam ar, e digo que inda revolta se fará. Ficamos conhecidos como ‘a cidade do ódio’ em Belleville. Eu tinha de sobra todo esse inferno, minhas vistas queimavam loucuras por justiça. Renegamos a devolutiva, descobriram-nos, logo, retirar os canhões não era mais opção de paz, tomamos posse, precisávamos de proteção que não fosse pacto com o cão. Precisávamos das armas, todas elas.
Enojava-me a imunidade exclusiva da lei consolidada pelos advogados. Excludente ao povo, pois mal dela sabiam enquanto outros não sabiam nem o que tratava ela, esta palavra imunda chamada “imunidade diplomática”. A tática de cheirar o rabo dos banqueiros dava certo para os de meio termo. Entre o juramento e os honorários exacerbados, o povo fica sem roupas, pelados, ou paga ou paga, de alguma forma se pagava acreditem. Até mesmo com a união de pessoas se pagavam casos, como os casamentos por exemplo, que em muitos destes casos eram somente negócios, seja o fim de uma mulher ou sacrifício de algum homem, eram pagos a esses roazes. Filhos usados como negócio próspero, moeda de troca, um mero pagamento de dívida. E ainda há padres que abençoam esses propósitos cientes dos feitos dos donos da posse.
A vergonha não era só minha então, a minha morreu como ferida aberta naquela fábrica têxtil, entretanto, pensar me doía mais, pois inda que vivesse não sobrava sombras do que dantes tinha quando ignorante era. Saber dói, saber das maldades doutros dói mais, minha carcaça aguenta, mas talvez minha alma definhe por correspondência, por ciência ter da impunidade, mata-me aos poucos, como sei que consome outros no mundo. Dever alguém era pior que a vergonha, pois exposta era em praça pública diante daqueles que fingiam saber algo que não sabiam. Davam um jeito de guilhotinarem os clientes desprovidos de grana e pão. Naturalmente, em menor proporção que a guerra. Tenho um plano, mas preciso de força senão serei traída por falta de fósforo. A Igreja de Brea, elevada para saldar os homens envolvidos na repressão da Revolução de 1848 deve vir abaixo, é preciso. O local de penitência de Luís XVI e o pedestal Vendôme também, devem vir abaixo, nossas vergonhas não podem ficar tão expostas.
Os velhos tinham um plano, um plano… preciso me levantar desta mesa oca, lá fora vive o motivo pelo qual merecemos estar vivos, a liberdade é um preço alto demais, mas eu pago um valor inigualável aos olhos de Deus. Chamem a todos que puderem meninas, estarei recuperada em uma semana. Precisamos falar com todos os que ainda estão de pé. Chega de me engolir aos poucos feito os ocos barulhos do meu estômago. Preciso pensar, adotar uma bandeira, talvez seja o símbolo dessa nobre causa. Nobre causa? Não tenho certeza ao certo, deveríamos expurgar a palavra ‘nobre’ do cardápio e queimar todos vivos. Meu estômago ainda dói, esqueço, aqueço-me nas lembranças de meus velhos e me ergo na morte de uma mulher molestada por ser mulher. Preciso expulsar meus pensamentos, tomam-me espaço da fome, instauram em minha cabeça coisas sem cabimento, sonhos – “Unidade Federal da Humanidade”. Ah! Que loucura! Donde vemos nossas fardas comendo grama será que hesitarei a prerrogativa de fracasso ou teremos êxito?
Em minhas unhas o vermelho sangue se encravava. Não saia, já era parte. Penso no crivo da crítica. Bandeira vermelha? Talvez, é sangue parisiense por completo tom, bandeira azul, branca, ah… tanto faz. Nem trabalhar vou mais, voltar aquela fábrica é exigir cova rasa. Eu tenho aula, lecionaria período integral sem cobrar nada, em troca, que me ajudassem no que comer. É hora. Vou fazendo reuniões clandestinas com os alunos e depois com os pais. Era bom, juntávamos pensamentos. Os debates eram fervorosos, a cada dia o número de pessoas aumentavam, participavam ativamente nas tomadas de decisões.
Éramos muitos, vindos de muitas origens, belgas, italianos, poloneses, húngaros, entre outros. Todos pobres, pequenos comerciantes falidos, operários, sitiantes, comunistas de espírito, direitistas humilhados, ex-políticos, ex-religiosos, artistas e outros influentes intelectuais. Isso não nos tornava diferentes, nem indiferentes à situação de miséria que nos assolava. Minha casa passou a ser nosso escritório no início, com o tempo fomos para uma central. Precisamos pensar em reorganização, éramos grandes, expandindo, em todos os sentidos, incluindo finanças, correios, administração geral, assistência pública, correspondências e telégrafos. Mudar o salário e diminuir as horas de pugna do trabalhador, ah seria estupendo! Os mercenários faziam-nos trabalhar mais horas que nossas próprias condições.
Pensava alto, às vezes tão alto que os outros me respondiam sem ser uma pergunta. Quero instituir uma Escola Pública. Chamaram-me de louca, contudo, sigo firme na decisão. Os artistas poderiam dirigir os teatros e editoras no início. Eu poderia ter um salário como professora equiparado aos dos políticos. Tudo bem, é muita pretensão diria a ‘nobreza’, mas a mim não, minha indagação será sempre a mesma, porque uns não têm estudo e têm privilégios, enquanto quem estuda o mundo não merece nem um vintém. Pelo visto ainda querem nos foder como ignorantes, e que a burrice paire pelo céu claro como se fosse nuvem, que o sol seja sabão e a árvore seja chamada de peixe. Ah, balelas! Fico ridiculamente brava com Platão essas horas. Visto que das teorias e fundamentos repasso logo após reaprenderem a ler. Poderia não os ensinar a somar e multiplicar, quem sabe não ostentariam tanto.
Quero tanto tantas coisas que não me cabem. Coração incha de ansiedade, voraz felicidade, apetite. Da fome de ter a mesa farta, só isso, não é pedir muito a Deus e a todo mundo no mundo, ou é? Audácia!? Mocarongos fardolas, cuspo-lhes. Não quero nada que seja patrimônio do Estado a ser dividido. Pois é tocável e do povo parisiense. Articular, é disso que careço, eu e toda gente com ocos profundos no estômago. Correria os riscos da manipulação, deixaria me usarem para chegar ao topo. A sede de vitória era uma febre por todos os lados, a gana de mudanças era cólera, baterias que não se acabavam em nossos corpos pulsavam, coração se enchia. Meu subconsciente previa a discórdia dos membros dessa Nação, justo porque eu, mulher, não aceitava ser objeto; porque eu, professora, não aceitava ser uma bolha; porque eu, cidadã, não aceitava ser muda nem cavalo de carga.
Os iluminates já discordavam entre si, separaram-se em cúpulas de poder, do que e de quem tiravam lucros, seja no microscópio da existência humana, onde me encaixo, seja no colossal das almas. Não lhes melindrava consciência. Mesa farta, cobertor grosso. Regalias que dispunham também alguns intelectuais de berço. Outras guerras já haviam agravado a crise, o ato que propunha era um dos que estavam abertos em Paris. Muitos movimentos sociais dos operários surgindo. Greves por toda sorte. Preciso de um norte urgente, algo que me salve a mente. Um suporte para algo maior. O nome que nos identifica é tudo. Talvez os marqueteiros ativos da causa possam pensar nisso.
Courbet é o mais influente, vai saber estrategiar, penso eu em minha insignificância. Ainda tenho que conversar com Rimbaud e Pissaro, reunirmos e detalhar tudo. São artistas e grandes intelectuais também, contudo simpatizantes de minhas ideias, será que hão de ouvir uma mulher? Senhor, espero que tenham alma. Conto com toda sorte do chão que piso e assim fui a ter com eles. Já éramos Communards. “Vive La Commune!”. Jamais desarmarão os trabalhadores de Paris. A Guarda Nacional passou a nos apoiar, tivemos um tempo para respirar e discutir novos rumos. Sou parte da extinta administração do Comitê Central Revolucionário. Um dia alegre para os cidadãos de Paris, e de desgosto para a alta elite. Nossa Comuna tinha gama vasta de favoráveis, republicanos atenuados a jacobinos, socialista da Internacional e proudhonistas, além de agitadores blanquistas.
Queríamos um futuro de igualdade a todos sem o mínimo de exceções. Quase fui pega com meus pensamentos altos, não fosse as pinceladas de Courbet. Suas telas delatavam realismo gritante, os quais encobertos eram por camuflagem de cores, mas estávamos ali em mensagens ocultas. Cala-se mulher! Levanta, apruma coerência no coração e nos discursos não tão maduros. Tivemos pouco tempo de Paris. Já se passara dois meses de abruptas mudanças. O trabalho noturno e escravo se esvaiu, o Estado se separou da Igreja aparentemente, nada era tão surreal, houve reabertura de fábricas… outros olhares à frente, novos tempos pensados. Entretanto, o silêncio da mesquinhes burguesa me causava náuseas. Algo não cheira bem, pairava no ar estratégia a se fingir de morta, era mais fácil dar a sentir o doce gosto de uma meia vitória de um lado já aniquilado, para se ter as babas a escorrer a boca em um banquete farto dantes lembrado, em suma, mais do que o doce êxtase do orgasmo imbuído de uma vitória completa ao resgate do poder… a vingança me tremia por dentro.
Algo de penetrante me espancava os sentidos. Meus ossos tiveram refrações múltiplas de Sedan e Belleville. Na capital francesa, a comoção da conquista explodia os órgãos vitais de cada cidadão. A consequência da repudia ao armistício era um estado de choque permanente. Ter vencido a elite burguesa foi um feito memorável. Um abalo orgânico. Não vomitarei minhas tripas se tudo isso escoar a ralo. Era hora de destruir a coluna de Vendôme. Ideia de um artista do qual devo minha vida e tenho apreço. Uma época de insurreição para nós Communards. A guerra franco-prussiana parece não acabar. Não havia mais valas a se abrir, já estavam à espera de gente… morta; o cemitério não os esperava, ali jaz os banqueiros filhos de Deus e irmãos do Espírito Santo. Era impossível contar os mortos, tamanha correria dos dias, tenso… tudo me vinha tenso.
Almas patriotas em alto tom. Ecos em todas as direções. Pelos trabalhadores! Por Paris! A coluna de Vendôme sucumbirá. Esses eram os planos. 14 de setembro, uma petição da Defesa Nacional alimentou nosso desejo de equidade. Avante Comuna! Esse monumento da barbárie é símbolo da força desnecessária e da deslealdade. Avante Communards! O pedestal é um insulto dos vencedores aos vencidos. “Liberté, égalité, fraternité”. “Vive La Commune!”. Uma multidão caminhava em direção à Praça Vendôme. Decididos enfim, colocamos tudo abaixo. O suor escorria nossas faces. A tensão que nunca saíra de nossas expressões parecia tomar-nos de assalto. Momento de bravura. O ar estufava o peito de coragem. Os gritos de igualdade e liberdade surgiam, emendavam as ruas num acústico impetuoso. Esparta já não era história.
Veias latejantes, impulsionavam-nos em coragem tamanha febre consumida ao sentir toda a gente à nossa volta. Buscávamos a fraternidade, pois somos, também, filhos de Deus como qualquer outro nascido nesse Planeta, ou não? Somos o quê? Humanos para cima e para baixo, o limbo me interrogava constantemente. As marchas vinham de todos os cantos, de todos os bairros. Reunidos na praça, agora, já nesse instante a pensar. Amarramos cordas fortes ao redor de toda a coluna até ao topo. Puxem… puxem! Napoleão ao chão. Outra vitória a nos poluir a alma de sonhos. A glória não poderia ser breve, a magia poderia acabar, mas ali não, não hoje, não amanhã, nunca quiçá, e não dei por conta dos recados ocultos. Pensava em tudo e no instante rodeado de estrondos. Tínhamos que usar o cobre exorbitante da coluna para construir armas. Algo me dizia para não baixar os olhos. Mesmo nas vitórias uma empáfia ventania varria a emoção contundente das minhas vistas. Depois de algumas horas, a praça se esvaziou. Algumas reuniões se efetivaram. Tudo parecia caminhar bem, conforme planos, o sonho sonhado, o desejo quisto. Não percebia que o mal do assombro seria agouro.
Em uma manhã fria, sem bem levantar meu cadáver da cama, os bombardeios começaram. Reunimo-nos às pressas. Escondemos as crianças. Os canhões cuspiam fogo da Colina Montmartre. Pai, não nos deixais! Justo agora que os pobres pararam de pagar impostos discrepantes, que Sacerdotes e Bispos corruptos foram presos, que conseguimos reabrir fábricas. Não! Não irei sucumbir, avante Communards! Os gritos repercutiam e agudavam-se em todas as direções. Desespero. Mulheres a assumir frente de barricadas, frente ao inimigo na batalha. Não foi diferente, colocamos fogo em pontos estratégicos, queimamos os prédios, o Castelo das Tulherias, ruas inteiras foram consumidas pelas labaredas. Enquanto dormíamos em nossa estúpida comoção cerebral, Thiers reforçava-se com a Prússia. Na surdina, o plano do massacre. O fogo se espalhava. Soldados presos na primeira revolta foram libertos e forçados a lutar contra nós. Covardes! Não sei mais, mudar de lado parece cruel, preferir viver parece válido. Talvez não haja escolha para viver ou morrer.
Estavam em maior número naquele momento, porém, nosso civismo transcendia a pusilanimidade. Gritos, logo tudo estava em chamas. Corremos. Soldados fizeram um cerco por toda Paris. As mulheres continuaram incendiando prédios estratégicos para dificultar o acesso dos inimigos, mas aos poucos, uma a uma, eram pegas e fuziladas. Recordo-me de estar em fuga, estava suja e cheirando a querosene. Os corpos dos Communards mortos espalhavam-se pelas ruas. Na correria qual nos deparávamos, em fuga, tropecei em uma pilha de corpos ensanguentados em uma esquina. Algo saiu errado, pensei que fosse de raspão o tiro. O ar me faltava, estava sufocada pelo terror horrendo que se ascendia em mim. Incendiava-me, sentia a pele queimar, outros furos na alma, outros cortes na vida. Logo à frente, algumas mulheres foram pegas, fingi-me de morta, ao chão já estava por minutos. Colocaram-nas contra parede e fuzilaram todas. Não as fizeram prisioneiras, nem as deram o direito de responder sobre o ato, não foram estupradas como de costume em toda a guerra. Não tiveram tempo de se despedirem de seus filhos e maridos. Foram-se como tantos outros. A semana sangrava-me as vísceras através da retina.
Minha paz não merecia o ódio horrendo dos olhos daqueles soldados. Eles lutavam pelo quê e por quê? Thiers maldito! Chacinou seu próprio povo em nome de quê? De uma burguesia cuja altivez era emblema? Eis os adjetivos que os impetram orgulhosos arrogantes, miseráveis prepotentes. A presunção era vizinha madrasta, enquanto se cobriam de superioridade, cruéis tornavam-se, assumidamente intolerantes com aqueles que nada tinham. Mendigar para eles era uma vergonha, não queriam ver, ouvir ou assumir a desigualdade. Nunca planejaram mudanças, senão aquelas que dessem literalmente fim aos pobres, um fim negacionista, é como negar que existe, mesmo existindo uma imagem corpórea perambulando nas ruas, esse ar supremo, não declinava, era como que os baixos fossem invisíveis. Não era necessário fazer nada a quem não existe. Todos os horizontes giravam em torno de minha palma, a calma que me cercava a alma, nada mais era sombra. O sangue de tantos forrava as ruas, não havia mais como negar que estávamos perdidos.
Na rua Lafayette vi um amigo morrer, era Eugene. Ele não se entregou, lutou contra sua captura até o último instante. Amarraram seus braços, fizeram-no andar sob golpes dos fuzis. Eu estava escondida, escutei ele gritar “Por Paris, pela comuna!”, muitas vezes. A cada porrada que levava dos soldados, levantava-se e gritava mais. O levariam para a Colina de Montmartre. Chegaram do lado de onde estava escondida, caída ainda naquele minuto, perto de uma casa abandonada. Pude ver parte do osso de seu crânio afundado e outro exposto, um de seus olhos saltou para fora. Sangrava muito. Fizeram-no andar mais e o perdi de vista. Arrasada, sozinha, como poderia ajudar. Minhas lágrimas não se continham. Não conseguia sentir ódio, só a compaixão me habitava. Seu destino seria a morte, seu corpo seria cravejado de balas. Uma parte dos parisienses que não comungavam com nossas ideias, ficavam eufóricas com a surra que Eugene levava. Em uma rua qualquer eu escutei os tiros. Meu coração já sabia, tive a certeza de sua morte.
O 28 de maio clareou, pensava ser mais um dia de batalha, a Comuna estava fraca, mas ainda tínhamos coração. As lutas foram cada vez mais vorazes, qualquer suspeito era imediatamente fuzilado. As tropas de Versalhes avançavam a cada bairro. Restava a Comuna erguer mais e mais barricadas com pedras e sacos de areia. Isso não os impediriam, mas os atrasariam. Inúmeros foram os reféns, porém, no cunho da maldade todos foram fuzilados. Vi o Arcebispo de Paris em um dos fuzilamentos, era simpatizante da nossa causa. Os mortos eram de perder de vista. Os defuntos exalavam um odor insuportável. Seus corpos eram lançados em lagos, depois flutuavam podres e cheios de gases. Eram retirados e empilhados à margem, as barrigas explodiam deixando putrefata toda Paris. Não devia haver um cidadão que aguentasse se sentar à mesa nas refeições, tamanha esfera fétida das decomposições largadas ao léu. A barricada foi tombada, era nosso fim. Sentia ter sido capturada. Rumo a um muro frente a um jardim. Todos foram fuzilados.
A semana sangrenta terminara, os cadáveres estavam espalhados em quintais, ruas, parques, igrejas, dentro de lugares usados para refúgio. Muitos adolescentes foram friamente aniquilados. Fora o maior massacre que a França proporcionou contra seu próprio povo. Nós fomos vistos pelo mundo posteriormente como a primeira República Proletária, adotamos o socialismo, éramos bons. Volta e meia me dói o pulmão, nunca me dou conta do que me atingira na correria dos dias de incêndio. Conto vagamente as lembranças que tenho daqueles dias de glória e derrota. Ainda sinto me asfixiarem o discurso. A sensação de falta de ar sempre me acompanhou. Mesmo quando morri de fome, quando morri no estupro e quando morri naquele tropeço. Eu ainda vejo tudo repassar. Minha mente perambula por Paris. Fica vagando entre as ruas. Nem tudo foi em vão. Muito conquistamos com nossos esbaforidos gritos e vulcânico sangue.
As temperaturas que elevavam os sons dos corações em um único pronunciamento de unificação “Vive La Commune”. Era o que me movia, e é o que me move até hoje, todas as vezes que a noite cai, ouço os passos noturnos vindos de todas as direções, querem me pegar, meus olhos ainda são vigilantes, mas sou levada por um sopro de vida, vinda dos ventos da colina à Praça Vendôme. Fico a observar a coluna ressurgida. O insulto fora reerguido. Meu estômago contorce-se de dor, as tripas enfurecidas sangram a fome no oráculo da vergonha. Poderiam erguer uma barricada em minha homenagem, seria melhor elogio. Ou um muro bem alto e cravejado de balas. Os ventos continuavam a assobiar em meu ouvido, muitas e muitas noites. Vejo vultos de almas passarem lado a lado em direção à Praça Vendôme. Elas me olham, esperam que ser acompanhadas por mim, estendem-me a mão em súplica. Eu vi Eugene, Courbet e tantos outros me estenderem as mãos, seus olhos cheios de lágrimas.
Agora podem chorar o que dantes estava lhes sufocando. Adeus Louise. Tu foste inspiração em meus hábitos, entretanto, nunca senti paz, não consigo partir. Todo 31 de outubro, ao abrir dos olhos, deparo-me com a Coluna Vendôme. Meu coração não sabe o que sente, talvez a paulada na cabeça deve ter massacrado meus miolos, de certo modo sim. Antes do sangue coagular a cavidade craniana expeliu pedaços da mioleira dos centros nervosos. Desarquei-me, eu vejo os rastros dos passos. O cheiro de enxofre me aguça as narinas. Não ouço nada, um vazio constante desde Sedan. Olho para os meus desejos e vejo os ratos entrando em minha boca. Canalhas! Não lhes darei nada, não consigo levantar, vagamente me recordo, eles me sufocaram, comeram minha carne. Meu desejo tornou-se sombra.
Não sei do tempo, espero que ele esqueça de mim. Eu leio um jornal caído a meus pés em frente à coluna. Ali diz, 31 de outubro de 2016, comemorações da semana. Surgem listas imensas de festas. Pergunto em que parte do trajeto me perdi. Não sinto nada, a dor é uma lembrança e a fúria não se tornou ódio. Ainda penso em não abrir os olhos, mas os gritos ecoam por todo o meu corpo, perturbam-me. Querem outro plano, mais fogo, mais buracos de bala. Hades versa meus passos bem antes de 1848. Não posso ir contigo Eugene. No próximo 31 deverei voltar. O fogo cospe meu nome. Conflito-me, intimido-me. Vago por Paris a buscar o que não se conseguiu deter.
Quinta das Lágrimas