Cultura

O sorriso da Gioconda | Leonardo Almeida Filho

Quando minha avó morreu, levou com ela a melhor parte da minha infância: as tardes de domingo ouvindo-a contar histórias. Ela gostava de desfiar longas aventuras edificantes, povoadas por heróis cristãos que combatiam hereges no norte da África, homens comuns de alma boa e fé inabalável que se submetiam a provas de sofrimento, muita fé e redenção. Descobri, tempos depois, que parte dessas histórias tinha origem em contos medievais portugueses. Como ela tivera acesso a eles, sendo quase analfabeta, onde e com quem os aprendera, isso eu nunca descobri. Foram-se com a sua morte os peixes fritos que gostava de fazer, porque sabia que eram da minha predileção. Comprava-os na feira, já salgados, e os fritava, deixando-os sequinhos, crocantes, uma delícia com o purê de abóbora. 

 

Era esse o seu ritual pelas manhãs e fins de tarde: primeiramente o café preto, bem forte, perfumado, coado, bebido quente e depois, a cadeira de balanço, o fumo picado lentamente, com minúcia de artesão. Finalmente, o cachimbo fumaçando pela sala, espargindo aquele cheiro forte, inconfundível, que, com a sua ausência, se perdeu para sempre. Perdi também, com o seu desaparecimento, o carinho sempre presente, o cuidado e o zelo incansáveis. Mas a perda maior foi, sem sombra de dúvidas, a da guardiã infalível de meus pertences, quando dizia ameaçadoramente, a quem quer que fosse, Não bula, que é de Serginho. Que ninguém ousasse pegar nos meus livros, meus cadernos, meu violão velho, pois ela estaria sempre a postos, vigiando, guardando as minhas coisas da cobiça alheia. 

 

Minha avó partiu depois de um longo tempo intubada na UTI, vítima da Covid 19, num hospital público. Tinha oitenta e oito anos. Vivi em sua companhia durante parte da minha infância, pois meus pais, sem muitas condições de me criarem, me entregaram a seus cuidados. Morávamos na periferia da cidade, muito distante de uma escola, razão pela qual decidiram que o melhor para mim era morar com a minha avó. Tinha sete anos quando cheguei em sua casa, em Campina Grande, lugar onde vivi até os meus treze. Meu tio Orlando, irmão caçula de minha mãe, morava conosco. Era um sujeito irritante. Hoje deram o nome de bullying ao que ele fazia comigo. Me chamava de cabeção, de poço de lombrigas, de quatro-olhos. Toda vez que minha avó preparava alguma coisa para me agradar, lá vinha ele com deboche “tudo para o netinho preferido”, dizia com a voz alterada, “O principezinho da vovó”, babava seu desprezo, sem que ela percebesse que a provocação era constante. Desconfio, hoje, que sua má-vontade para comigo se devia ao ciúme que alimentava da minha relação com minha avó. Na certa, suspeitava, mesmo inconscientemente, que seu lugar estava ameaçado no coração da velha. E ele tinha razão, estava mesmo.

 

Minha avó teve uma vida muito sofrida. Ainda jovem, foi obrigada a se virar para criar os seis filhos que teve com Severo Gonçalves, meu avô, um mau caráter que a abandonou com meu tio Orlando ainda na barriga, trocando-a por noites de cachaça e jogatina, além, é claro, de uma mulher mais jovem. De uma hora para a outra, viu-se sozinha no mundo, responsável por seis pequenas bocas famintas. Era uma mulher forte, a minha avó, e cumpriu a contento seu papel de mãe e pai, criando seus filhos da melhor maneira possível. 

 

Dia desses, para meu espanto, minha mãe fez um comentário que me pegou de surpresa.  Estávamos assistindo a um filme qualquer na televisão quando disse, sem qualquer intenção, que minha avó adorava sovacos peludos. Assim, do nada, ela me veio com essa. Sua avó adorava homens com sovaco cabeludo. Como assim? Ela me dizia que gostava muito de ver os sovacos dos jogadores de futebol quando trocam de camisa no fim de uma partida. Sério? Sim, tua avó dizia que homens com o sovaco cabeludo têm jeito de serem mais homens que os demais, achava-os lindos. Pode uma coisa dessas? Sorria minha mãe um sorriso ingênuo ao relatar a peculiar preferência de minha avó. Incrédulo com aquela informação, peguei-me, estupefato, naquele momento, sendo apresentado a uma mulher que eu nunca imaginaria viver naquela que se fora há alguns anos. Mas porque essa fixação por axilas recheadas de pelos? Perguntei-me, tentando lembrar, em vão, algo que, no comportamento de minha avó, pudesse denunciar esse fetiche. Durante toda a sua vida, não notei absolutamente nada que pudesse apontar para essa predileção. Mulher recatada, muito católica, tornou-se com o passar dos anos, cada vez mais beata. Imaginá-la admirando sovacos cabeludos era simplesmente impossível. Minha avó? Nunquinha. O fato de sentir-se atraída por sovacos peludos chocou-me, não pelo objeto do gostar, mas por vir a derrubar a imagem idealizada que eu trazia de uma certa mulher, uma idosa cheia de carinhos e afeto, pura doçura e meiguice, sem desejo ou libido, quase santa, e colocar em seu lugar uma outra mulher que, percebo agora, viveu escondida naquela. Presumo que, em momentos só seus, aquela doce mulher imaginava o cheiro da axila de Pelé ou Garrincha ou de qualquer homem de sovaco cabeludo, um estivador ou trabalhador braçal, e nesses momentos se sentia feliz. Sabe-se lá. 

 

Me pego a pensar também em quantas avós existem no mundo, exatamente iguais a minha. Gente de carne, osso, desejo, gozo, vontade, que atravessou sua existência em silêncio, aprisionando a carne, o osso, o desejo, o gozo, a vontade. Gente castrada como a minha avó. Lembro daquela cândida figura ajoelhada nas missas dominicais e nas eternas novenas. Olhos fechados, lábios movendo-se em silêncio, rezando preces intermináveis, desfiando Salve-rainhas, Pai-nossos e Ave-Marias em cândida contrição. Era decididamente uma mulher de fé. Mas, como todos nós, era muito mais que isso. Parte dessa mulher escapou a todos os olhares, obviamente por medo da censura que, inevitavelmente, se abateria sobre ela, uma mulher sozinha, sem homem ao seu lado, caso se desse ao prazer de ser mulher com outros homens. 

 

Desde que Severo se foi nos braços de Antonia e de uma garrafa de cana de cabeça, minha avó vestiu-se de luto, tornou-se uma velha virgem empedernida, mas nunca amarga, era uma mulher doce. Pelo menos era o que se manifestava diante de todos nós. Durante anos e anos, nenhum namorado, amante. Houve pretendentes, pelo que comentam meus tios, mas a todos rejeitou e permaneceu imbatível. Era uma mulher bonita, muito clara, alourada, tinha olhos azuis, herdados do meu bisavô, Manoel Almeida, português. Como uma essa bela mulher não sucumbira ao desejo nesses tantos e tantos anos de solidão? O que latejava dentro dela? Minha avó, que passara a vida inteira asfixiada pela incurável virulência moralista do mundo, ironicamente morreu asfixiada pela agressividade de um outro vírus. No velório, pouca gente, como preconizava o protocolo de saúde por conta da pandemia. Observando seu caixão lacrado, fiquei pensando em qual seria a expressão colada ao rosto de minha avó dormindo o sono indesejado, e imaginei que haveria em seu cadáver um sorriso discreto e misterioso como o da Gioconda.

 

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/Paraíba, Brasil, 1960), professor, escritor, músico. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014 e nova edição impressa em 2021), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poesia, Editora Patuá, 2020), Os possessos (romance, Editora Patuá, 2021), além de contos, crônicas e poemas em coletâneas, revistas e jornais. 

Como músico (violonista e compositor) participou de diversos festivais e gravou o CD Papo de Boteco, uma produção independente, em 2017, disponível no Spotify e na sua página no Youtube.

Blog de poesia: www.poesianosdentes.blogspot.com.br

e-mail: leo.almeidafilho@gmail.com

 

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