Cultura

Poemas | Paola Ugolini; trad. Nuno Brito

Foto de Ganapathy Kumar

A ti que lês 

 

Que um poema possa ser um rio

Contido por margens invisíveis

Que tu possas ser o mar

No qual ele se irá afundar.

A ti que lês, Parte dois

 

Quando eu tiver terminado acreditarás em mim

Acreditarás que sou uma poeta de verdade

Ou pelo menos me perdoarás

Por ter dito coisas que não querias ouvir

Dizendo em voz alta o que é melhor não ser dito

– porque as palavras não podem consertar aquilo que está irremediavelmente partido – 

Se eu partilhei de mais, peço perdão

Por forçar-te a carregar um peso que é só meu,

Se é este o caso, esquece tudo o que disse

E não percas mais tempo comigo: scrivo solo per sfogar l’interna doglia1.

 

A ti que lês, Parte Três

 

Se eu te pedir, podes me levar

Se eu te implorar, podes me seguir?

Um poema é um poço sem fundo,

Um mergulho no vazio

Arcado de uma alma.

Se ele aponta para o incómodo

Não fiques desiludido,

Mas antes grato:

Esse é o caminho

Que as palavras traçaram para nós.

Agora, queres caminhar

Comigo? 

Por favor.

Dá-me a tua mão.

 

As cataratas 

 

Levar-te-ei às cataratas quando estiverem geladas 

Quando a sua garra branca agarrar a terra 

Quando a sua voz for o som de um coração a pulsar 

Levar-te-ei às cataratas, mas só quando estiverem geladas 

Ficaremos a olhar para o seu grito silencioso, tão chocados como elas 

E nessa impotência encontraremos para nós um chão comum.

 

Eu não sou como tu

 

Eu não sou como tu, eu não sou como tu e nunca o serei,

Deixaste isso suficientemente claro, Terra mãe adotada!

No teu coração pulsante de cidade eu era uma “acabada de chegar”

Uma rapariga drogada estava deitada no chão no frio

Eu olhei para ela e o meu olhar demorou-se de mais

“Eu não sou como tu” – Gritou ela – “Eu não sou como tu puta!”

Agora é a minha vez – Eu sou aquela que está a ser vista 

É a minha vez de gritar, amaldiçoar, com estrondo o meu desassossego

“Eu não sou como tu, eu não sou como tu”, e ainda assim

Sempre que sonho partir tu arrastas-me de volta.

 

A cidade dos dois rios

Eu nasci numa cidade de dois rios

Nenhum deles é como o Tejo

Nenhum deles vai para a América,

A América que mantém 

o meu corpo recluso, embora

a minha alma gira e gira em terra de ninguém.

Eu nasci numa cidade de dois rios

Nenhum deles atravessa uma aldeia

Como os rios abraçam

A minha cidade por ambos os lados

A cidade que eu rejeitei, a cidade que eu desprezei

– As memórias que me criaram, com tudo o que isso significa

A cidade que eu olho para trás quando seguro a respiração.

 

Maio 

 

Nunca te contei que em criança escrevi 

Um poema que falava de Maio 

– da primavera, flores e passarinhos

E do perfume ao sair da escola 

Agora maio só me traz malas 

E aeroportos e dores de cabeça de jet lag 

Apresenta-me esta vida suspensa entre dois lugares 

O tempo entre duas realidades 

Tive “excelente” no poema sobre maio 

Não sei que nota dar a mim próprio agora 

Não sei se se pode dar uma nota 

A escolhas que se tornam destinos 

Não sei se maio é felicidade ou arrependimento 

Mas sei que muda a alma e não apenas o céu 

De todos nós que cruzamos os mares

 

Eu vi a Beleza (e não sou já a mesma)

 

Eu vi a Beleza na cidade que amei 

– A cidade que amei, que me foi retirada – 

Eu vi a beleza no amor que é dado livremente

Eu vi a beleza nas memórias que guardo

Eu vi a beleza e não posso já ser a mesma.

Eu vi a beleza na história que nos ciou

Eu vi a beleza no acaso e nos padrões

Eu vi a beleza no mais inóspito dos arredores.

Como vou suportar a austeridade que me rodeia

Quando vi beleza e não sou já a mesma?

 

Carris

 

Se lamento o cheiro dos carris 

Não é melancolia, não é desespero 

Mas a lembrança do que se foi 

Que eu deixei sem solução

Peço desculpa à rapariga de vinte anos 

Que perseguia os comboios regionais 

Com um saco demasiado grande ao ombro 

E um cigarro mal segurado nas mãos.

 

Nota

 

1 Verso da poeta renascentista italiana Vittoria Colonna.

 

Paola Ugolini nasceu em Modena, Itália, onde obteve a sua licenciatura pela Universitária de Bolonha. Mudou-se mais tarde para os Estados Unidos onde terminou o doutoramento na Universidade de Nova Iorque. É Professora Associada de Italiano e Estudos Globais de Género e Sexualidade na Universidade de Búfalo. Escreve poesia em italiano e em inglês.

 

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