A ti que lês
Que um poema possa ser um rio
Contido por margens invisíveis
Que tu possas ser o mar
No qual ele se irá afundar.
A ti que lês, Parte dois
Quando eu tiver terminado acreditarás em mim
Acreditarás que sou uma poeta de verdade
Ou pelo menos me perdoarás
Por ter dito coisas que não querias ouvir
Dizendo em voz alta o que é melhor não ser dito
– porque as palavras não podem consertar aquilo que está irremediavelmente partido –
Se eu partilhei de mais, peço perdão
Por forçar-te a carregar um peso que é só meu,
Se é este o caso, esquece tudo o que disse
E não percas mais tempo comigo: scrivo solo per sfogar l’interna doglia1.
A ti que lês, Parte Três
Se eu te pedir, podes me levar
Se eu te implorar, podes me seguir?
Um poema é um poço sem fundo,
Um mergulho no vazio
Arcado de uma alma.
Se ele aponta para o incómodo
Não fiques desiludido,
Mas antes grato:
Esse é o caminho
Que as palavras traçaram para nós.
Agora, queres caminhar
Comigo?
Por favor.
Dá-me a tua mão.
As cataratas
Levar-te-ei às cataratas quando estiverem geladas
Quando a sua garra branca agarrar a terra
Quando a sua voz for o som de um coração a pulsar
Levar-te-ei às cataratas, mas só quando estiverem geladas
Ficaremos a olhar para o seu grito silencioso, tão chocados como elas
E nessa impotência encontraremos para nós um chão comum.
Eu não sou como tu
Eu não sou como tu, eu não sou como tu e nunca o serei,
Deixaste isso suficientemente claro, Terra mãe adotada!
No teu coração pulsante de cidade eu era uma “acabada de chegar”
Uma rapariga drogada estava deitada no chão no frio
Eu olhei para ela e o meu olhar demorou-se de mais
“Eu não sou como tu” – Gritou ela – “Eu não sou como tu puta!”
Agora é a minha vez – Eu sou aquela que está a ser vista
É a minha vez de gritar, amaldiçoar, com estrondo o meu desassossego
“Eu não sou como tu, eu não sou como tu”, e ainda assim
Sempre que sonho partir tu arrastas-me de volta.
A cidade dos dois rios
Eu nasci numa cidade de dois rios
Nenhum deles é como o Tejo
Nenhum deles vai para a América,
A América que mantém
o meu corpo recluso, embora
a minha alma gira e gira em terra de ninguém.
Eu nasci numa cidade de dois rios
Nenhum deles atravessa uma aldeia
Como os rios abraçam
A minha cidade por ambos os lados
A cidade que eu rejeitei, a cidade que eu desprezei
– As memórias que me criaram, com tudo o que isso significa
A cidade que eu olho para trás quando seguro a respiração.
Maio
Nunca te contei que em criança escrevi
Um poema que falava de Maio
– da primavera, flores e passarinhos
E do perfume ao sair da escola
Agora maio só me traz malas
E aeroportos e dores de cabeça de jet lag
Apresenta-me esta vida suspensa entre dois lugares
O tempo entre duas realidades
Tive “excelente” no poema sobre maio
Não sei que nota dar a mim próprio agora
Não sei se se pode dar uma nota
A escolhas que se tornam destinos
Não sei se maio é felicidade ou arrependimento
Mas sei que muda a alma e não apenas o céu
De todos nós que cruzamos os mares
Eu vi a Beleza (e não sou já a mesma)
Eu vi a Beleza na cidade que amei
– A cidade que amei, que me foi retirada –
Eu vi a beleza no amor que é dado livremente
Eu vi a beleza nas memórias que guardo
Eu vi a beleza e não posso já ser a mesma.
Eu vi a beleza na história que nos ciou
Eu vi a beleza no acaso e nos padrões
Eu vi a beleza no mais inóspito dos arredores.
Como vou suportar a austeridade que me rodeia
Quando vi beleza e não sou já a mesma?
Carris
Se lamento o cheiro dos carris
Não é melancolia, não é desespero
Mas a lembrança do que se foi
Que eu deixei sem solução
Peço desculpa à rapariga de vinte anos
Que perseguia os comboios regionais
Com um saco demasiado grande ao ombro
E um cigarro mal segurado nas mãos.
Nota
1 Verso da poeta renascentista italiana Vittoria Colonna.
Paola Ugolini nasceu em Modena, Itália, onde obteve a sua licenciatura pela Universitária de Bolonha. Mudou-se mais tarde para os Estados Unidos onde terminou o doutoramento na Universidade de Nova Iorque. É Professora Associada de Italiano e Estudos Globais de Género e Sexualidade na Universidade de Búfalo. Escreve poesia em italiano e em inglês.