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O Apocalipse de D. H. Lawrence – parte II | Clécio Branco

Esse estrato de destruição está presente em todo o Antigo Testamento, é judeu. A ordem vinda de Deus para os reis de Israel sempre foi a destruição total das cidades inimigas. Não deixar pedra sobre pedra, diziam os profetas, nem crianças nem animais. Nada que fizesse lembrar a existência de um povo derrotado. O lago de fogo e enxofre sulfuroso da condenação dos infiéis no Apocalipse constitui as reminiscências do estrato pagão, um avatar dos elementos da natureza, mas muito mal usados.

A Nova Jerusalém traz consigo o mais terrível juízo e a mais dolorosa punição, em que o inferno perde completamente a antiga relação com a natureza. No caso pagão, o fogo agindo sobre a água a transforma em sal, e a injustiça sobre uma criança faz dela amarga e cruel com as outras crianças: “Mesmo os antigos infernos judaicos, de Sheol e de Geena, eram lugares relativamente brandos, eram Hades desconfortáveis”, mas, se comparados com o terror da Nova Jerusalém, com “seu lago de enxofre incandescente por natureza, onde as almas ardem para sempre”,(1) aqueles ficam em desvantagem, não há mais uma relação intrínseca.

Esse é o inferno da vingança. Os cavalos, os dragões, a mulher, as serpentes, tudo vai se desprendendo de seu sentido simbólico. Deleuze/Lawrence discutem as distinções entre o símbolo pagão e as alegorias do Apocalipse de João: o símbolo no paganismo não representava o fechamento do pensamento, mas estava ali como “potência cósmica concreta”.

Há uma diferença entre o emprego do símbolo e a alegoria do encerramento de um poder final do Apocalipse. Conforme Deleuze, a troca de um pelo outro “substituiu o poder de decisão pelo poder do juízo”, por isso o Apocalipse é um ponto final da história. O espetáculo das visões exige um deciframento que conduz ao fim. O Livro da Revelação é o livro do fim do mundo.

Ver é o sentido que nos separa, a alegoria é visual, ao passo que o símbolo convoca e reúne todos os outros sentidos (…). O símbolo, por sua vez é feito de conexões e disjunções físicas, e mesmo quando nos encontramos diante de uma disjunção, é de modo tal que algo continua passando na separação, substância ou fluxo, pois o símbolo é o pensamento dos fluxos, contrariamente ao processo intelectual e linear do pensamento alegórico.(2)

O vasto “entrecruzamento de linhas” das figuras simbólicas com os animais é encerrado, em sua plenitude, na tese de um juízo final. Os cavalos, as cores, os gêmeos, as mulheres, o dragão, os selos que se abrem uns após outros, os animais, tudo fica suspenso no tom sério do juízo final. A meta final é “desconectar-se do mundo e de nós mesmos”.(3) Desse modo, ao se constituir em um livro de “destruição coletiva”, o Apocalipse representa um protocolo da paranoia coletiva.

João Calvino interpretou na doutrina da predestinação o mais injusto prejudicativo. Metade da humanidade já nasce condenada; a outra metade, mesmo que não queira, já nasce salva.(4)

Os juízes já condenaram os culpados que nada sabem. Nos três estratos, é a formação de um Eu que se funde em alma coletiva. Um Eu bem fundado em convicções, de maneira que não haja conexões com a coletividade. “Um eu não é uma relação; é um reflexo, o pequeno clarão que produz um sujeito, o clarão de triunfo num olhar”.(5)

O Eu já perdeu suas simpatias e antipatias, já não mais se relaciona com a alma, mas com o mundo que já morreu. A grande estratégia de combate é deixar de pensar como um Eu para “viver como um fluxo, um conjunto de fluxos, em relação com outros fluxos, fora de si e dentro de si próprio”.(6) É enganoso pensar que o “aniquilamento do eu em Cristo” colocaria a alma individual em correntes de fluxos.

O tal “aniquilamento” forma um Eu muito mais estratificado, de tamanha convicção que impede a entrada dos afectos de outra ordem de convencimento. Como lembra Deleuze, “a alma, como vida dos fluxos, é querer-viver, luta e combate. Não só a disjunção, mas também a conjunção dos fluxos de luta e combate, abraço”.(7)

O aniquilamento do Eu não passa pela morte do indivíduo; o Eu é convidado para a guerra, por isso o Apocalipse é o livro da guerra final. Há uma recusa da alma em detrimento da ressurreição do Eu coletivo: em verdade, não é o Eu que morre, mas o indivíduo que perde a força ao transferi-la para o Cristo do cristianismo.

Não é a guerra que interessa, mas o combate em favor da alma que cresce quando se deixa de ser um Eu para se lutar. “É preciso conquistar essa parte eminentemente fluente, vibrante, lutadora”, para que seja possível reencontrar o máximo de conexões/disjunções, “para permitir a passagem dos fluxos ou sua alternância”.(8)

Seria possível produzir nos estratos essa movimentação dos fluxos, disjunções/conjunções? Sim, pois, antes de tudo, as disjunções/conexões são movimentos operatórios das relações da física com o cosmos. “Mesmo a disjunção é física, ela só existe como as duas margens, para permitir a passagem dos fluxos ou sua alternância.”(9)

Não cabe mais a separação entre natureza e sociedade. Partimos do mundo físico para abstrair fluxos que embaralham os estratos e as formas de tal maneira que seja possível reinventar outro sistema. O que vimos acima é uma relação da física traduzida em questões lógicas. Ou seja, uma troca de símbolos por imagens, dos fluxos por seguimentos, trocas recortadas em sujeitos e objetos em que, finalmente, o mundo morreu ao se conjugarem todas as trocas no arremate de alma coletiva em torno de um Deus único, de um déspota ou de um Eu paranoico. Há falsas conexões, isso fica claro em São Paulo ou João de Patmos, que se apropriaram do Cristo pacificador e o transformaram em homem de Estado.(10)

 

Notas

 

1 DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 59.

2 Idem, p. 66.

3 LAWRENCE apud DELEUZE, G., Critique et Clinique,  p. 66.

4 “E aos que predestinou a estes também chamou; e os que chamou também justificou (…)”.

Segundo o conceito calvinista, Deus estabeleceu dois decretos: um selecionando o grupo de salvos; outro, o grupo dos perdidos. Calvino mesmo disse que este é o “terrível decreto de Deus”. A obra em que se encontra a doutrina da predestinação de João Calvino é As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Edição latina de 1559. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, 4v.

5 DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 68.

6 Idem, ibidem.

7 Idem, ibidem.

8 Idem, p. 69

9 Idem, pp. 68-69.

10 Deleuze faz referência a Cristo como um aristocrata. Em Nietzsche e São Paulo, D. H. Lawrence e João de Patmos, há boas referências ao Cristo pacificador. Tudo indica que o cristianismo nada tenha a ver com esse Cristo solitário de que nos fala Deleuze (Critique et clinique, pp. 5060. A alma coletiva que o poder atribui ao Cristo, segundo Deleuze, é tudo o que ele sempre evitou. É o Anticristo que violenta o Cristo (Critique et clinique, p. 55).

 

Fotografia de Clécio Branco

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

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