Claudio Magris fala a certo ponto, no seu “Danúbio”, da expressão “contraceptivo cultural” da qual sofre uma Europa do pós-guerra, sobretudo a Mittle-Europa que segue a rota do rio que corre em direcção ao Mar Negro. A expressão, apesar de ser nova, reflecte muito do que a Europa passou a nível cultural em séculos passados. As instituições de peso, igreja, estado, castravam a melhor literatura.
Começo este artigo com uma frase escrita a grafitti numa das paredes do Porto “O amor é não haver porra”; o aforismo segue o exemplo de uma música de Linda Martini: “O Amor é não haver polícia”. O amor como o oposto às necessidades e impulsos sexuais, o amor como acto extremo de abdicação dos impulsos e como simples Afecto. Miguel de Unamuno refere que o amor definido deixa de o ser, mas a procura sobre o significado dessa catarse de sentimentos é procurada em toda a literatura universal.
Contraceptivo cultural refere-se não à oposição ou censura ao que é escrito, mas à auto-castração no processo literário, imposto “sugerido” pela sociedade e aceite pelo autor. Os progressos técnicos e científicos vão sempre muito mais adiantados do que as mentalidades.
Pedro Abelardo era notoriamente um homem à frente do seu tempo. Viveu o período de florescimento das primeiras Universidades em toda a Europa. Um século Medieval onde muitos intelectuais surgiram em força num contexto da presença forte da igreja em todos os domínios. Abelardo assiste, durante a sua estadia em Paris no início do século XII, ao desenvolvimento de uma cidade diferente, não só no campo cultural e do ensino (de que a sua própria presença é testemunha), mas também no domínio eclesiástico, na topografia, no desenvolvimento demográfico e económico: o que alguns historiadores chamam a revolução cultural do século XII, que atingiu sobretudo as cidades. Por essa altura Bolonha era um dos centros mais activos intelectualmente de toda a Europa, aí estava a maior Universidade de Direito, cheia de estudantes, topografias, copistas que copiavam os livros de estudo a elevados preços. Na cidade de Paris prosperam, no tempo de Abelardo, as escolas, bibliotecas, scripotroria onde os monges copiam, com toda a avidez, textos clássicos mas também textos novos dos intelectuais da época como Abelardo, que se especializa na lógica, filosofia e teologia. Enquanto monge, Abelardo escreveu 34 sermões e 133 hinos para os ofícios religiosos. Abelardo especializou-se na dialéctica. O seu humanismo procurava, não o que divide o homem, mas aquilo que o une. Defendia a humanização do sacramento, e via a razão como um elemento principal para perceber a fé.
Pedro Abelardo nasce em 1079 perto de Nantes. No mesmo ano inicia-se a construção da catedral de Winchester e é fundada a Ordem de Hirsau, a Variante de Cluny germânica. A Europa enchia-se de catedrais e o poder papal assumia-se cada vez com mais força em todo o continente. A nomeação dos bispos é feita pelo Papa, que cada vez condensa mais poderes na sua pessoa; muitos bispos tinham funções semelhantes às de um primeiro ministro de hoje. Eram confessores dos reis, eram elementos de grande importância na sociedade política da época
Há, neste início do século XII, uma espécie de Renascimento Poético com a poesia latina de Hildeberto de Mans entre outros. Há uma imoralidade provocatória, um elogio do erotismo na nova poesia do século XII. Um avanço enorme na teologia e filosofia com Santo Anselmo, avanço esse seguido e consolidado por Abelardo em Paris, lugar de grande efervescência cultural, onde se cruzam os principais intelectuais da Idade Média. Na poesia há cada vez mais uma sátira anti-papal. Fortalece uma cultura laica, principalmente nos maiores centros urbanos, O condado portucalense mantém-se como um ponto muito periférico que está em formação, durante a vida de Abelardo. A este extremo ocidental da Europa os livros chegam mais devagar, e os de Abelardo não chegam mesmo. Cid o campeador continua a sua saga contra os mouros e conquista provisoriamente Valência; é outro jogo o que se joga na península ibérica, o da sobrevivência com a reconquista.
Jacques le Goff considera Abelardo o primeiro professor, e a primeira grande figura da modernidade intelectual do século XII. Cedo Pedro Abelardo inicia-se nos estudos, renunciando ao cargo de guerreiro, entregando as armas ao irmão, mas inicia uma nova batalha, tornando-se, tal como refere Paul Vignaux, o “cavaleiro da dialéctica”. Sempre irrequieto, com um espírito adere completamente às novas ideias que discute em Paris, criando novas, reformulando outras, em debates acesos com os principais intelectuais da época. Luís VI, o gordo, é o rei de França e procura fortalecer o poder real contra os grandes senhores feudais, os verdadeiros Senhores de França, com mais poderes que os reis. Cunhavam moedas, tinham os seus próprios exércitos (maiores do que o do rei), os próprios sistemas fiscais. É neste contexto de uma procura do crescimento do poder real em França que Abelardo vive, com a sua necessidade de demolir os ídolos. Torna-se professor. Para o ouvirem os seus alunos seguem-no até Melum ou Corbeil onde ele tem escolas. Volta a Paris onde continua a leccionar. Perturba-o o poder da teologia, ao qual tenta contrapor a lógica, mas jura ser ele próprio também um teólogo. Um público cada vez maior segue as suas lições. Dá também aulas a particulares, aulas ao domicílio e começam aqui as “liaisons dangereuses” – lições perigosas na casa de Heloísa, uma jovem que vivia com o seu tio já de idade. O tio, querendo oferecer uma formação exemplar e condizente com a sua posição social, à sobrinha, fala com Pedro para que este lhe dê lições regulares em sua casa. Pedro passa a ir regularmente a sua casa, dando as aulas a de Heloísa no seu quarto: aqui entra o amor, aparece entre os dois e une-os. Tal como é descrito nas suas “Correspondências” ambos se lembram com prazer do tempo em que faziam amor nos claustros das igrejas. O amor de Abelardo e Heloísa é como o de Dante e Beatrice, Petrarca e Laura, Sylvia Plath e Ted Hughes: arrebatador, leva tudo consigo, uma união enorme que transmite felicidade, afecto e calor.
O tio descobre as intenções de Abelardo e paga a dois homens para que estes lhe batam e o castrem. Castigo justo por ser um homem da igreja que peca através do sexo com a sua sobrinha, pensa o tio, desiludido com o professor. É assim que dois homens o agridem, o amarram e cortam os testículos e o sexo ao maior intelectual do século XII europeu. Pedro Abelardo e Heloísa têm de se afastar. Heloísa vai para um convento e Abelardo para um mosteiro, desgastado, mas com muita força e energia vital. Apesar da castração esta energia Vital não se acaba, transborda como as cheias de um rio, contraí-se no coração e Abelardo torna-se ainda mais apaixonado, mais vivo, embora com uma sombra que o guiará para o resto da vida. A correspondência entre os dois é acesa, brilhante, cheia de erotismo e de lembranças eróticas, cheia de vida e vontade de viver. Aqui volto a referir o grafitti das ruas do Porto: O amor verdadeiro, não platónico, mas identificador: Acordar com a cara do outro, ter as expressões do outro, ser todo o outro. As cartas são de uma sinceridade atroz, violenta pela simplicidade. Na sua Historia Calamitatum “História da minha calamidade”, Abelardo descreve o sofrimento causado pela separação, A correspondência une-os. De mosteiro para mosteiro, o mensageiro leva as cartas com as respostas e perguntas de um e do outro e há cartas em que, se o leitor não vir o nome do autor, não consegue distinguir se são de Abelardo ou de Heloísa. E aqui centra-se o princípio do Amor como união, a literatura só pode ser união. O afastamento físico entre os dois gerou uma da melhor correspondência que a humanidade conheceu. “Correspondance” é para mim um dos livros mais marcantes da Idade Média e afasta todo o lado negro que se possa pensar sobre este período de arrebatamento e transformação contínua. A fusão entre os dois é bem visível no espírito e estilo das cartas de cada um. As vozes de Abelardo e Heloísa ainda hoje se fazem ouvir: Talvez com Óscar Petterson ao fundo, ou com o pássaro de fogo, ou a sua sombra sinfónica a entrar em casa de Anais Nin.
Num exame cuidadoso de História Contrafactual ou de contra-história filosófica poder-se ia analisar o efeito da inibição da libido de Pedro Abelardo (efeito da castração) em toda a filosofia e pensamento crítico ocidental. Poder-se ia também analisar a correspondance de uma outra forma: O que é o Amor? O que seria do pensamento europeu com um Pedro Abelardo em Potência máxima, em todas as suas faculdades e energias vitais? Mas Pedro Abelardo prossegue a sua vida e Heloísa prossegue a sua vida, os dois com o sofrimento causado pela separação física, pelo afastamento dos corpos, pela ausência de contacto humano. A correspondência mantem-se. A Historia Calamitatum de Pedro Abelardo é destruída pelo fogo, todos os exemplares, e Pedro Abelardo é obrigado a ver o fogo destruir as suas palavras, com mais uma humilhação que isso representa, desta vez uma humilhação pública. Na sociedade do século XII a castidade era uma virtude exaltada e de certo ponto, isso ajuda Abelardo a suportar mais facilmente o castigo. Durante as lições em casa de Heloísa não era só o amor que era posto à prova, a literatura também, os livros ficavam abertos, eram declamados versos entre beijos, abraços e sexo. Depois do castigo de Abelardo, o amor tornou-se o único objecto de desejo de Heloísa. A dada altura quase que inveja a castração de Abelardo como forma de se livrar de um desejo que não pode satisfazer, fechada no convento, com a frustração dolorosa. Abelardo que em 1117 reinava no mundo escolar parisiense e se entregava aos amores secretos e perigosos com Heloísa, morre no dia 21 de Abril de 1142. Heloísa morre no dia 16 de Maio de 1156. É enterrada na mesma cripta que o amante.
Nuno Brito
Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).