Poesia & Conto

O estado de poesia | Marcelo Mário de Melo

 

A VIVÊNCIA – Tudo começou quando vi escrita a palavra “feridas”. Aí acrescentei: feridas conferidas. Em seguida: feridas congeladas. E indaguei:  feridas congeladas abertas ou fechadas?

 

Aí se desencadearam  as imagens. 

 

Um braço com uma ferida aberta. Um corpo cheio de feridas. O braço ferido mergulhado numa cabeça  como num caldeirão. Vendo-se as ondulações do cérebro em carne viva. Braços e pernas se contorcendo mergulhados da cabeça, como numa panela no fogo.

 

Pessoas correndo de medo nas ruas ante explosões.

Outras procurando estancar o sangue no corpo.

Clips de ferimentos e desespero.

 

Tudo isto saltitando na cabeça e pedindo tradução de palavras. Caracterizando um estado de poesia desencadeado por uma simples palavra. Assimcomo existem outros, desencadeados por muitas outras coisas.

 

Tudo que exista no mundo, conhecido ou desconhecido, pode se impor num determinado momento, como um estado de poesia. Que surge  como  a fome, a sede, o sono, uma coceira, um cisco no olho, uma topada, um tropeço, um sinal de alerta, uma queda brusca, uma aparição, uma surpresa.

 

Quando toma consciência do estado de poesia instalado, o poeta procura traduzí-lo em palavras, sob a forma de poema.

 

O POEMA

 

Feridas abertas congeladas

que as lembranças descongelam

e fazem jorrar em sangrias

que transbordam

no caldeirão do cérebro

onde ferve o pânico

antecipando membros amputados

em explosões 

correrias 

hemorragias

de guerra declarada.

 

O GERAL – Todas as pessoas vivenciam estados de poesia, mas devido a uma educação marcada por parâmetros racionalistas e utilitários, não foram estimuladas a fazer a costura com os fios da arte poética. O que fica somente a cargo dos poetas, tomados como especialistas.

 

É necessária uma ação poético-pedagógica  esclarecendo sobre os estados de poesia das pessoas,  estimulando-as a se voltarem para eles, procurando traduzí-los. Cabendo aos poetas um importante papel neste sentido, ao lado dos professores de arte em geral.

 

Mas o fato é que existe uma mistificação e uma redoma em torno da arte poética e dos poetas, chegando-se às raias do endeusamento. Identificando-os aos ofícios religiosos, onde predominam o sagrado e o mistéro.

 

O POETA – O que constitui um contrassenso,  porque, como um Prometeu liberto, e diferentemente  do religioso,  a ação do poeta consiste,  exatamente,  em tentar traduzir o intraduzível, desvendar os  mistérios e trazê-los à compreensão das pessoas por meio da palavra reveladora nas suas múltiplas configurações. Mais ou menos complexas. De fácil ou difícil compreensão. Dependendo do caráter e da intensidade de cada estado de poesia, do seu trato e das estruturas mentais do autor.

 

Mergulhar no incompreensível, decifrar o insolúvel, desvendar o surpreendente, revelar os mistérios, responder às indagações da vida tentando traduzir o dicionário de Babel e construindo leituras, é a essência do trabalho do poeta.

 

ALTERNATIVA- Mas se a poesia foi transformada numa língua estrangeira e cercada de mistérios, que se desenvolva um movimento em sentido contrário, estimulando as pessoas a ler, falar e escrever nessa língua, a partir da conscientização dos seus estados de poesia.

 

O relato de casos colabore muito neste sentido. Mostrando como esses estados  são vividos por todas as pessoas. Apenas não são  tratados com a ferramenta da palavra. Uma ferramenta  de mil e uma utilidades que é usada para mil, menos uma. Que é, exatamente,  a palavra-pá. A palavra que revolve e escava a terra da poesia.

 

Esclarecendo que não se trata de vulgarizar o ofício poético, mas de quebrar os altares e os templos, as torres, as divisórias e muralhas que possam envolvê-lo, alimentados pelos descaminhos do elitismo.

 

Trilhando essa trajetória, no mínimo, serão ampliados  e aprimorados os círculos de leitores de poesia.

 

Fotografia de Marcelo Mário de Melo

Marcelo Mário de Melo é jornalista, escritor e ex-preso político do Brasil. Nasceu em Caruaru, no interior do estado de Pernambuco, e veio para o Recife em aos nove anos. Escreve poemas, histórias infantis, minicontos, textos de humor e teatro e notas críticas.

Vê a elaboração poética como o olhar que mergulha e voa, o espirarco-íris de portas abertas e andantes, sintetizando o pensentir humano nos mergulhos introspectivos, nas interações sociais e nas viagens cósmicas.

Tem diversos livros publicados, de literatura e jornalismo, sendo o último deles o Literavida Historias e Casos.

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