Poesia & Conto

Poemas | m. parissy

escutar-te é ter pólen nas mãos

e esperar que o tempo venha fertilizar-te

 

escutar-te é possuir

o desejo dentro da pele

assim como estufa que se abre para a pulsação

 

és o meu pedaço favorito

de todas as flores

 

(in pólen, volta d’ mar, 2011)

 

 

Movia-se em poucas vertigens. Uma: tomava asas em redor do milho que oferecia aos pombos quando visitava a cidade. Como um corpo tatuado que se observa com admiração a luminosidade de quem faz um sol por baixo da língua. 

A água rompia o empedrado. Gesto que debruçava a paisagem sobre uma criança de camisola de malha branca e calções de veludo. Mas sempre seguro pela mão.

 

Outra: na primeira praia, um amontoado de destroços de madeira. Uma impressão de terror que descia da encosta verde e se enfiava no areal. Havia ali casas. E um fotógrafo de cenários para os de fora. Como se a imagem bruta do rochedo nada fosse. Como se nada ali existisse.

 

(in Ferido, volta d’ mar, 2016)

 

 

 

Os cães e o Mário Botas

 

Um homem, dois cães.

Uma espécie de vaga impertinente, fúria que revolvia na areia molhada os despojos de escamas.

 

Um azul-cinza prolongava a névoa. Cenário de contraste para quem vestia camisa branca, larga, quase rodada sobre o esqueleto frágil. Cana nas mãos, calças arregaçadas.

 

Caminho desalinhado pela correria elegante dos galgos,

animais de pernas altivas, focinho bicudo.

Desenhavam prismas com o recorte do ar,

cortinas que protegiam o amo.

Era um dono cercado, com ele não se falava, não se sabia como.

 

Por detrás, havia um sonhador pronto para a morte. Assim parecia, visto do paredão.

 

Os galgos levavam nos olhos uma cegueira que usavam

quando se revelava a luz de prata.

 

Daqui avistavam-se as obras do porto

e no meio, um vulto que dançava com os cães

e que se dissipava facilmente.

 

(in à frente do mar, Eufeme, 2021)

 

 

As mulheres seguravam a cabeça com as duas mãos, como se houvesse uma representação, mas não se conhecesse o enredo. A praia tornava-se cinzenta. 

 

Frente à Capitania havia uma luz de receio. Os gritos ecoavam como ondas sonoras que contornavam o rochedo e regressavam. Como uma acusação que a todos se entranha.

Quem ali está derrama líquido pelo corpo, petrifica o sal, tolhe-se. É um outro túnel por onde não se volta.

 

Colavam-se ao portão de madeira, tentavam decifrar as comunicações. Não havendo relatos do que se perdeu, perdeu-se tudo.

 

Ouviam-se gritos por causa do mar.

 

(in à frente do mar, Eufeme, 2021)

 

 

 

O mar atira-se para dentro dos sonhos. Leva bocados de silêncio, luzes que florescem junto com o cabelo, alguns astros que não têm nome.

É comum abater-se sobre quem se senta em frente dele, uma colecção de rugas.

É como uma massa que nasce de dentro e que ao olhá-la consegue-se transmudar, procurando o dia estável, cheio.

 

Já viste como se estende apenas de dia?, perguntas sempre e não tens resposta.

 

(in norte, fala e légua, Companhia das Ilhas, 2021)

 

 

 

Venenos apanhados à mão

Carnaxide

 

Algumas das conchas

permanecem nas pequenas taças

que compõem

o arranjo do móvel da sala.

 

Estão frente aos livros de Vergílio Ferreira.

Ao lado, dois retratos dos filhos.

 

Dessa composição saem

nas noites de lua

um grupo de estrelas e ouriços

para limparem os venenos.

 

(in Incêndios de Rua, Companhia das Ilhas, 2023)

 

 

Nevoeiro

na estrada para a Calheta, S. Jorge, depois de ler Jaime Rocha

 

Estamos ocultos no nevoeiro. É impossível saber o que há para lá do espelho. Sujeitamo-nos às vacas que, felizes, dizem, cobrem os pastos e atravessam as estradas brincando com a morte sem que dela saibam. Perdemos as agulhas que nos apontam os nortes e os caminhos que o corpo possa tomar dentro da humidade. Curvamos para um território desconhecido, como uma paixão súbita. Acendemos as luzes para que haja apenas um pouco do tempo verdadeiro. Embora nada do que se possa fazer nos traga uma incandescência, um lume, um lugar certo. 

Estamos ocultos, apesar da dança das nuvens que nos cercam, das

flores regadas em permanência para que possam florir o caminho.

 

(in Incêndios de Rua, Companhia das Ilhas, 2023)

 

Fotografia de m. parissy

m. parissy (Nazaré, 1969) É pseudónimo. Tem publicados vários livros desde 1989, sendo o mais recente «Incêndios de Rua», edição Companhia das Ilhas, 2023. Participou em várias antologias, revistas e fanzines. Informação mais detalhada na página do autor mparissy.wordpress.com ou no instagram 

https://www.instagram.com/m_parissy/

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