Foi a disciplina do espírito que preservou a humanidade, mas os instintos que a combatem são ainda tão poderosos que em suma só se pode falar com pouca confiança no futuro da humanidade.
Friedrich Nietzsche, in A Gaia Ciência
1.
Que todos os dias sejam a tua arte.
E com ela faças libertar da escravatura da solidão
o pânico das tuas ficções.
Que a realidade obscurecendo a consciência
seja a grandeza da ocultação.
Uma natureza do pressentimento que sobrevive
no nada em cada coisa plena e elevada
se a perfeição e a ordem forem um problema de equilíbrio
ou uma celebração que recusa exprimir o que é visível.
Porque nada é perfeito racionalmente ordenado.
Nem tudo é real que no espelho das incertezas
permaneça lúcido e individual.
2.
Se o mundo se alheia do seu paraíso, abandona-o.
Há pensamentos que deliram por tédio e neblina
e requerem lugares fundos.
Estas palavras têm um tremor escuro.
São canções bruscas que sopram harmonias que ensombram.
Às vezes a consciência é um exercício de demência
funde na mente paixões únicas tumultuosas.
Vozes que à boca do silêncio
só a loucura sabe entoar.
3.
O que te passa pela cabeça apenas fende a escuridão
– essa arquitectura infindável e ausente.
É um vazio pensado na consciência.
Uma fascinação que o silêncio perturba.
Pensamentos que são catástrofes pacientes
se as palavras pela força imensa
tendem para infernos esplêndidos.
Às vezes sustentas uma ponta de luz e espanto.
Vozes apressadas nas suas correntes em tumulto
que não atingem nenhuma altura
e não pertencem sequer ao pensamento.
Criações que em profunda vertigem se extinguem.
4.
Ausenta-te do que inocente te pode corromper
se tudo o que é perfeito iludiu a ciência do caos.
E o medo tão grave é humano
que todo o mal é uma engenharia do espírito.
Estremecimentos últimos extraídos do coração
se o erro é o abalo profundo
absoluto no seu perigo – fechada linha de morte.
Onde tudo se cala e tudo se purifica:
e só a luz se move ainda tão forte.
5.
Alguma coisa eterna há-de o tempo evocar
quando num lugar muito límpido
traçares uma encruzilhada de antepassados
ou um campo de memórias anunciando-se
às coisas reaparecidas.
Que um deus limpo e permanente
se aposse de um tempo sem origem
como sendo a vida um eco
e acabada no princípio.
Assim a razão que se apodera do nada
e fundamente é legítima
para criar pavor onde não houver um fim
apenas um temível plano
onde o mundo é um novo instrumento
de infortúnio e ruína.
6.
Incapaz de qualquer promessa
a tua evidência é uma canção de luz
que dá esperança.
Brilho fremindo dentro da cabeça.
Rasgão de ouro como um relâmpago tão ardente
entrando na terra única
com a escuridão única e incêndio.
Que seja serena a vontade de arder:
raio que atraiçoa e desencanta as trevas.
Inexplorável silêncio.
E se não for Deus a entrar inteiro no fogo
caminharás só sobre as tuas cinzas.
7.
São devastações anunciando-se
como uma fera na paisagem.
Esse conflito de ser irracional
e humano supremo.
Cidades que são linhas de força:
obra em pleno aço e delírio.
Às cidades não interessam caminhos claros
pulmões dentro das montanhas profundas
animais que se movem limpidamente desabitados.
Que lhes dês delineação resumida:
uma arquitectura lavrada na terra.
Alma mais que humana.
8.
Que a arte te faça entrar nas luzes.
Iluminações que irrompem do manicómio da criação
ou é a luz da cabeça que aumenta a irrealidade.
A arte não te faz sentir a alma.
Outro é o espelho no teu fundo de lucidez.
Uma epilepsia da humanidade.
Assim pudesses saber onde a mente
tem as suas cavernas alucinatórias:
vozes ainda mais inscritas nas luzes mundificadas.
9.
Todos os teus pensamentos repetem o mundo
porque só o que é repetido pode ser único.
Só assim se vive multiplicado na obra pura
como se da ciência elevada de cada coisa
um pensamento te inundasse todo em crescimento.
E se fosses nascimento sucessivo e absoluto
tão pleno de tudo eras único na continuidade.
10.
Pudessem dar espírito às máquinas:
motores do ser rangendo loucamente.
Essa ira grandiosa que tudo cria na destruição.
E são máquinas levantando cidades e sombras.
Forças monumentais como deslocamentos nas paisagens
apagando terra a terra a luz dos mapas existenciais.
Uma catástrofe que deixa raízes e desmoronamentos de alma
quando os territórios da natureza pelas tuas mãos chegar ao fim.
E haja um vácuo grave para a perpetuidade humana.
Instrumentos de fertilidade e desgraça
que pela caligrafia do perigo provoca maior ilusão.
11.
É sempre o mesmo pensamento nos seus murmúrios taciturnos
que tão pesadas imagens sobem como muros pela tua vida.
Condenação que da fonte da terra um dia hás-de sentir
quando da tua obscuridade refulgires de terror
como um deus alguma vez arrancado às civilizações.
Por inspiração vais até ao fundo da tua luz
fixamente incendiada no que é escrito e fechado no universo
onde só existe a matéria da mortalidade
e o teu coração paciente que a escuridão há-de infundir em tudo
tal como uma visão nascente toda imensa de eternidade.
12.
Se algum deus andou por Treblinka
também pisou os seus mortos
e guardou para a eternidade o doce sangue da tragédia
para regressar um dia a esta terra vermelha
e da esponja do tempo fazer prova da sua sede.
Ei-lo agora deus das almas
semente antiga da humanidade
que dos campos da morte
anuncia ao mundo símbolos de cruel memória.
Tivesse a história a sua matéria de luz
para evocar todas as almas serenas
que renascem e pesam agora no céu.
A narração de um pesadelo que fosse remorso.
Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais. Vive em Faro.
Publicou, entre outros, Na Escrita e no Rosto (poesia) – Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura; Conversas Terminais (romance) – Bolsa de Criação Literária pelo Ministério da Cultura; Brutal (romance); O Carteiro de Fernando Pessoa (romance); A Caverna de Deus (romance) – Prémio Literário Cidade de Almada; Humanidade (poesia); Arte Humana (poesia); Coreografias da Linguagem (poesia); Fuga Intempestiva (poesia); Um Estudo do Humano (poesia); Um Homem Parado na Esquina do Mundo (romance) – Prémio Literário Alves Redol; A Força Única – Escrever (crónicas).