Poesia & Conto

Poemas inéditos | André Luís Câmara

Circunstâncias

 

Marola, marulhada,
vim molhar a palavra,
colher boa conversa,
balé das gaivotas,
a brisa se espreguiça,
folhas da amendoeira
se espalham na calçada,
eu me esqueço da pressa,
a tarde se desmancha,
ao longe uma barqueta
exposta às circunstâncias.

 

Botequim¹

                             a Filipa Martins

Ah! que dias chuvosos, de humores
um tanto quanto estranhos, agonia
que vai e volta, vento que assovia
e resfria e incomoda, entre rumores
de que vai ser assim, dia após dia,
vírus de desencontros, desamores,
ladainhas de hipócritas doutores,
e afinal o que você queria

ao imitar um desses vis pastores?…
Deixar, sei lá, pra alguém que então sofria
um naco de esperança ou má poesia?
Ouça, lembra da voz lá dos Açores:
Natália erguia a taça e então se ria
com brindes de ironia aos fingidores.

 

Lendo jornal em frente à Praça General Osório

 

Vai luz.
Vai câmera.
Vai ideia, solta, rodando.
Não era Monte Santo nem mesmo o Parque Lage
nem tinha capoeira como em Barravento
e nem se suspeitava que, dali a mais um pouco,
apareceria a pneumonia em Portugal,
que o levaria à septicemia fatal,
ao menos, naquele momento corriqueiro, 

era simplesmente camisa social
de manga curta aberta ao peito,
vestia um short e talvez estivesse de chinelos,
do que me lembro bem era do jornal 

que ele lia em pé, era quase pose 

pra foto de jeito despojado
com cabelos desgrenhados
como quem se acostumou a ser observado,
a despertar olhares curiosos
enquanto no Caruso pessoas logo deixariam a sala
no meio das primeiras sessões de A idade da Terra,
e, embora, não fitasse os passantes em volta,
era como se dissesse: menino, daqui a tempos,
você há de contar que, certo dia, no fim do último ano
da década de 1970, você viu Glauber Rocha lendo jornal
em frente à Praça General Osório, na Visconde de Pirajá,
inventando uma ideia de filmar A menina morta
trinta anos antes de Caetano estacionar o carro no Leblon.
Corta.

 

Decomposição do álbum³

 

Diz que se trata dum polímero,
chamam de polissacarídeo,
apesar de não digerível,
mais comum ouvir: celulose,
que é do que se constitui
esse papel ora encardido,
papel-cartão de tempos idos,
mesmo o papel de seda pode
se tornar áspero e sem viço,
um papel quando se degrada,
despedaça, quebra, é um risco
pra o objeto que se guarda
em papel que se esfarela,
um álbum de fotografias
tem sempre a probabilidade
de se desfazer, extinguir,
substâncias perecíveis
não conseguem assegurar
durabilidade maior
a algo que se quer preservar,
se não houver especial
cuidado com o objeto,
um álbum de fotografias
deve ter o seu lugar certo
numa casa, num escritório,
centros de documentação,
antes que não seja seguro
deixar nele tantas imagens,
são registros de uma vida
que ninguém irá repetir,
um álbum de fotografias
é único, peculiar
existência de conter
uma série de vivências,
capítulos inacabados,
contos sem um ponto final,
uma obra aberta, eis aí,
sequências se desmontam,
roteiros se desestruturam,
nessas fotos esmaecidas
se torna impossível reter
o instante a se acabar,
talvez no meio digital
fosse bem outro esse destino
de imagens assim a sumir,
se bem que sempre há o problema
de algum HD que queima,
de um arquivo perdido
por engano ou pique de luz,
o álbum a que me refiro
é esse, feito dum polímero,
chamam de polissacarídeo,
apesar de não digerível,
mais comum ouvir: celulose,
aos poucos fotos se descartam
do papel-cartão já sem a
delicadeza do papel-
manteiga que envolvia a página,
aparentava proteção,
e agora é quase patética
a situação desse álbum
que está a se desmilinguir
como se nele houvesse a vida,

e há mesmo nele a vida
de uma fibra vegetal,
vida de momentos tão breves,
álbum de folhas maceradas
por festa, alegria, aflição,
dores, euforia, conquistas,
são dispersas recordações,
relíquias, quinquilharias.

 

Notas

¹ Em abril de 2020, comecei a fazer um poema em que, de repente, ao procurar uma rima, me apareceu o arquipélago dos Açores, em Portugal, sem que eu tivesse relação com o lugar ou pensasse em escrever algo a respeito. Ao longo de dois anos e, após diversas modificações, cheguei à oitava versão do poema, que primeiro se chamou “Provérbio dos Açores” e, posteriormente, “Frase dos Açores”. Havia uma mulher, com uma taça, a quem chamei de Eugênia, e assim ficou. Na oitava versão, eu já me encontrava encantado pela obra e a vida de Natália Correia, grande poeta (preferia ser chamada de poetisa) portuguesa, que custei a conhecer. Em setembro de 2022, ao ler um artigo da escritora Filipa Martins, que prepara uma biografia da poeta nascida nos Açores, em Fajã de Baixo, na ilha de São Miguel, e morreu em Lisboa, em 1993, vi que eu poderia (e queria) me referir a Natália Correia e ao seu famoso bar e restaurante, o Botequim, ponto de encontro de intelectuais e artistas. Adorei quando percebi mais perto de mim esse poema.

 

² Mais famoso romance de Cornelio Penna, A menina morta quase virou filme dirigido por Carlos (Cacá) Diegues, que incluiu citações ao livro em trechos de Quando o Carnaval chegar, de 1972. Glauber Rocha também pensou em adaptar essa obra para o cinema. Ele foi casado com Rosa Maria Penna, parente do romancista e atriz de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969, com o qual Glauber ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes.

 

³ Agradeço à química e professora Luiza Albuquerque, do Comitê Científico da Olimpíada de Química do Rio de Janeiro, pela gentileza de sua leitura e de suas sugestões.

Fotografia de André Luís Câmara

André Luís Pires Leal Câmara nasceu no Rio de Janeiro em 1965. Poeta e jornalista, é mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Desenvolve atividades em pesquisas literárias e musicais, produção de conteúdo para mídias digitais e impressas, e revisão de textos. É pesquisador-bolsista do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB-FCRB) no Rio de Janeiro. Lançou os livros Rua sem saída (2018) e Desgaste (2020), ambos pela Patuá, além de integrar a Antologia Ruínas (2020) e a Antologia Patuá + Patuscada 10 anos (2021), publicadas pela mesma editora. Escreve letras para canções e mantém no YouTube um canal com leitura de seus poemas, além de produzir o Diz um verso aí, um podcast disponível em plataformas digitais. Os poemas aqui reunidos estão em seu novo livro, a ser lançado em breve pela editora Patuá.

 




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