Cultura

O novo livro do desassossego

NLD

 

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Só os poetas poderiam transformar a Arcádia, uma terra pedregosa e inóspita, de pastores rudes que faziam sexo com as suas cabras, num lugar fértil e feliz onde abundavam a água e as belas ninfas. Ninguém como eles lograria transformar a realidade em sonho e o sonho em realidade com um poder que é abdicação.

 

Os poetas árcades viviam, assim, na angústia de quem sabe que vai morrer e que, depois da morte, só há o infinito nada, igual ao infinito nada antes da vida. Sabendo que, aí, não haveria tempo nem lugar, criaram um lugar sem tempo como modo de redenção. 

 

É isto a poesia.

 

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Quero controlar os meus pensamentos mas, tantas vezes, não o consigo. Ontem, quando caminhava pela rua olhando as folhas de Outono que mudavam de cor em direção à queda, o pensamento desviou-se para uma mulher desconhecida, que vi uma só vez na vida e nada tinha de diferente de tantas outras mulheres, nem sequer os seios abundantes que sempre atraíram o meu olhar. Ela estava só, deitada na praia e, subitamente, levantou-se, penteou os cabelos longos e bastos, negros e fortes como penas de corvo e, depois, caminhou vagarosamente em direção ao mar para se lançar às ondas.

 

Admirei-me por me surgir esta lembrança tão remota e sem sinais que me pudessem marcar. Sorri deste absurdo mas, logo a seguir, veio-me à memória o nome de Maldini, nome que já não ouço há largos anos e nunca me impressionou mais do que tantos outros futebolistas famosos, e nem sequer estava entre os que melhor conhecia.

 

Sou e não sou responsável pelos meus pensamentos. A quem atribuir a culpa daqueles que não chamei a mim e são cruéis ou baixos, mas surgiram no meu cérebro contra a minha vontade?

 

Sou senhor dos meus pensamentos mas eles são, também, senhores de mim. Sou livre e dominado pelo que não desejo ou repudio. 

 

Sonho enquanto durmo, sonho quando estou acordado. E o sonho sonha-me. Eis uma das sete fontes do meu desassossego.

 

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No meu futuro erguem-se séculos, muralhas da China que os bárbaros do norte querem conquistar. Mais do que o passado que vivi, o futuro que não irei viver está em mim obsessivamente presente. Amo os homens que hão de vir por não serem o meu presente e, porque hão de vir, serão melhores que os que agora vivem. Vejo-os belos de corpo e alma porque só os vejo no meu pensamento e penso que o meu pensamento é o seu corpo e a sua alma.

 

As mulheres do ano dez mil terão beleza e juventude eternas, numa terra onde viverão num lugar mais alto e mais ameno do que o velho Shangri-la. No passado, há homens cobertos de armaduras e mulheres que vemos apenas com uma face, como nos frescos fúnebres dos egípcios, porque a outra face foi devorada pela sombra.

 

O passado é um jogo de sombras saídas do Nada que não existe. O futuro irá existir e há de rir-se de todos os esforços presentes dos homens para abandonarem a terra.

 

No futuro só haverá homens artificiais porque serão os homens a criarem-se a eles mesmos, e o seu sopro será o sopro de Deus, e as suas máquinas a metafísica que há de vir. As palavras substituirão os gritos de terror e dor, palavras com um centro negro e oito pétalas em volta, verdes e perfeitas, que hão de destruir os poderes, as hierarquias e os preconceitos que serão enterrados debaixo da lava cultivada.

 

Por isso amo o futuro que não sei, porque o que sei está infeliz e cansado.

 

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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