Poemas | Maria Azenha
FILMAGENS
Take 1
Quem sou?
– Perguntei a Deus. –
Ele é director de cinema,
anda sempre com uma Câmara
filmando o Filho. Já filmou a minha boneca
gritando por socorro.
Take 2
A boneca ficou pendurada no ar
presa a um guindaste que era um braço
da minha mãe.
Take 3
Eu estava sentada no chão.
E comecei a rir-me.
***
UM DIA, SE QUISERES
(Folhas secas de outono incendiando a língua dos mortos
e alguém deste lado das sombras
a contar pedras no silêncio…)
Continuas aí, Norma Jeane,
a romper os espelhos de Los Angeles
à espera de uma porta que se abra
e que te diga “amo-te”?
Deves saber
que os orfanatos não têm telefones
para o silêncio.
Um dia, se quiseres,
manda-me pelo WhatsApp uma mensagem.
Sabes que estou aqui.
***
A PRETO E BRANCO
Escrevi um poema.
– Ah, sim?
Ei-lo:
011001000111001
010001110011001
010000111110001
011110011100011
000001100111101
This is beatiful.
Thanks.
***
A MAIS BELA ENTRE OS MORTOS
Prefiro histórias com pessoas que se matam
dentro de casas entre lençóis brancos
porque têm muita fome de Deus.
Uma vez uma criança que dormia
viu Deus abrir um buraco no coração de Marilyn.
Marilyn, cheia de medo, abriu uma cova
e escondeu-se lá dentro.
Agora todas as noites outros mortos
cavam muito fundo dentro da terra
para conhecer o coração de Marilyn
***
POETA À CIVIL
O meu Pai dorme.
Vai para muitos séculos de prisão.
Traz na mão uma carta que nunca me foi entregue. E
foi assim que resolvi exercer o meu ofício de poeta à civil.
Quando era criança julgava-me imortal.
Na minha cabeça
ainda estão alojados alguns fragmentos dessa memória.
***
BLUETOOTH
O poema começa com uma aranha à mesa
de trabalho. Trémulo
tece
uma teia fonética.
O poema é o bluetooth do século.
***
INFÂNCIA BREVE
Com cinco anos aprendeu que estava só
ficava com os séculos e um quarto
onde podia arrumar os pés
pensava: o universo é mais perfeito com os mortos.
***
ABRO A PORTA DA NOITE
Abro a porta da Noite.
Pico-me em alfinetes transparentes no livro das Nuvens.
— os livros abrem grandes feridas —
Poderia haver ao menos um aviso nas estrelas
para quem os abrisse.
Ao poeta não serviria de nada.
***
VISÃO
Vi uma mulher que escrevia com o sangue de Cristo.
O único sangue que existe e não existe.
***
SEGREDO
Nunca antes tinha rasgado
as folhas deste caderno.
Podes ler-me
no vazio que ficou,
como se fizéssemos parte da mesma irmandade.
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