Cultura

Novas histórias | Leonardo Bachiega

Para Walt Whitman

 

Vamos fazer alguma coisa hoje à noite? Topo, mas o quê? Tem samba na Rosas, se quiser. Depois a gente vê. As duas saem do Sesc, são as fábricas culturais da Pompéia, fizeram uma aula de yoga, tomaram um café, viram uma exposição de artistas indígenas, Lina ainda comprou uma bela caneca com o croquis das passarelas do edifício, namorava essa caneca há séculos e finalmente decidiu comprar, como colecionadora do objeto preciso de uma dessas, preciso ter. Todo museu que visita leva uma caneca, tem algumas lindas, “A persistência da memória”, “O Beijo”, “Noite Estrelada”… Essa vai ficar do lado do Mondrian, acho que combina. Daqui a pouco, você vai ter de sair de casa para dar mais espaços pras canecas… risos. Com certeza.

 

As canecas são como flores sorrindo vida para mim. Ou, então, nuvens de uma estação de necessária esperança. Seja como for, casa.

 

Ainda mais cheias de café.

 

Delícia, mas por falar em casa, estou indo, você vem? Vou sim. Caminham um pouco o prédio não é longe. Saudosa maloca, maloca querida… os homi tá com a razão, nois arranja outro lugar… Marcia, se desvencilha dos dedos de Lina, tamborila os dedos na palma da mão, andando pela rua a passos de sambista antigo misturando o espaço entre música e cidade, talvez inspirada por Adoniran, pergunta se Lina quer ir um dia desses naquela cantina no Bixiga. Marcia relembra depois seus tempos na noite, fora percursionista junto com um cantor nos bares paulistanos, foi nos bailes da vida num bar em troca de pão… Também já tocou por um tempo, bateria numa banda que fazia eventos, casamentos. Ah, cara, mas é uma merda, cansa, você não tem expectativa de crescimento, almejar algo mais, dizia sempre isso para os amigos anos atrás. Até que se formou em administração de empresa e hoje trabalha numa financeira, diz que foi uma mudança radical, diz também não estar feliz, apesar de tudo, talvez eu volte para a música, é o que eu amo, já andou confidenciando a Lina e amigas próximas. Eu te apoio no que você quiser para sua vida.

 

E aqueles livros que você tem muitos, teu vício é livro e caneca. É mesmo, fazer o quê? Lina abre os braços, é a vida, sou feliz assim. Elas já estão na rua do prédio, encontram Mané em uma cadeira dobrável, aquelas coloridas de praia, sentado na calçada, em frente ao seu ateliê. E aí, amigo. Oi, meninas. Vamos tomar uma cerveja. Outro dia, hoje tenho uma obrigação. Ele olha espantado, nossa, que obrigação? Depois te falo.

 

Que obrigação? Marcia também fica curiosa.

 

Você verá… e então, querido, conseguindo vender sua arte? Putz, bem pouco, na luta, mas está difícil. Vai dar certo. Se despedem com um aceno de cabeça, Mané diz, venham amanhã aqui tenho bastante cerveja, geladeira cheia, vou chamar uns amigos. Fechou.

 

Aí foi que o barraco desabou

Nessa que meu barco se perdeu

Nele está gravado

Só você e eu… 

 

Cantarolando Marcia e olhando para Lina. As músicas não saem da sua cabeça, risos de Lina. É você com canecas e livros e eu com partitura.

 

As duas cumprimentam o porteiro, aperto o doze, que é seu andar. Mas o que você precisa fazer? Lina não diz nada.

 

Entram no apartamento, Márcia se senta no sofá e liga o som, Lina pega uma água na geladeira, espreme um limão no copo, como de hábito e vai direto para a estante de livros, esse aqui, esse aqui, esse também. Foi pegando livros colocando no chão um sobre o outro, quando viu rapidamente tinham algumas pilhas, devia ter quase cem livros, o trabalho é árduo. Essa é a minha amurada, é difícil se desfazer de uma vida. Márcia ficou só olhando admirada, enquanto ouvia a música, ao final do trabalho, já passava dos centos e cinquenta livros. Você está mais de uma hora nessa brincadeira, disse Márcia. O que você vai fazer com esses livros? Vou doar para alguma biblioteca, ou vender para algum livreiro, distribuir entre amigos, ainda não sei. Que milagre, meus parabéns, meu puxão de orelha deu resultado, Marcia realmente surpresa… Nada de puxão de orelhas, isso é tudo o que eu mais quero.

 

Esse não, me devolve, diz Lina para Marcia no momento que ela se aproxima da pilha de livros e puxa um deles, o primeiro da pilha. Por que não? Esse está aí por engano. Esse é Borges, eu sei que é Borges, mas você já leu. Esse vou deixar aqui.

 

Por quê?

 

As duas estão em pé, ainda próximas à estante. Amor, primeira coisa, organizar uma biblioteca é um modo silencioso de exercer a arte da crítica, Jorge Luís Borges, e eu quero organizar minha biblioteca para exercer a arte da vida. Não entendi. Lina, pega na mão de Marcia com carinho, acaricia e dá um beijo delicado, passa a mão da moça na sua bochecha, como um afago, fechando os olhos, roçava seu rosto nas costas da mão da amada e imaginando um mundo onde não há mais frutos proibidos e o único dom é o amor e continua. Se prepare, eu estou organizando não só minha biblioteca, como minha vida e trocando velhas histórias por histórias novas, eu quero muito muito novas histórias, só queria te contar para quando você vier morar aqui.

 

Marcia a olha e, nessa hora, a ternura salta dos olhos e dá uma volta não só no apartamento, como em toda vizinhança, ela solta rápido o ar de dentro de si pela narina, com um leve sorriso, emocionada, balança a cabeça positivamente, lágrimas de amor escorrem, abraça a namorada apertadamente e lhe dá beijinhos no pescoço.

 

Fotografia de Leonardo Bachiega

Leonardo Bachiega é arquiteto, urbanista e escritor. Nascido em São Paulo, hoje reside na cidade de Carapicuíba, região metropolitana. É autor de alguns livros de poesia e um de dramaturgia. Atualmente, se dedica a um romance. Possui poemas publicados em diversas revistas literárias do Brasil e Portugal, e também possui poemas em diversas antologias. Esse conto está no livro “Figueira das lágrimas e outras imagens”, no prelo.

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