Poesia & Conto

O meu sonho capixaba | Pedro Sevylla de Juana

O MEU SONHO CAPIXABA

 

Passava eu o tempo me alimentando
de história, geografia e literatura,
de uma terra mais interessante
que nenhuma outra. Eram dias
e noites de trabalho intenso,
comendo e dormindo menos que um sabiá.

 


Olhando as estrelas para
as individualizar e as reconhecer,
caí num sono profundo com a cabeça
apoiada na mesa do jardim.

 

Tudo começa quando o planeta Terra
se torna habitável,
recebendo nos meteoritos a essência
e os primeiros indícios
da vida mais singela.

 

Logo aconteceu o período Cambriano,
lá na era Paleozoica,
faz disso
quinhentos milhões
de anos,
quando a existência estourou na totalidade
produzindo
a gigantesca explosão de vida
da que tanto se escreveu.

 

Eu era um trilobita
naquela época remota,
artrópode de três lóbulos, que,
certamente,
tinha visto com grande interesse,
já fossilizado, na aula de ciências
naturais do colégio La Salle.

 

Vivia fazendo amigos na água
para me defender dos inimigos,
ignorando que, fora,
a vida não seria possível
até que a camada de ozônio alcançasse
uma espessura suficiente
para deter as radiações solares
mais perigosas.

 

Estando no período Devônico
-abro um parêntese para dizer
que vem o nome do condado de Devon,
próximo a Cornwall,
onde passei um verão
estudando inglês com meus filhos-
assim pois, no Devônico
vejo deslizar mansamente,
ainda ingênuo, o primeiro entardecer
de uma solene primavera,
sossego indescritível
roto pelo ritmo inarmônico
do incremento e desaparição
das espécies evolutivas.

 

Enquanto eu salto da estrofe anterior
transcorrem centenas de milhões de anos,
e depois de esse lapso
a Terra muda na sua totalidade.

 


Os movimentos das placas tectônicas
sobre o manto
desfazem a crescida Pangeia,
estabelecendo ao sul
um supercontinente
conhecido como Gonduana.

 

Uma parte formidável dele
é o intrincado labirinto de possibilidades
que agora se chama Brasil.

 


A terra fecunda atravessada
por um casal de colibris,
atual Estado de Espírito Santo,
só era um campo carecente de frutos,
nem sequer os que produziriam
no seu momento
os melhores açúcar e café do mundo.

 

Na borda contemplo uma ilha alta e formosa
de origem vulcânica.
Há lava ardente no seu interior
embora não tenha nome ainda.

 


Emergindo da água mais próxima
aparece um promontório granítico
que algum de nós denominou
Penedo.

 

Pois bem,
no topo do Penedo
éramos quatro líricos épicos
sentados em círculo.
Cordados entusiastas do equilíbrio e da harmonia,
os quatro sonhadores intentávamos
produzir uma música espontânea
que, com algo de choro,
decidimos chamar Samba.

 

Joaquim Machado de Assis,
autodidata de vivo engenho,
vida plácida de literato grande,
superioridade intelectual,
serenidade e firmeza num rosto
cercado pela linha do cabelo,
barba e bigode crescidos,
lhe interessava tudo, admirava a Carola,
e vindo de baixo
chegou a ser o primeiro presidente
da Academia
Brasileira de Letras.

 

Hilda Hilst
filha única e aluna de internato,
a verdade, o amor, a liberdade e a dita,
ressoavam nela como palavras crescidas no cume
das nuvens inacessíveis.
Necessitava ser feliz
e a felicidade e o desejo,
horizonte atrás do horizonte,
brincavam com ela às escondidas.
Entroncada no tempo e no espaço,
catarata intermitente, égua alada
e bandeira ondeando agitada de dúvidas,
seu instante arderá
indefinidamente.

 

Antônio de Castro Alves,
cabeleira ao vento reclamando
liberdade e justiça para os oprimidos
-mocidade e morte-
vinte e quatro anos de existência,
vividos com intensidade poética admirável,
lhe bastaram para deixar
uma inspirada obra em duas vertentes,
épica e lírica,
complementares.

 

Sobre o já Penedo,
perto da não Vitória ainda
mas sempre ilha acolhedora,
no anoitecer quieto
quebrado pela indómita perseverança
do tempo transcorrendo e transcorrendo,
os quatro vates donos de uma
irreprimível paixão criadora,
soprávamos música na trombeta
de quem ia ser meu amigo Satchmo.

 

É fácil compreender
que o Penedo é para a Ilha
o que a Ilha é para o Brasil e o Continente:
sentinela da entrada,
defesa
e farol.

 

O sonho despreza a ordem
e distorce a continuidade do tempo,
mas é verdade que
há cinquenta mil anos
na garganta dos humanos nasceu a palavra,
e quando a palavra foi
a palavra tupi explicou a beleza
descoberta pelos cinco sentidos
e a intuída,
acrescentando as experiências próprias,
as ouvidas e as imaginadas.

 

A difusão oral de contos e estórias
entre os tupiniquins será,
por consequência, rica e proveitosa.
Tanto é assim que, segundo Elpídio Pimentel,
até o Penedo falava
contando às pessoas
saborosas histórias capixabas.

 

 

Embora a relação
paterno-filial do autor com a sua obra
não se afiançará até chegar a escrita.

 

 

Depois de ler o pensamento
de Policarpo Quaresma,
filho intelectual de Lima Barreto,
achei muito laudável
que o Padre Anchieta começara
a escrever a língua tupi.

 

Penso que, se o Reformista
no tivesse substituído inteiramente
o uso do Nheengatu
pelo português,
as duas línguas ainda conviveriam
se fortalecendo;
de modo que os escritores profissionais
chegado o ano mil novecentos
e vinte e um, se reuniriam no mesmo
Clube Boêmios
para instituir a Academia
Espírito-santense de Letras.

 

A erosão e o homem lhe foram tirando
e tirando,
mas então era mais alto o Rochedo,
mais dilatado, maior;
por isso pude me encontrar ali
com escritores amigos:
_____Garota de Sacramento,
mulher de favela,
saiu teu livro desse Quarto de Despejo,
voou alto e longe, pombinha mensageira,
choveu o dinheiro em forma de dilúvio universal
e te chegou na distribuição
uma parte pequena.
_____Discutíamos Ester Abreu e eu
sobre alguns aspectos confusos de Don Juan
baixando aos infernos
para surgir de novo
andrógino,
triunfante,
celestial.
_____Miscigenação. Diz de mim Gilberto
de Mello Freyre, que sou a afortunada conjunção
de origens miscíveis, de misturadas culturas;
e assegura que é a mestiçagem
o princípio do progresso progressivo
e a constante dos avanços todos.
_____ Desenvolviam-se o sonho e o sono
intemporais
ou com os tempos misturados,
num Sertão imaginário
que,
partindo de Euclides da Cunha, Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa
e Jô Drumond,
era a soma de todos os Sertões:
arideces existenciais, aleph,
vidas secas,
imaginação e utopia.

 

Fronteiriço eu, estava no centro
quando pude contemplar desde o Penedo,
trezentos e sessenta graus ao redor,
os trigais,
mar de primavera em Valdepero, ermida
de San Pedro e da Virgen del Consuelo,
castelo, arco da muralha,
colegiada de Husillos, sítios históricos de Muqui
e São Mateus,
Santuário de Nossa Senhora da Penha
e frei Pedro Palácios na gruta,
estações de Marechal Floriano e Matilde,
os troncos erguidos
e firmes da Mata Atlântica Capixaba,
a Pedra Soares de Ponto Belo.

Fazia calor e chovia.

 

Eu vi abaixo o alentejano Vasco
Fernandes Coutinho na Prainha,
desembarcando da nau Gloria
com a decidida intenção de estabelecer
a Vila do Espírito Santo e, depois,
Vila Nova de ser necessário
como aconteceu logo
com ajuda dos indígenas tupiniquins.

 

 

O sonhei desse jeito
ao contemplar seu marcial porte,
adereços de gala,
em um retrato majestoso
do acervo da Casa da Memória
em Vila Velha.

 

Acho que observei, estou convencido,
o Padre José de Anchieta
caminhando catorze léguas
pelo caminho da praia,
desde Reritiva até Vitória,
onde se alçavam a igreja e o colégio
de São Tiago.

 

Vivi o momento prateado da vertigem
na Ladeira de Pelourinho em Vitória.
Maria Ortiz se fiz heroína
-madeira em chamas, pedras, agua fervente-
ardor e coragem contagiosos
contra os atacantes
holandeses.

 

Alagava o sol minhas pupilas,
não obstante, pude pensar
que é obrigação do escravo escapar,
e de quem assina um contrato
conseguir que se cumpra
do princípio ao fim
no tempo acordado.

 

Pelo que tenho lido de Afonso Cláudio,
que se tornou abolicionista em Recife,
efeito natural e lógico;
e o que ouvi da boca do protagonista quando
desde Mestre Álvaro chegou a meu amado Penedo,
Elisiário escapou da morte pela audácia
de sua vontade indomável.

 

Ide a Queimado, em Serra,
vereis que aí estão,
ainda firmes, os restos da igreja
lembrando -causa e consequência-
os inolvidáveis acontecimentos.

 

Elos de uma cadeia inacabável,
os anos chegam
a mil novecentos e vinte e dois
quando,
Amazônia cultural com a força
de um período geológico,
Brasil dá à luz
o Modernismo.

 

Leitor fascinado desde a infância,
no Penedo leio a revista Klaxon
junto a Mario e Oswald de Andrade,
confidência do Itabirano Carlos
Drummond, também de Andrade,
Pagu, Tarsila e Bandeira;
sete amantes
da liberdade e da renovação
escrevendo, pintando, ruas cheias de gente,
pessoas que saem das casas
e caminham pelos povos
e pelas cidades,
falando de suas coisas em sua linguagem clara.

 

 

Abaporú e Antropofagia, potência
para impulsionar A máquina do mundo
que transportará o Brasil ao mundo
com o mundo.

 

Penso em Pagu no Largo de São Francisco.
A inteligente, bela e forte lutadora,
saia azul e branca de normalista,
lábios pintados de roxo,
caminho à Escola Normal onde aprendia,
chamava a atenção dos estudantes
da Faculdade de Direito.
Amei a Pagu ao ler Parque Industrial,
ainda a amo.

 

Eu queria escrever
um soneto com o conteúdo deste poema;
pois sei
que o soneto, mais que diamante literário
é turmalina de Paraíba.

 

 

Contudo
o soneto exige a perfeição
para alcançar seu efeito mais atraente.

Estamos em terra de sonetistas,
tenho na minha memória exemplos
como os de Beatriz Monjardin
em Floradas de inverno
mais os de Ainda o soneto de Athayr Cagnin
ou os Sonetos insones de Matusalém
Dias de Moura.
Em consequência,
o soneto foi descartado
dada minha incapacidade manifesta.

 

Nas escritoras capixabas pretendo
homenagear as mulheres
que tiveram
obstáculos de toda espécie
para desembrulhar sua paixão criadora e,
perseverantes, os venceram.

 

Adelina Tecla Correia Lyrio, capixaba
desde o ano 1863,
foi avançada na publicação de
poemas próprios em jornais,
participando nas campanhas abolicionistas
e nos saraus literários onde
se declamavam poemas
escritos pelas mulheres.

 

Haydée Nicolussi,
nascida em Alfredo Chaves no ano 1905,
com produção literária reconhecida
em todo o país,
“originalidade de estilo e audácia de ideias”,
publicou o livro Festa na sombra, depois
de sair da cadeia acusada
de ter participado na Revolta Vermelha
a favor da reforma agrária.

 

Maria Antonieta de Siqueira Tatagiba,
de São Pedro de Itabapoana,
nascida em 1916 morreu na idade
dos elegidos, trinta e três anos.
Dificuldades económicas a impediram
seguir os estudos de medicina.
Foi a primeira mulher
capixaba
a publicar um livro.
Divulgou, em 1927, Frauta agreste,
de poesia rítmica cheia de beleza.
“A Natureza toda é frescor, louçania…”

 

Maria Bernardette Cunha de Lyra,
nascida em Conceição da Barra
no ano 1938,
ocupa a cadeira número 1 da Academia
Espírito-santense de Letras,
tem publicada uma obra copiosa e magnífica
onde ilumina as mulheres
e o mundo feminino.

 

E assim, há outras autoras,
capixabas de raiz, coração ou pensamento,
muito valiosas.

 

Devo dizer, que entendo
vasos comunicantes dum todo intelectual,
a UFES, mãe nutrícia, as Academias,
o IHGES e a Biblioteca Pública Estadual;
a colaboração faz importantes
ao conjunto
e as partes.

 

Nestes tempos de incerteza,
ano dois mil e vinte,
quando a pandemia abate as pessoas
em várias vertentes,
Ester Abreu assume a presidência
da Academia Espírito-santense de Letras,
instituição sólida que pronto
cumprirá cem anos.

 

A mesma Ester
o dez de agosto convoca a reunião
dos acadêmicos de cadeira
e membros correspondentes.

Por isso, todos nós,
para evitar o maior contágio de lugar fechado,
deixamos momentaneamente
a sede da Casa Kosciuszko Barbosa Leão
e ocupamos o Penedo às dezoito horas,
vestindo máscara facial
e mantendo a distância social preventiva.

 

Tratados os assuntos comuns
cada um fala dos seus trabalhos atuais
e dos propósitos
para um futuro que não mostra a nariz.

 


Eu exponho a minha conclusão.
Filosofia, metafísica, teosofia, naturalismo,
sociologia, psicologia: entendo a espécie
humana no conjunto e nas partes:
homo homini lupus; amor, primeira
força
metafórica.

 

 

Estou bem preparado: me disse.
Mas, ¿sei aonde vou?
Não estou seguro, embora este sonho
quiçá marque o caminho.

 

No alto da coluna do Penedo,
ao modo de São Simão o Estilita,
deixo o relato de meu sonho capixaba
para que vocês,
se esse é seu gosto,
possam interpretá-lo.

 

PSde J, Vitória ES, através dos séculos.

Fotografia de Pedro Sevylla de Juana

 

 

Pedro Sevylla de Juana, escritor, poeta, ensaísta, conferencista e tradutor espanhol, é acadêmico correspondente da Academia de Letras do Estado do Espírito Santo no Brasil, e Prêmio Internacional Vargas Llosa de Romance.  Publicou trinta livros.

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