Poesia & Conto

Odisseia da alma | Morgado Mbalate

Não Sou de cor, Sou Negra

Não sou de cor, sou negra cor de luto.
Não sou de cor, sou negra e contra o preconceito eu luto.
Não sou de cor, sou negra porque é que sou oprimida com o desnível social e racial?
Não sou de cor, sou negra com direitos humanos como no geral.
Não sou de cor, sou negra com coraҫão sem rancor.
Não sou de cor, sou negra com coraҫão que brota amor.
Todas as raҫas têm valor.

 

Morada

Teve um dia que tinha um rio correndo na palma da minha mão.
Peguei nesse rio pensando que de um lápis se tratasse.
E tentei escrever um poema na pele de um beija-flor encostado ao chão.
Tentei também fotografar a voz de uma borboleta.
Entretanto, só consegui beijar o corpo de uma luz.
Fiquei feliz por ter tentado construir uma casa com poesia na imaginação.
Nesse dia o pôr-do-sol se fez dentro de mim.
A partir desse dia minha alma passou a ser a morada do ciclo do vento.

Ode ao Ninho

Tudo em mim já foi escrito.
O que escrevo é um riacho da aurora.
Meus lábios gorjeiam.
Meus olhos adejam.
Meu corpo já morreu.
Minha alma sonha os mesmos sonhos com o coração de um passarinho.
No ninho é onde os passarinhos escondem com desvelo a infância das cores.

Ritual

Eu caminho rãs e árvores.
Meus passos são poemas que eu escrevo no canto do olho da terra.
O lugar de onde venho o olhar das crianças aplaina as cores do amanhecer.
Minha alma preza o alaranjar do crepúsculo.
Tenho em mim todas as dores e todos os medos do mundo.
Meu ângulo de visão precede a eternidade e o tempo.
A cor dos passarinhos me plagia.
Deus me benzeu perante a lua.

Movimento Verbal

Dou um passo passarinho.
Ponho minha alma na boca do mundo.
Passo a passo vou me tornar poesia.
Minha alma acompanha o passo do sol.
Atravesso o olho do rio pelo meio.
Ando com um rio na palma da mão.
Estou em comunhão com Deus.

 

Minha Terra, Meu Chão

Minha terra é borboleta furtiva fonte inesgotável de afecto e carinho.
Meu chão é pássaro vestido de amor que adeja alto desejoso em regressar ao ninho.
Tu és meu sonho suspenso ao redor do olho do sol.
Minha terra é gaivota fragmentada em fatias no leito do tempo.
Meu chão é sapo dourado de ternura com alma infinita de sonhos.
Tu és semente de alegria plantada no chão da poesia da minha alma.
Minha terra é garça esbelta e esguia perfumada de rio que plagia o azul do céu.
Meu chão é andorinha nascendo e crescendo no coração do vento.

 

Amor Pássaro

Te amo com amor de passarinho.
Sujo de lírios e acácias.
Enamorado por rosas e violetas.
E enfeitado de girassóis.
Te amo com amor de passarinho.
Perfumado de arco-íris e magnólias
Que levanta voo do meu corpo.
E viaja no tempo.

O Guardador de Formigas

Tudo me formiga.
Minha única função é guardar formigas dentro da barriga da terra.
Eis que tenho esse compromisso com Deus.
Vi uma formiga carregando Deus nas costas.
E fiz vénia à formiga.

 

Conversa com Deus

Estávamos Deus e eu conversando sentados no chão do vento.
Deus me disse que o amor habita no ser com coração do tamanho de um continente.
Deus me disse que ninguém se torna poeta sem aprovação de um passarinho.
Deus me disse que o beijo é o casamento entre as almas dos lábios.
Deus me disse que os grãos de areia são as estrelas do chão.
Deus me disse que há sempre nada na poesia e há sempre poesia no nada.
Deus me disse que todo aquele que ama seu próximo acende uma fogueira no coraҫão.
Deus me disse para sorrir e sonhar porque cada alma no mundo se alimenta daquilo que sonha.

Metáfora Andante

Estou sentado no chão de um verbo.
Meu olho direito é a infância da cor de um rio.
Meu olho esquerdo está envolto de auroras.
Em todo mundo há caminhos e passarinhos cheios de mim.
Meu mundo tem cheiro de chuva e cabe dentro de uma borboleta.
Meu poema é o meu recital.
Sempre que escrevo estou me recitando.
Minha escrita está voando.

O Sem-Abrigo

Sou menino pobre de rua que caiu do céu.
Sem família e nome.
Que deambula nas calçadas imundas de Maputo.
Com roupas rasgadas pelas mãos da chuva.
Vendo outros meninos limpos e bem vestidos.
Quem me dera se eu tivesse uma casa no planeta Júpiter.
Quem me dera se você não me desprezasse Moçambique.
Sou menino de rua que a miséria e a fome apagam todos os sonhos no coração.

 

Irracionalidade Poética

Tudo o que escrevo está inclinado.
Escrevendo atravesso rios e oceanos.
Quando escrevo sou muitas aves e muitas pedras.
Minha escrita humilde rasteja o chão das coisas.
Renasҫo sempre que escrevo um poema.
Falo um caranguejo sentado na mão destra de Deus.
Escuto anémonas e flores falando de mim.
Todas as paisagens do mundo são comigo.

 

Manoel de Barros

Nasci falando avencas e violetas.
Uma parte de mim é rio e a outra parte é um passarinho.
Estou sempre enamorado de sol e águas.
Escrevo sempre com o lápis dos musgos e a letra dos sapos.
Meus versos sujos são passados a limpo pelas árvores e pelos caracóis.
Meu céu é o mundo silencioso das coisas.
Cada alfazema no mundo é uma imagem de mim.
Tenho vocação para ser poesia.

 

 

O Anunciador de Prodígios

Um passarinho me deu jeito de ser.
Minha fala tem formato de lua e pássaro.
Corre a infância de um rio em mim.
Descanso do poema fazendo poesia.
Minha fé é riacho de luz.
Hoje o dia comeҫou de mim.
Tenho medo de alturas.
Voar para mim só dentro poema.

 


Poema que me Escrevo

Ser poeta é tomar conta de passarinhos.
Meus poemas são passarinhos que fogem de mim.
Minha voz já viu o chão do sol abarrotado de jacintos.
No chão do outono meu olho é peixe verde morando na copa de uma árvore.
Minha alma é borboleta que cata as cores do amanhecer.
Meu exílio é sabiá laranjeira.
Quando eu morrer serei sepultado na testa de um caramujo.
Não sou poeta, procuro ser poesia.

Ave, Poesia

Num rompante uma ave me inaugura para o mundo.
Vivo e ajo como a aurora.
Não há ave que não vou ser.
Pertenҫo ao rio que canta.
Não existe meu ser sem poesia.
A poesia me faz comungar com Deus e com a essência das coisas.
Quero o crepúsculo do mais perto de Deus.
Procuro a essência desse meu jeito.

 

O menino de passarinho

Hoje acordei poesia.
O que me salva de mim mesmo é toda poesia do mundo que me visita.
Minha fonte de inspiraҫão é a natureza primordial e as coisas simples do quotidiano.
Minha escrita não tem fronteiras porque minha poesia já engravidou o mundo.
Só a poesia eterniza as coisas e os seres.
Em algum lugar do mundo há um passarinho procurando por mim.
Até morrer serei poesia.
Tenho o dom das aves.
Só escrevo para voar.

O Dador de Memórias

Passo as horas a brincar dentro das memórias da minha infância.
Sou ser que vive uma infância permanente.
Pela escrita visito álamos e jacintos.
Preciso de um sonho para me amanhecer.
Acredito que vou morrer árvore.
Talvez um dia renasҫa poeta.
A poesia é rio que corre fora e dentro de mim.
Dou memórias de ave para minha infância.

 

Marisa

Teus olhos são jóias raras da cor da chuva.
Teus cabelos são rios correndo no leito do vento.
Teu beijo bom é mel puro da colmeia que se estende ao alto mar.
Teus seios são pêssegos deliciosos tombados no chão da lua.
Tua alma é árvore plantada para além do chão do horizonte.
Minha sina está nos teus lábios suaves semelhantes aos anjos serenos dos céus.
Teu corpo é fruto amadurecido pela utopia divina.
No chão da tua boca correm todos os rios do mundo.

 

Incomparável

Vi a lua fazendo amor com as estrelas.
Vi a neve caindo durante o verão.
Vi a mentira se apaixonando pela verdade.
Já vi Deus dançando marrabenta com os anjos dourados no céu.
Já vi tudo neste mundo.
Mas ainda não vi nada que me impressiona como tu.
Já amei tudo nesta vida, cheguei até a amar o imensurável.
Mas o amor que sinto por ti é incomparável.

 

Deus

Tenho em mim um menino.
Um menino cor de orvalho.
O menino em mim tem cheiro de amor e sonhos.
É um menino que brinca no quintal da minha alma com brinquedos, pipas e livros.
O menino tem asas de flamingo e lábios da cor do sangue das libélulas.
Esse menino é a poesia da minha alma.
Esse menino é Deus.

 

Domingo

O sol nasce no rio do horizonte.
Transbordando amor infinito e suave.
Sobre o córrego do meu olhar.
O sol nasce no coração do domingo.
Despejando amor que cabe na mão de uma flor.
Amor que roça e torna delicada a pele da humanidade.
O sol do domingo é cego, surdo e mudo.
O sol do domingo é Deus brilhando com rigor.
E tornando o meu âmago um coliseu de amor.

 

Milionário do sonho

Meu sonho que não tenho.
Meu sonho que sonho.
Todo sonho bom deve ser bem-vindo.
Todo sonho meu jamais se apaga.
Existe sempre um mundo novo por criar, um mundo para amar e declamar.
Eu sonho com verdade e bondade.
Sonho com igualdade e paz.
Meu sonho é liberdade.

 

fotografia de Morgado Mbalate

Morgado Henrique Mbalate, mais conhecido por Morgado Mbalate ou o Anjo das Palavras, é Escritor e Poeta moçambicano. Nasceu em Maputo, a 6 de Setembro de 1993. Licenciado em Filosofia (USTM). É membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO); Cofundador do Círculo Académico de Letras e Artes de Moçambique (CALAM). Autor dos livros Odisseia da Alma (2016); A Arte Suave da Palavra (2020); Co-autor do CD de Literatura Negra O que nos a Bala (2018). De entre prémios e distinções, destaque para o Prémio Bicentenário de Dostoiévski (2021); Prémio Mundial de Poesia Nósside (2014), e Prémio Fernanda de Castro do IV Concurso Internacional de Poesia e Prosa (2017). Participou da 4ª edição do Festival Internacional Earthquake Terramoto (2021). Seu poema “Africanizando” foi reproduzido em vários livros didáticos do ensino fundamental brasileiro, e seus textos foram traduzidos para francês, inglês, espanhol, italiano, e são estudados em escolas e Universidades em Moçambique e no Brasil.

 

 

 

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