Poesia & Conto

Poemas | Fernando Esteves Pinto

Foi a disciplina do espírito que preservou a humanidade, mas os instintos que a combatem são ainda tão poderosos que em suma só se pode falar com pouca confiança no futuro da humanidade.

Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência

 

 

1.

 

Que todos os dias sejam a tua arte.

E com ela faças libertar da escravatura da solidão 

o pânico das tuas ficções.

 

Que a realidade obscurecendo a consciência

seja a grandeza da ocultação.

 

Uma natureza do pressentimento que sobrevive

no nada em cada coisa plena e elevada

se a perfeição e a ordem forem um problema de equilíbrio

ou uma celebração que recusa exprimir o que é visível.

 

Porque nada é perfeito racionalmente ordenado.

Nem tudo é real que no espelho das incertezas

permaneça lúcido e individual. 

 

2.

 

Se o mundo se alheia do seu paraíso, abandona-o.

Há pensamentos que deliram por tédio e neblina

e requerem lugares fundos.

 

Estas palavras têm um tremor escuro.

São canções bruscas que sopram harmonias que ensombram.

 

Às vezes a consciência é um exercício de demência

funde na mente paixões únicas tumultuosas.

 

Vozes que à boca do silêncio 

só a loucura sabe entoar.   

 

3.

 

O que te passa pela cabeça apenas fende a escuridão 

– essa arquitectura infindável e ausente.

 

É um vazio pensado na consciência.

Uma fascinação que o silêncio perturba.

 

Pensamentos que são catástrofes pacientes

se as palavras pela força imensa

tendem para infernos esplêndidos.

 

Às vezes sustentas uma ponta de luz e espanto.

Vozes apressadas nas suas correntes em tumulto

que não atingem nenhuma altura

e não pertencem sequer ao pensamento.

 

Criações que em profunda vertigem se extinguem.

 

4.

 

Ausenta-te do que inocente te pode corromper

se tudo o que é perfeito iludiu a ciência do caos.

 

E o medo tão grave é humano

que todo o mal é uma engenharia do espírito.

 

Estremecimentos últimos extraídos do coração

se o erro é o abalo profundo

absoluto no seu perigo – fechada linha de morte.

 

Onde tudo se cala e tudo se purifica:

e só a luz se move ainda tão forte.

 

5.

 

Alguma coisa eterna há-de o tempo evocar

quando num lugar muito límpido

traçares uma encruzilhada de antepassados

ou um campo de memórias anunciando-se 

às coisas reaparecidas.

 

Que um deus limpo e permanente 

se aposse de um tempo sem origem

como sendo a vida um eco 

e acabada no princípio.

 

Assim a razão que se apodera do nada 

e fundamente é legítima

para criar pavor onde não houver um fim

apenas um temível plano 

onde o mundo é um novo instrumento 

de infortúnio e ruína.

 

6.

 

Incapaz de qualquer promessa

a tua evidência é uma canção de luz 

que dá esperança.

 

Brilho fremindo dentro da cabeça. 

 

Rasgão de ouro como um relâmpago tão ardente

entrando na terra única 

com a escuridão única e incêndio.

 

Que seja serena a vontade de arder:

raio que atraiçoa e desencanta as trevas.

 

Inexplorável silêncio.

 

E se não for Deus a entrar inteiro no fogo

caminharás só sobre as tuas cinzas.  

 

7.

 

São devastações anunciando-se 

como uma fera na paisagem.

Esse conflito de ser irracional 

e humano supremo.

 

Cidades que são linhas de força:

obra em pleno aço e delírio.

 

Às cidades não interessam caminhos claros

pulmões dentro das montanhas profundas

animais que se movem limpidamente desabitados.

 

Que lhes dês delineação resumida:

uma arquitectura lavrada na terra.

Alma mais que humana.

 

8.

 

Que a arte te faça entrar nas luzes.

Iluminações que irrompem do manicómio da criação

ou é a luz da cabeça que aumenta a irrealidade.

 

A arte não te faz sentir a alma.

Outro é o espelho no teu fundo de lucidez.

 

Uma epilepsia da humanidade.

 

Assim pudesses saber onde a mente  

tem as suas cavernas alucinatórias:

vozes ainda mais inscritas nas luzes mundificadas.

 

9.

  

Todos os teus pensamentos repetem o mundo

porque só o que é repetido pode ser único.

 

Só assim se vive multiplicado na obra pura

como se da ciência elevada de cada coisa

um pensamento te inundasse todo em crescimento.

 

E se fosses nascimento sucessivo e absoluto

tão pleno de tudo eras único na continuidade.

 

10.

 

Pudessem dar espírito às máquinas:

motores do ser rangendo loucamente.

 

Essa ira grandiosa que tudo cria na destruição.

 

E são máquinas levantando cidades e sombras.

Forças monumentais como deslocamentos nas paisagens

apagando terra a terra a luz dos mapas existenciais.

 

Uma catástrofe que deixa raízes e desmoronamentos de alma

quando os territórios da natureza pelas tuas mãos chegar ao fim.

 

E haja um vácuo grave para a perpetuidade humana.

Instrumentos de fertilidade e desgraça

que pela caligrafia do perigo provoca maior ilusão.

 

11.

 

É sempre o mesmo pensamento nos seus murmúrios taciturnos

que tão pesadas imagens sobem como muros pela tua vida.

 

Condenação que da fonte da terra um dia hás-de sentir

quando da tua obscuridade refulgires de terror

como um deus alguma vez arrancado às civilizações.

 

Por inspiração vais até ao fundo da tua luz 

fixamente incendiada no que é escrito e fechado no universo

onde só existe a matéria da mortalidade

e o teu coração paciente que a escuridão há-de infundir em tudo

tal como uma visão nascente toda imensa de eternidade.

 

12.

 

Se algum deus andou por Treblinka

também pisou os seus mortos

e guardou para a eternidade o doce sangue da tragédia

para regressar um dia a esta terra vermelha

e da esponja do tempo fazer prova da sua sede.

 

Ei-lo agora deus das almas

semente antiga da humanidade

que dos campos da morte 

anuncia ao mundo símbolos de cruel memória.

 

Tivesse a história a sua matéria de luz

para evocar todas as almas serenas 

que renascem e pesam agora no céu.

 

A narração de um pesadelo que fosse remorso.

 

Fotografia de Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais. Vive em Faro.

Publicou, entre outros, Na Escrita e no Rosto (poesia) – Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura; Conversas Terminais (romance) – Bolsa de Criação Literária pelo Ministério da Cultura; Brutal (romance); O Carteiro de Fernando Pessoa (romance); A Caverna de Deus (romance) – Prémio Literário Cidade de Almada; Humanidade (poesia); Arte Humana (poesia); Coreografias da Linguagem (poesia); Fuga Intempestiva (poesia); Um Estudo do Humano (poesia); Um Homem Parado na Esquina do Mundo (romance) – Prémio Literário Alves Redol; A Força Única – Escrever (crónicas).

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