Política

A mudança inevitável | Artur Alonso

‘”Eu sou uma estação, e o filho das estações, surgido do ventre do espaço infinito da luz. A luz, a origem do ano, que é o passado, que é o presente, que é todas as coisas vivas, e todos os elementos, é o Eu. Tu és o Eu. O que tu és, isso sou eu” (Dos UPANIṢADS. do Rigveda – um dos livros da sabedoria espiritual indiana) 

 

OS PLANOS 

 

5 são os planos por onde a realidade da contínua mudança se verifica. Em tempo de Khali Yuga ou Idade de Ferro (Período de obtenção do conhecimento pelo Rigor-Rigor – com muito apego ao material), este tipo de câmbios, que produzem grandes transformações políticas, sociais e psicológicas normalmente se realizam com grande atrito; dado em este período a espiral das contínuas mudanças se movimentarem com fricção, combate, luta… Todos os planos interagem, de maneira holística, inter-relacionando-se entre si, de maneira conflituosa. E, a sua vez, todos os planos se interpenetram, com maior ou menor intensidade e frequência; e no entanto também existem momentos de fluidez. 

 

Eis, então, os planos onde se exercitam as pressões precisas, que continuamente estão a provocar os movimentos de transação, rotação e translação:  

 

1- Plano  Espiritual – Plano da Egrégora Maior  – que um determinando momento comanda a humanidade (e esta formada pelo pensamento coletivo espiritual elevado  que a alimenta) – Dela surgem os outros pensamentos: religioso, filosófico, político, social, cultural. Influenciado os movimentos cientifico- tecnológico (que sempre mudam a mentalidade – psique, propiciando as mudanças sociais). Seguindo a equação: revolução cientifica – revolução tecnológica – revolução social.  Todos estes coletivos pensamentos formando suas respetivas egregóras inferiores, tal como bem desenvolveu este conceito, em seus trabalhos, o grande psicanalista suíço Carl Jung, definindo ao mesmo termo: como uma poderosa corrente de pensamento, formado por um grupo de pessoas, que se concentram em um determinado tema, desenvolvendo uma energia comum. 

 

Em nossa era atual no Ocidente, a Egrégora dominante – pensamento coletivo raiz – é a do Cristianismo (já muito deteriorada e transformada, desde sua versão original, quando o Imperador romano  Constantino estabeleceu a base da mesma no Concílio de Niceia, em  325 d.C.).

 

A Egrégora em combate no interior do Ocidente por que grupo de poder vai comandar a mesma. Em combate exterior com outras egrégoras, como as do Islão, Budismo, Hinduísmo… Assim também, com as suas alianças internas e externas (dentre as comunidades de outros credos que vivem no seu seio, nas bordas das suas fronteiras, o convivem no exterior com ela). 

 

Neste plano, o seu aspeto exterior religioso oculta o seu aspeto interior – superior – do conhecimento primordial espiritual, cuja essência permeia todas as eras, dotando-se em cada uma delas de um certo envoltório exterior religioso, conforme à tónica evolutiva que, em cada determinado período histórico, manifesta a humanidade, em uma determinada região do orbe. 

 

2- Plano Civilizacional – Cultural – A civilização ocidental ao comando em combate com outras civilizações que lhe disputam a supremacia. No nosso atual momento em destaque, o confronto com a civilização Euroasiática. Embate entre esse conjunto de caracteres culturais, políticos e sociais, que representam uma determinada visão do mundo. O Ocidente mais individualista – progressista – O Oriente mais coletivista – conservador…  

 

3- Plano Geopolítico – com a luta pelo controlo hegemónico global – em nossos tempos entre dois  blocos antagónicos: o Ocidente coletivo unipolar – O novo “Sul Global” multipolar, comandado pela Euroásia… Disputando alianças, agora em andamento – com a África virando, em sua maior parte, a favor da multipolaridade Euroasiática. Com outros atores como a Índia ou o Brasil tentando manter uma certa neutralidade, a cada dia mais complexa e difícil de construir, devido a pressão  dos bandos em liça – Assim como ao desenho global de divisão entre o poder unilateral e multilateral; ambos já em combate físico em zonas de fricção – necessárias para delimitar as futuras linhas, que demarquem ambos os espaços, para ambos os combatentes – se houver acordo geopolítico, que evite o confronto físico total entre eles. 

 

4- Plano Económico –  aqui se verifica a luta no topo, pelo modelo económico global a implementar no mundo, em plena global mudança.

 

Ocidente – tentando realizar a transição de um velho modelo: capitalismo, já enterrado em 2007-2008 (começo da agonia lenta e fim da agenda neo-liberal do presidente Ronald Reagan e primeira ministra britânica Margareth Thatcher, nos anos oitenta do século passado), até um modelo neo-feudal de Corporativismo Elitista ou Socialismo Fabiano – igualdade no topo, desigualdade na base (socialização das perdas – privatização dos ganhos) – Bebendo das fontes de um neo-fascimo tecnocrático (o símbolo do fascio prevalece no dólar) idealizado, no seu dia, pelo norte-americano, de origem polonesa Zbigniew Brzezinski (ver seu livro “A Era Tecnotrónica”) – Modelo no qual o Estado e as populações servem a Corporação – Absorção de rendas da base ao Topo – e redistribuição do Topo à base, segundo as circunstâncias, limites e capacidades de cada nação.

 

Oriente – fazendo a mudança do capitalismo – em favor de um Socialismo Estatal – em aliança com o capital privado (que deverá estar ao serviço do poder público – ao mesmo nível do povo). Estado Providência com redistribuição de renda, do Topo à base e a seguir da base ao Topo, segundo a adaptação deste modelo a cada país e às suas circunstâncias.   

 

5- Plano Social – Neste plano, se realiza a luta de classes – e as tentativas de salto – elevação – de uma determinada pessoa, de um determinado grupo ou de uma determinada classe, em caso de vitória – sucesso; ou a sua queda – iniciando uma dinâmica descendente, em caso de perda. 

 

Também neeste plano, existe a luta pela conquista de espaços, dentro das diversas organizações sociais, e as suas inquietudes. A luta – guerra, a realidade própria deste período, se realiza na sociedade desde a família até à escola; desde o mundo académico até ao mundo laboral. Com situações de colaboração e espaços para exercitar a “Ajuda Mútua” estudada por Piotr Aleksêyevich Kropotikin, mas não tendo ainda capacidades, nem possibilidades, nem condições para a sua total exteriorização  e plena realização (fora pequenos espaços ou pequenas comunidades) – Este exercício da ajuda mútua também vai do âmbito familiar, vizinhança ate ao meio académico ou laboral – por vezes até ao cultural, empresarial, militar ou político.  Mas muitas vezes este exercício da nobre colaboração está mais determinado pelas circunstâncias do que pelo desprendimento da psique guerreira.

 

MUDANÇA ESPIRITUAL 

 

No plano Espiritual – o mundo assiste, devagar, às mudanças da Egrégora do Cristianismo no Ocidente, junto ao Islão e ao judaísmo no Oriente, em favor da Nova Egrégora do Ecumenismo (que tendo movimentado já o eixo de rotação desde a Europa – Norte-América ate à Euroásia, começa um processo secular complexo de integração com os seus receios e acordos difíceis, das três religiões nesta região). Neste aspeto, a união e a fusão dos três credos terá de ser consolidada, após um longo e grande período de contacto entre elas, produto dos espaços geopolíticos e culturais compartilhados, assim como das alianças múltiplas e convivência histórica (que nem sempre se verificou, e ainda não se verifica muito pacifica) das suas comunidades específicas.

 

Mas a sua definitiva fusão no tempo aparenta já não poder ser concretizada desde o centro que comanda o Ocidente. Nas últimas décadas (apesar da espécie de aliança das civilizações, promulgada, em seu dia, pelo presidente norte-americano Barack Obama, no seu discurso na Universidade do Cairo, em 9 junho de 2009), as pontes de diálogo entre Islão, Judaísmo e Cristianismo se têm deslocado para a Ásia – apesar dos confrontos ainda vigentes; por causa dos últimos acontecimentos geopolíticos, muitos deles herança viva de um passado muito violento e doloroso. 

 

O estabelecimento de uma ponte entre o Irão xiita e a Arábia Saudita sunita, feita pela China (que se está a transformar num centro da diplomacia da paz, ao qual o Brasil tenta somar-se), é um facto histórico – numa disputa que dura há quase um milénio. Um pequeno passo de inquestionável valia, e que situa a China no mapa da relações geopolíticas, além dos compromissos de desenvolvimento económico. Mas este avanço não teria sido possível sem, antes, a Federação  Russa não ter feito um trabalho diplomático durante anos, nas traseiras, com ambos os atores regionais, fazendo-os ultrapassar as dinâmicas de confronto, que o Ocidente tinha alimentado – entre um Irão visionado como inimigo a bater e um reino saudita, que foi, junto a Israel, o grande aliado ocidental no território. Um reino saudita, aliado fiel dos Estados Unidos, agora mudando na sua aproximaçao e integração na Eurásia. Dentro de um Oriente Médio, que agora está a mudar nome para  a denominação euro-asiática  de Mundo Islâmico.

 

“Você não pode acordar uma pessoa, que finge estar dormindo” (Provérbio Navajo)

 

Diferente visão Ocidente – Oriente 

 

Precisamente aquele discurso de Obama, que teria de iniciar um processo de cooperação e casamento pacifico entre o Ocidente e o Islão, “tal como se afirmava no seu inicial pronunciamento, deu na prática nas primaveras árabes – na derrubada dos últimos governos laicos da região, como a Tunísia, e encaminhou a um duro confronto, entre um mundo sunita – comandado no início pela Fraternidade Muçulmana, após a queda em fevereiro de 2011 do presidente egípcio Hosni Mubarak, e a consolidação  do poder pelo presidente turco Recep Tayyip Erdogän – por um lado; contra o mundo xiita, comandado pelo Irão, no outro lado. Derivando no assassinato do presidente líbio Muamar el Gadafi, na cidade de Sirte em 20 de outubro de 2011, consolidando a queda dos regimes seculares, nascidos na ideia do presidente egípcio Nasser (nos anos 50 do século passado) de formar a Grande Nação Árabe Unida (projeto demolido pelo Ocidente, que receava uma concorrência poderosa nessa vital parte do planeta). 

Afiançado, assim, com estas revoltas, o poder aliado apoiado pelo Ocidente em grande parte da região e estimulando a sua aparente imparável expansão por toda esta área tão geo-estratégica. 

 

Mas a Arábia Saudita entrou em contradição com outros países do golfo como o Catar, ou os Emirados Árabes Unidos, irrompendo no panorama belicista da região, em plena remodelação geopolítica, com a entrada do Califado Islâmico no Iraque (liderado por Abu Bakr al-Baghdadi) em junho do ano 2014 – chegando no início a ocupar a maior parte do país, e uma ampla zona na Síria – contrapondo-se ao poder da Irmandade Muçulmana, mais afim às pequenas monarquias do Golfo – e lançando um novo tipo de jihadismo de ideologia fundamentalista wahabita, mais na linha de Riade. Abrindo ainda mais o foco do caos, numa guerra cruzada entre sunitas wahabitas e a Irmandade Muçulmana, por um lado (ambos aliados do Ocidente); contra xiitas apoiados pelo Irão (inimigos do Ocidente).

 

O início da guerra civil na Síria, em 15 de março de 2011, ampliava o teatro de operações, na disputa regional entre xiitas – sunitas (wahabitas e aliados da fraternidade muçulmana); assim como a disputa geopolítica entre o Império dominante Ocidental – e o foco da resistência anti-imperial Oriental, encontra a visão de expansão anglo-saxónica e a excecionalidade norte-americana. 

 

A entrada da Rússia em finais de setembro de 2015 na guerra síria abria ainda mais o foco de colisão geopolítica, pela Rússia fazer uma leitura do Ocidente (ver os informes da Rand Corporation sobre a necessidade de fragmentação da Federação Russa) estar a trabalhar num plano de desestabilização da Federação Russa, por meio de alargar o caos até às suas fronteiras, e desde a periferia explodir o centro da sua nação (seguindo a doutrina de Józef Klemens Pilsudiski, chefe do Estado polaco de 1918 a 1922 – acrescentada a contenção e asfixia da Rússia, da velha tática do Império britânico. A teoria da “anaconda”). Esta entrada em cena da Rússia, junto à capacidade de resistência demonstrada pelo Irão virou o tabuleiro geopolítico do Médio Oriente, muito a favor do Ocidente. Aprimorando à sua vez a aliança militar Irão – Rússia. 

 

O Irão, através do general Soleimani (que vai coordenar todas as guerrilhas pró xiitas da região), vai dar um golpe muito efetivo tanto no Iraque como na Síria (onde o apoio do grupo libanês Hezbollah se demonstrou muito importante); assim como o Iêmen, onde a guerra iniciada em 16 de setembro de 2014 se ia converter, rapidamente, num confronto indireto entre a Arábia Saudita e o poder Persa. Com uma grande desvantagem em capacidade orçamentária e poder de fogo a favor dos sauditas, que foi habilmente minorada pelas capacidades táticas e estratégicas dos persas. A efetividade de certas armas iranianas (como os drones e os misseis de curto alcance) junto à capacidade de rápida movimentação de pequenos grupos de combatentes, na guerra iemenita; assim como da nova tecnologia militar russa na Síria, pôs em evidencia a propaganda de superioridade ocidental, no campo de batalha. 

 

As dificuldades do Ocidente se viram incrementadas, após o atentado ao general persa Qasem Soleimani, no aeroporto de Bagdade em 3 de janeiro de 2020, que ocasionou a sua morte. A vitória inicial dos EUA deixou muitas incógnitas abertas, sobre a capacidade real de controlo da região por parte de Washington; sobretudo após a resposta iraniana com um ataque a uma base norte-americana na Síria, que, mesmo sendo pactuado com os norte-americanos no pátio das traseiras (hipótese sem demonstrar), debilitou a credibilidade da força real dos militares norte-americanos na zona.

 

Finalmente, a retirada destas tropas do Afeganistão, em 30 de agosto de 2021, criou um vazio, que teve de ser preenchido pelo poder combinado russo -chinês. Apesar dos EUA continuarem a ter peso na região, ele foi muito minorado a partir  desta data; e mesmo a mudança brusca de governo no Paquistão, em teoria favorável ao Ocidente, na pratica não tem manobra suficiente para retirar-se do encaixe das rotas chinesas da seda (e a população não segue favorável ao ex-primeiro ministro deposto Imran Khan)  – Uma contrariedade, que marca novas  tónicas no relacionamento global.

 

Por sua vez, a segunda guerra no Nagorno-Karabaj, entre o  Azerbaijão e a Arménia, pôs de manifesto as limitações russas, de momento, para estabilizar a região. No entanto, a ambivalência Turca, com um pé atendendo o Ocidente, e com mais um outro pé instalado já no Oriente – não permitem também, de momento, quebrar suas conexões com a Rússia, lançando seu aliado azerí num confronto que possa estender-se por toda a zona (caos, que favorecia o Ocidente – ao quebrar uma das rotas centrais de interconexão da Ásia Central e do Cáucaso). O recente anúncio da Arménia do reconhecimento da soberania azerí nesta região, mesmo pondo de manifesto a fraqueza de Ereván, de momento não altera esta proporção de forças.

 

Finalmente, a reunião Putin – Xi Jinping de março de 2023, vem subscrever um divisor de águas entre o mundo multipolar, encorajado pelo Oriente, e o mundo unipolar – ainda defendido pelo Ocidente. A Rússia, definitivamente retirada da Europa – virada para o Oriente, abandona o Ocidente, ao qual visiona já como um inimigo irreconciliável (dando força ao plano Euro-asiático, elaborado pelo exílio russo dos anos 20 do século passado, ao qual aderiram os neo-estalinistas, derrotando os pró ocidentais atlanticistas e os nacionalistas imperialistas) e a China, afiançando um desafio indireto aberto com o Ocidente, em aparência comercial – geopolítica, mas em realidade de espectro total – nos 5 planos já falados – se posiciona em favor de um avanço no caminho do crescimento do poder do “Sul Global” ou a “Maioria Global”, como denominou Serguei Lavrov. 

 

O mundo começa a sua divisão em dois – e, de momento, a neutralidade, de um terceiro caminho, que poderia encenar Brasil – África do Sul – Índia, de momento mantém cerco no seu possível espaço, a cada dia mais  reduzido e mais difícil de consolidar. Na prática, Rússia – China aparentam ter mais acesso a uma verdadeira aliança final com o Mundo Islâmico (que não podemos dar por definitiva, dado a quantidade e diversidade dos processos em andamento), que de fortificar dado a sua posição no Oriente ser hoje mais firme, que faz apenas cinco anos poderia cimentar as bases – de uma aliança civilizacional Islão – Cristianismo Prtodoxo – Budismo tibetano chinês (anulado o Dalai Lama, aliado do Ocidente) – com o Hinduísmo e o Taoismo – confucionismo… que finalmente vai abrir a porta para a mudança da Egrégora do Cristianismo ao Ecumenismo (já não na inicial visão vaticana de união dos três credos cristãos se não na mais recente união das três religiões abrâamicas).  Um fato de impressionante magnitude, que não podemos avaliar, até passar séculos.

 

“É assim que o homem peca, quando se afasta de ti e busca fora de ti a pureza e a limpidez, que ele não pode encontrar senão voltando para ti” (Livro das Confissões – Santo Agostinho)

 

GEOPOLÍTICA E CIVILIZAÇÃO 

 

Além dos complexos processos, que se deram nesta região, a partir do inicio das primaveras árabes, o desencanto da maior parte das sociedades islâmicas com o que elas consideram “invasão da cultura” ocidental, iniciou una  faixa de distanciamento, que aqueles próprios acontecimentos não deixaram de aumentar. A doutrina Rumsfeld – Cebrowski, apoiada por Paul Wolfowitz e Colin Powell, nascida na década dos anos 90 do século passado, mas amplificada desde a Administração Bush pai até Obama, visava a remodelação e gestão do mundo, desde a visão unipolar norte-americana, com as raízes bem fundamentadas no direito de criação de uma outra nova Pax Americana, como uma espécie de destino manifesto, baseada no “excepcionalismo” do “Vigia de Ocidente”.

 

Nesta visão, o controlo da produção, distribuição e mercados de cotização da energia era prioritário. Para conseguir tal fim, o uso da força militar não deveria ser descartado. A região mais  geo-estrategicamente posicionada para tal fim era, sem dúvida, o Oriente Médio. A “guerra contra o terrorismo” encaixava perfeitamente neste plano, onde os exércitos tradicionais são substituídos por uma rede de comando piramidal, que controla diversos contingentes, que podem atuar em determinados objetivos em determinados países à vez. Mantendo a superioridade militar que os EUA lhe davam sua bases militares, por todo o mundo e seu policiamento global do Orbe. 

 

Lutas contra determinados grupos de poder, para aniquilá-los, ou contra determinadas pessoas (cabeças de determinados movimentos políticos ou presidentes de Estado); substituía  a tradicional luta para derrubar um Estado. Não se descartava a instauração de um “Caos controlado”, com o objetivo de dominar uma determinada área, conseguir seus recursos e depois normalizar a mesma. 

 

Mas todas estas intervenções militares, além de um gasto excessivo de recursos económicos e seus desastres na prática: Iraque, Líbia, Síria… começou a criar uma desconfiança excessiva no imaginário coletivo do mundo muçulmano. O enforcamento do presidente iraquiano Saddam Hussein, as cenas dos abusos da prisão de Abu Ghraib, os constantes erros e mortes, por causa de danos colaterais, no Afeganistão. A guerra contínua na Líbia e os seus “mercados de escravos”, assim como a capacidade de resistência tanto das milícias Talibans, como dos milicianos xiitas em toda a região… afiançariam esse clima de desconfiança com o modelo civilizacional que propaga o Ocidente. 

 

Finalmente, os desencontros sauditas e norte-americanos, por causa da concorrência e a diferença de interesses no referente ao sector petrolífero (que fixara as alianças do pétro-dólar) levou a que Riade, observando como perigoso, para a mesma sobrevivência do seu Estado, o caminho geo-estratégico seguido pelo Ocidente. O príncipe herdeiro saudita Mohammad bin Salmán começou a simpatizar mais com o presidente russo Vladimir Putin, ao ponto de coordenar movimentos na OPEP, muito mais desfavoráveis aos interesses norte-americanos. Recentemente, a Arábia Saudita bateu à porta dos BRICS.  Ainda mais, com os passos dados pelo economista Serguéi Gláziev, na ideia de criação de uma divisa internacional, que num futuro possível possa substituir o dólar como moeda referente no mundo multipolar, e o intercâmbio comercial em moedas locais, entre potências dos BRICS; assim como a sua coordenação com as organizações supra estatais asiáticas… As posições pró ocidentais na região começam a vasculhar em favor do polo Euro-asiático. 

 

A maior parte dos países da zona preferem enterrar os velhos confrontos e trabalhar numa aliança, complexa, difícil, mas pragmática, que permita estabilizar o corredor euro-asiático, e seus prometedores negócios, sustentando nas inversões chinesas em infra-estrutura  e nas conexões energéticas. Situação que mesmo afeta Israel que, de momento, prefere não implicar-se na guerra da Ucrânia, nem contrariar a Rússia. Más noticias, neste lado do globo, para o Ocidente.

 

Todos estes desenvolvimentos, ainda em lento andamento, aumentam a separação civilizacional, que se vê acrescentada, com a percetiva oriental conservadora, de enraizamento cultural na base tradicional, contra a versão civilizacional ocidental de comunidade de valores locais – não assentes nas bases tradicionais, senão que as ultrapassam em áreas de uma nova pós-modernidade universalista de “Aldeia Global”, que para os orientais é observada como lesiva, destrutiva e decadente. 

 

“Nosso primeiro professor é nosso próprio coração” (Provérbio Cheyenne)

 

A POLÍTICA DA RUTURA 

 

A Presidenta da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen e o Alto Representante da União, Josep Borrell, no dia 18 de abril de 2023, diante do Parlamento Europeu em Estrasburgo, falam da necessidade de modificar a estratégia da Europa frente à China, elaborada em 2019.

 

Dos seus discursos se podem extrair conclusões, que vão ao encontro dessa nova demarcação entre o mundo ocidental e o oriental. Reconhecendo a multipolaridade como um facto já em andamento, Josep Borrell deixa em evidência a impossibilidade para a Europa de estabelecer uma política verdadeiramente independente, fora das margens que delineia Washington. Tendo em conta, por sua vez, a impossibilidade atual de cortar o seu relacionamento comercial com a China (devido ao volume e importância deste intercâmbio), incentiva a reflexão de que a Europa deverá procurar no longo prazo, reverter uma balança muito favorável ao gigante Asiático. Reconhecer a China como super potência, enquanto ignora a Rússia, quase um pária, parece ser também uma orientação da nova política da União, se tivermos em conta as palavras de Borrell.

 

Abrir a porta a uma versão de um mundo multipolar liderado pelos EUA e China, como duas potências em colaboração, num futuro mundo mais integrado; sempre e quando a China abandonar a Rússia à sua sorte também veio deslizar a nossa imaginação, ao escutar as palavras do Alto Representante Europeu, o senhor Borrell. 

 

A Europa se afasta da Rússia e da China e acha que elegeu bem qual é o lado correto da historia, ao mesmo tempo que o Brasil de Lula é visto como novo ator, que quer voltar à cena mundial, desafiando o Ocidente, após manter uma neutralidade, que a Europa considera como uma mão  estendida à Rússia agressora, no caso da Ucrânia; e, ao mesmo tempo, desafia a supremacia do dólar no seu novo relacionamento comercial com a China, é um passo não do agrado de Bruxelas. A Europa adverte o Brasil – e com este toque de atenção, a todos aqueles países que no Sul Global tentam seguir estas políticas, de cuidar-se da deterioração diplomática com o velho continente. 

 

No entanto, a Europa está ciente de que está a falar para a sua própria gente: para tranquilizar os Estados Unidos, após o presidente francês Emmanuel Macron ter acenado em Beijing uma espécie de dissidência ou ambiguidade no tema da Ucrânia… Reafirmar as suas posições ao abeiro do guarda chuva da OTAN e a sua firmeza contra a irreverente Rússia e lembrar aos Estados Europeus que tentem jogar no polo contrário dentro da União que não vai ser tolerada dissidência em assuntos de tanta importância. 

 

Sabe a Europa que, por muitos motivos, a China não vai abandonar sua estratégia de unidade total com a Rússia, mas para reassumir basta dizer que, apesar dos elogios de Borrell, de falar de uma China que como super-potencia não precisa de ninguém (e que, junto aos EUA, poderia obter a o estatuto de única super-potência, a ter voz global no mundo), a China é muito consciente que sem o apoio militar russo, seu poder de dissuasão fica praticamente anulado, num futuro confronto (não falamos de guerra aberta) geo-estratégico com a OTAN (leia-se estreito de Taiwan) E que, sem esse poderio militar russo, o Ocidente imporia seu mundo baseado em “regras” sem apenas resistência. 

 

E dizer que, se o poderio económico chinês permite ao novo “Sul Global” retirar a dependência imposta pelo Ocidente, através das “dívidas perpetuas”, e jogar com as ofertas de ambos os lados da balança, é o poder militar russo o único capaz de confrontar um ataque frontal Ocidental, como se demonstrou na Síria ou reverter uma guerra híbrida, como se está a verificar em diversos países da África, onde revoltas têm sido travadas, graças à ajuda russa, ou dos seus aliados, como é no caso de Angola na república do Congo.

 

Assim que Ursula Von der Leyen finalmente confirmou, para aqueles ouvidos que têm a capacidade de ouvir o que vai além da suavidade dum discurso em aparência conciliador, mas no tom desafiante, que o novo mundo se divide em dois novos blocos, que no inicio vão aparentar irreconciliáveis, se formos capazes de evitar uma guerra quente (que a todos preocupa ante a  possibilidade de virar num confronto termonuclear). E, de seguir assim o curso da guerra na Ucrânia, talvez a linha delimitadora de ambos os espaços seja, a partir de agora, o rio Dnieper. 

 

Um novo mundo dividido em dois blocos económicos, culturais e mesmo civilizacionais, onde países como o Brasil, que já foram advertidos, ou a Índia e mesmo a África do Sul, não vão ver fácil tentar abrir uma fenda entre ambos os blocos para criar uma necessária terceira via neutral, que possa fazer de mola para evitar fricções desnecessárias, forçar o fim da guerra atual e evitar uma nova reedição bélica frente às costas de Taiwan, ao qual Josep Borrell deixou claro o Ocidente não pode renunciar (daí o seu apoio decido a Taipei, engavetando para sempre o discurso conciliador anterior, de reconhecer a unidade da China), dado este estreito ser um dos mais importantes nexos geo-estratégicos do mundo.  

 

“Leve um pouco de substância daqui para lá; você não vai conseguir nada se for com o mãos vazias” (Idries Shah – “O Caminho do Sufí”)

 

OS MODELOS ECONÓMICOS EM CONFRONTO 

 

Tendo em conta que perto de 80% dos dólares que circulam pelo planeta foram imprimidos a partir de 2020; e sabendo que a manutenção do dólar como moeda de referência internacional é uma prioridade absoluta para o Ocidente, para manter o organograma mundial, que através da “dívida perpétua” lhe permite direccionar fluxos de capital das periferias do sistema para o centro, não é de estranhar, que aproveitando as vantagens da nova situação geopolítica, com um novo polo de compensação russo-chinês em andamento, os países do chamado “Sul Global” estejam atentos a novos mecanismos que lhes permitam sair do poder do dólar e tentar reequilibrar as suas balanças internas e externas, dando-lhe mais prioridades, se a conjuntura permitir, a suas moedas nacionais. Algo somente realizável contando com as novas inércias criadas pela China, auxiliadas pelos países produtores de energia (da qual a China, devido ao seu volume de produção industrial, é um grande consumidor – ao contrário dos Estados Unidos, que com o tempo se tornaram auto-suficientes energeticamente e mesmo concorrentes com os exportadores – Daí estarmos no cerne de um possível revezo do pétro-dólar ao pétro-yuan). 

 

O economista norte-americano Michael Hudson, em seu recente livro “The Collapse of Antiquity”, reflete sobre a ideia dos antigos impérios orientais da Mesopotâmica e da Pérsia, cujos modelos influenciaram a Grécia, perdoarem todo o tipo de divida, reiniciando o sistema económico, quando o fardo dos empréstimos chegou a ser um perigo sistémico. Enquanto no Ocidente atual, o credor passou a ser mais importante que o devedor. Assim se expressa o ilustre economista, em uma recente entrevista feita por Danny Haiphong: “Se virmos de onde veio todo este sistema legal que torna a civilização ocidental tão diferente do resto do mundo – bem, é que a civilização ocidental tem uma lei pró-credor que revela ser uma lei que favorece uma minoria no topo em vez de tentar preservar todo o crescimento económico global, que foi o objetivo de descolagens económicas desde a Idade do Bronze, Suméria, Babilónia, ao primeiro milénio, ao Próximo Oriente, à Ásia, para quase todos os países fora do Ocidente. Portanto, estamos a assistir a uma divisão entre o Ocidente e o resto do mundo que é muito semelhante à que havia há 2000 anos”. 

 

Vemos, então, tendo em conta esta achega do iminente economista, que o Ocidente Coletivo mais individualista que coletivista, prioriza a Organização Corporativa por cima da sociedade; enquanto o Oriente mais coletivista que individualista, tende a priorizar o coletivo, que é representando segundo a sua visão pelo poder do Estado frente à Corporação Privada. 

 

Enquanto o mesmo Danny Haiphong acredita que esta divisão já latejante entre o Ocidente e o Oriente tem a sua representação económica na escolha dos primeiros em favor da manutenção do sistema capitalista, e dos segundos, os orienteis, na encenação de um novo sistema socialista (cujo referente fundamental, acreditamos, seja a China), nós pensamos que, dentro de um complexo marco de contradição económica global, inflação, colisão hegemónica em áreas de fricção (entre outras variantes), a procura de mecanismos de controlo da dissidência (olhada em tempos de confronto como quinta-coluna), por todo tipo de poderes governamentais, nos leva à instauração  (momentânea?) de um sistema global totalitário, com suas diferentes versões – Ocidental e Oriental. 

 

Sabendo que estamos transitando de um modelo de poder mercantil até um modelo de maior poder cívico, acreditamos, por igual, que o capitalismo foi o modelo económico referente do poder mercantil, agora tornado em financeiro e será o socialismo o novo modelo a impôr-se no mundo, como reflexo dessa mudança do controlo financeiro para o cívico. Acreditamos que o  Ocidente vai entender mais cedo que tarde que tentar manter o capitalismo somente pode levar ao colapso das suas sociedades e, com ele, a sua perda de influência real no mundo. Assim que enquanto o Oriente já tomou a opção de um socialismo de estado, com todas as suas diversidades: desde o socialismo marxista – confucionista – taoísta, com abertura à integração do Capital Privado, como auxiliar do Papel Predominante do Estado, no caso da China – até ao socialismo de estado xiita iraniano ou o socialismo estatal de pacto entre as castas na Índia… o Ocidente finalmente vai escolher um modelo socialista de Poder Corporativo, de predomínio do Poder Privado sobre o  público. 

 

O Modelo Ocidental, que vem sendo desenhado desde que, na implosão de 2007-2008, no pulmão central de Wall Street – verificou-se a maior socialização das perdas e privatização dos ganhos, acontecido na historia recente da humanidade. Um modelo onde as Corporações Privadas e as Organizações Supra-nacionais ao Serviço da Elite Corporativa dite as normas – Modelo que já foi adiantado com agendas como a do “Capitalismo Inclusivo”, avaliada pelo Vaticano, ou as criadas no Foro de Davos, e na ONU, como a Agenda 2030 ou a Agenda Social Woke, Agendas das quais o Oriente, e com ele, parece que o “Sul Global” definitivamente se estão, em diversas fases – segundo cada região e cada país – separando.  

 

O mais perigoso será passar por cima do divisor de águas, que pode trazer confronto muito sério, nos pontos do mar, onde as águas se misturam, enquanto não fixar os limites territoriais e temporais, de ambos os contendentes…. Divisor que aguardamos seja desenhado por meio dum “Acordo Geopolítico Global”, e não por um combate que pode escalar em qualquer momento e, mesmo, levar-nos a uma Guerra Total, com perigo atómico. 

 

Façamos, pois, votos para que os pacificadores da ambos os lados tenham, a cada dia, mais presença minorando ou anulando o bando dos beligerantes. 

 

Para que essa separação entre o Ocidente individualista progressista e o Oriente conservador coletivista possam divergir nas suas respetivas apostas civilizacionais, sem que com isso a  humanidade fique em grave risco. 

 

Finalmente, o Ocidente, achamos que com o tempo terá (decénios e séculos) que passar o revezo a um Oriente, que mesmo sem ele saber, já começou a construir na prática multipolar a nova Egrégora do Ecumenismo… É curioso que sendo o Ocidente quem iniciou a desconstrução da Egrégora do Cristianismo com a irrupção do Renascimento, a modernidade, o Iluminismo racionalista e a pós-modernidade (retirando em estes avanços toda a superstição que ainda se mantinha em pé, nesta Egrégora, mas também retirando-lhe ou minorando seu aspeto mais transcendente), agora veja quase na impossibilidade de ser ele quem vai a comandar esta transição. 

 

Sendo assim a Egrégora do Ecumenismo racionalista humanista, com a que sonhava Ocidente, parece que vai ser deslocada pela força da nova Egrégora Ecuménica Escatológica do Oriente (não do jeito que sonhou Soloviev no seu “Anti-Cristo”) mas sim, recuperando o carácter mais transcendental do cristianismo, que se conserva ainda na Ortodoxia, junto ao transcendente do Islão e do judaísmo – em aliança com o transcendental do budismo, indianismo e taoismo… 

 

“Então eu vi as almas daqueles a quem as serpentes picavam e sempre devoravam suas línguas. E eu perguntei assim: ‘Que pecado foi cometido por estes, cujas almas sofrem uma dor tão severa?’ Srosh, o piedoso, e Adar, o anjo, disseram assim: ‘Estas são as almas daqueles falantes mentirosos e irreverentes que, no mundo, falaram muita falsidade, mentiras e palavrões” (Do Ardã Wirãz – ou “Livro do Bendito” da tradição zoroástrica persa)

 

Fotografia de Artur Alonso Novelhe

Artur Alonso: escritor com vários livros editados de teatro, poesia, ensaio e romance… Ex diretor do Instituto Galego de Estudos Internacionais e da Paz. Ex secretario do Instituto Galego de Estudos Celtas. Membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono. Membro de Honra da Associação de Escritores.Mocambicanos na diáspora. Membro do Conselho de Redação da Revista Identidades, etc.

 

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
0
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Política