Cultura

O grande texto fluvial

Literatura procria literatura. Autores, de forma consciente ou inconsciente, trazem para seus textos outros textos, nem que sejam fragmentos, fagulhas, sombras de alheios textos. Alguns fazem questão de, após seus romances, escreverem pós-escritos e indicar as fontes, como faz o extraordinário Reinaldo Santos Neves, autor de, entre vários títulos, A longa história e Blues for Mr.Name ou deus está doente e quer morrer. Recentemente, reli A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, e notei o quanto ele me influenciou, inconscientemente, na elaboração de Um estranho no Minho… E fazia muitos anos que havia lido a história de Jacinto de Tormes desse autor que sequer folheei em minha temporada em terras minhotas.

 

Ao ler o suculento diário Dias portugueses e outros, do erudito professor e escritor Edgard Pereira, publicado em 2017 sob a simpática rubrica da editora Suspiros PS, nome este em homenagem à obra precursora do romantismo brasileiro, Suspiros poéticos e saudades, de Domingos Gonçalves de Magalhães. Pois bem, na p.32, em registro do dia 10-07-2014, o autor anota:

 

“A literatura é uma arte assimiladora, vai agregando atmosfera, motivos, cenas, cheiros, detalhes. Muitas vezes, quando lemos um livro, somos surpreendidos por semelhanças com outro, aparentemente diferente daquele que estamos lendo. Sem querer, percebemos fios intertextuais a aproximar dois ou mais textos. Referências usadas por um autor são retomadas trinta anos depois por outro, em outro contexto. Quase sempre, sem que o autor conheça o texto anterior, movido pela necessidade de descrever um ambiente.”

 

E o bom escritor e leitor que é o Edgard Pereira dos Reis exemplifica com trechos da novela A noite, de Erico Verissimo (1954) e trecho de conto de Jaime Prado Gouvêa, Fichas de vitrola (1986). Explica Edgard que “Perceber tais analogias constitui um dos fenômenos relacionados à leitura.”

 

Certamente cabe ao leitor, e se a boa memória ajudar, verificar esse grande fluxo dos textos que forma o mar nada morto de sua cultura literária.

 

Agora, por exemplo, em que retomo textos ligados à peste e desfrute de como a literatura com esse Mal se ocupou, encontro curiosa passagem de uma das novelas do Decameron, de Boccaccio. Em “O Manjerico”, quinta novela da Terceira Jornada, três irmãos de uma donzela, ao saberem que ela se encontrava com um amante de baixa condição social, resolvem dar cabo do infeliz Lorenzo. Vamos ao texto, da editora Crisálida, traduzido por Urbano Tavares Rodrigues, na p.257: “ Um dia, porém, fingindo os três sairem da cidade para uma festa qualquer, levaram consigo Lorenzo. Chegados a um local afastado e desértico e parecendo-lhes propícia a ocasião, mataram Lorenzo, que de nada desconfiava, e enterraram-no sem que ninguém pudesse aperceber-se do fato.”

 

Foi acabar de ler isso, saí do século XIV e vim para o século XX, para as coxilhas do Rio Grande do Sul, onde Ana Terra perdeu seu amante Pedro Missioneiro, assassinado pelos seus irmãos…

 

Se Erico direta ou indiretamente influenciou o Jaime Prado Gouvêa, o velho Boccaccio, de alguma maneira, influenciou o querido autor de O tempo e o vento.

 

 

Caio Junqueira Maciel, mineiro de Cruzília, professor de Literatura Brasileira e escritor. Autor do romance Um estranho no Minho (Editora Viseu) e de vários livros de poemas, entre os quais, Pele de jabuticaba. (Editora Urutau).

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