Cultura

Penso, logo morro e alguns poemas | Ngonguita Diogo

Foto de Tim Foster

PENSO, LOGO MORRO

 

O manto reluzente não veste a gritante nudez da minha África.

 

O manto reluzente não cobre os caminhos despovoados pela mentira do passo inquieto.

 

O manto de manchas não é capaz de iluminar a mente dos que fervem desejos nos bolsos e incendeiam caminhos corruptos em todas as curvas do berço da humanidade, semeando o vil caroço da ambição, dilatando a dimensão da morte da irmandade.

 

Perto dos nossos olhos, a fome nos abraça impondo o eterno companheirismo; a prostituição empresta opostos sexos nas ruas inglórias das cidades; a loucura valoriza a sua febre e a marginalização nos acorrenta. Vivemos em um clima que aborrece os braços da segurança em sociedade, e a insegurança perfila seu açoite em qualquer esquina.

 

Ó África, que ao teu colo teus filhos (não) se orgulham! As igrejas se multiplicam com fúria esfomeada, e nascem seus filhotes nos buracos atormentados. Doam ações diabólicas.

 

E nós? Sedentos de paz, buscamos harmoniosamente conforto espiritual nas cidades dos escolhidos, onde autodeterminados profetas e pastores, cobrindo-se de pele mansa de cordeirinho, aproveitam o choro das panelas e o silêncio concreto do fogão para prometer milagres. A magia recebe benditos aplausos em públicos cultos.

 

Alguma coragem trepa nas alturas, prometendo o ressuscitamento de nossos famintos mortos, cujas vidas efêmeras nunca tiveram sabor.

 

O que faremos com esses falsos doadores de fé e vendedores de esperança? 

 

Muitos deles são jovens que, misteriosamente, seus bolsos chocarreiam moedas, que fazem aparecer tremendos palácios, enquanto o povo chora na sala da miséria.

 

Doenças açoitando, falta de maternidade, traições, amores adiados e a pobreza sorrindo para todos. Enquanto as majestades pousarem os cus envelhecidos nos tronos, a fome continuará anciã no ventre dos velhos e das crianças. Os jovens continuarão vendendo a entrepidez por três dinheiros de dignidade. As religiões continuarão servindo em chávenas rotas, pingos de deuses. 

 

Continuará havendo pensamentos reproduzidos porque as sinagogas universitárias continuam mumificando os cérebros; O HOMEM, QUANTO MENOS PENSAR, MELHOR para o perfume da alienação. 

 

Não se vence uma luta que congrega todas as fomes. Quando a educação é uma ilusão, nos campos das ciências são adornados os templos excretores.

 

Aqui, atrás do mundo onde nos encontramos, entendemos ser sábio dizer em alto e bom tom que nem Gaza bebeu o vinho da eternidade. É imperioso que as majestades entreguem intacto o futuro dos nossos filhos, pois há anos que as balas calaram a ópera sinfônica, num refinado léxico do latim, mas nem isso trouxe de volta a paz que nunca tivemos. 

 

Túmulo algum calará a voz imbricada nos versos que parimos. As balas mostraram-se incapazes de expulsar do útero a mais pura revolução. 

 

As balas mostram-se impotentes para trazer pelos braços a paz que tanto almejamos.

 

Haja, por isso, novos jardins para florir o cerco africano. Em cada desejo de guerra, um til de amor.

 

Nas paredes da injustiça

 

Nos esgotos vivem as sombras da morte

Alguns vendem-se por nadas

Outros arrastam-se como cobras venenosas 

A sorte dos miseráveis tem asas e voa

 

Nas ruas os mendigos reclamam

O pão dormiu no asfalto da pobreza

Falou o pilão nas tetas da miséria

As panelas gemem condoídas pelo abandono

 

E tu flagelo das trevas, caminhas sem pés nas calçadas da sorte?

A morte que paira no ar não se importa, arreganha-se nos becos da força e é sugada nas trincheiras do egoísmo

Ó miséria!

Nas paredes do mundo te moves como forasteiro alucinado

Enquanto o universo se cala alienado

Às árvores apontam a direção do amor

Os pássaros entoam às mais belas canções

E os homens vestem as almofadas da dor

 

Ó senhores da justiça e da Lei!

Libertem o verbo para ouvir a música de quem chora

Porque a sorte não tem morada certa.

 

INDEPENDÊNCIA 

  

 

Se fecharmos os olhos para ver brilhar o sorriso da mamã Ximinha

O sorriso no silêncio da Paz ainda caminha

 

Ó Angola liberta!

Os pés já não rasgam os campos de café como outrora

Rasgam os salões embriagados nos seios da patroa

As mãos que abraçaram as lágrimas da desgraça

Abraçam os calos das frustrações nas calçadas sem graça 

 

O pão chegou com um sorriso de pau-a-pique.

 

Independência!

O asfalto já não é inacessível como a luz nos cofres da miséria de ontem

Nas vozes da educação moram os espinhos da sorte

Mas o perfume da liberdade chegou para todos os angolanos.  

 

Fuba podre?

Peixe podre?

Dilenuéé Jacinto

Ó saudade da ansiedade mórbida dos tempos da revolução

O percurso pedregoso no catálogo das memórias vivas

Envelheceu nas quarenta e cinco primaveras festivas

No berço da glória gemem ainda milhares de heróis anónimos

 

E nós?

Sorrimos da Marimba no colo do kabokomeu?

Ou doamos-nos ao cú-duro no vértice da liberdade harmónica das vozes?

 

NO UNIVERSO DO VERSO

 

Ao observar o cosmo tento decifrar o floreado das mentes 

Que esmiúçam os dedais dos meus saberes

Quero fragmentar minhas conquistas

Irmanar se possível a graça

Aliar o inane despertar de minhas células envelhecidas

Nas margens do meu ciso 

Onde os artifícios são apenas ilusões de minha retina

Ai

Quero esvair-me em doses de ternura

Para compensar meu ensejo 

Tão ardiloso esse meu sassarico

Que me confundo com a força das cataratas do rio Kwanza 

Ao despertar 

Sou apenas mais uma no universo do verso

 

NOVEMBRO 

 

Tortuosos são os caminho dos vivos 

Seguindo diferentes desígnios 

Hoje todas as diferenças se acentuam

Tudo converge em cada guinada

Ó Novembro de angústias…

Há almas expiando os pecados 

Os vivos levitam, atolados em muros de sofrimento 

Gritam, gemem e choram

O eterno princípio do fim que não tem escala 

A morte mantém o segredo guardado nos tablados da ilusão, aonde o peregrino solitário toca a guitarra, sussurrando claves vadias de uma kizomba sofrida

Lá fora proclama-se a vida enferrujada pelo desgosto 

Uma lágrima solitária

Um suspiro

Um tímido sorriso 

É mais uma carícia verbal que alimenta o poeta no dia dos finados

 

Fotografia de Ngonguita Diogo

 

Ngonguita Diogo, pseudónimo literário de Etelvina da Conceição Alfredo Diogo, nasceu no dia 4 de Maio de 1963, em Cazengo (Ndalatando), província do Cuanza Norte.


Foi descoberta no mundo literário em 2004, pelo escritor e amigo John Bella. A sua estreia aconteceu em 2010, por sinal, no ano em que completou 47 anos de idade.


Desde aquela data, a sua paixão pela literatura foi ganhando espaço e, de forma indelével, conquistando os leitores que, concomitantemente, a obrigaram a colocar, regularmente, mais obras no mercado como: “No Mbinda o ouro é sangue” (2010), reeditado no Brasil, “Weza a princesa” (2010), reeditado em Portugal, “Sinay” (2011), reeditado no Brasil, “A minha baratinha” (2011), “Acudam Maria do Rangel” (2013) e “Da alma ao corpo” (2014).
 O seu percurso literário conta ainda com um CD de poemas intitulado “E assim virei Maria”, além de vários poemas no suplemento “Vida e Cultura” do Jornal de Angola, assim como nos semanários O Independente e Agora.
Ngonguita Diogo é membro do Movimento Lev’arte em Angola.
 A escritora angolana é membro da Academia de Letras do Brasil de São José do Rio Preto, ocupando a cadeira nº 01 em Luanda.


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