Cultura

Mortos, como nunca estivemos antes | Marco Túlio Costa

Neriovaldo uma ova. Nero, assim chamado, o sargento que tinha tantos cadáveres no currículo que o pessoal lhe creditara um epíteto: o amante da Morte. Mas, agora, era ele quem estava acuado, encostado à parede, olhando por um vão da janela de duas folhas o movimento do beco. 

 

– Mor, viu que merda a Justiça fez? Mandou libertar a bandidagem por conta desta pandemia dos infernos. Que diferença faz se esses desgraçados vão se infectar na cela, num barraco no morro ou num puteiro?

 

Apesar de seu discurso de indignação, a mulher permanecia atenta ao noticiário.

 

– Mor, soltaram o Carcabala. Você tá ligada que ele me jurou de morte? Então, como é que um juiz tem a irresponsabilidade de conceder prisão domiciliar a um psicopata que comanda o tráfico aqui no Buraco do Judas, um celerado que todo mundo sabe o quanto é perigoso? Tudo por causa de um habeas corpus que prova que ele é cardiopata e corre risco de vida se pegar o vírus na cadeia. Me diz, Mor, se não é uma insanidade preservar a pele desse pilantra e colocar uma cidade inteira em risco. Eu tenho um ódio desses advogados de bandido, viu, que vou lhe dizer, na real, ainda vou acrescentar a meu rosário uns dois ou três que dão cobertura pra esses malandros. Mor, está me escutando?

 

A morena nem se virou, continuava presa ao noticiário, a bacia de pipoca entre as pernas. Fez-lhe um aceno, como se faz a um menino pequeno para que se aquiete. Nero, por sua vez, não via as reações da amante, não tirava os olhos do vão da janela, vigiando a rua.

 

– Ele vai mandar alguém atrás de mim. Sabe onde eu moro. O Carcabala tem muitos espias. Qualquer um pode estar a serviço daquele maldito…X9 é o que não falta nessa droga de buraco.

 

– A peste é o que você tem a temer. Está por todo lado, invisível, traiçoeira – respondeu ela, mimetizando a médica, entrevistada do programa ao vivo. 

 

– Que nem o Carcabala, você acha que ele vai subir por aquela rua ali e me enfrentar de peito aberto? O chumbo quente que vier a mando dele, nem vou saber de onde partiu. Tem tantos a seu serviço que ele se torna invisível. Ele, sim, é sentença de morte.

 

A rua está esvaziada pela quarentena. Ele conta pelos nomes os que ousam botar o nariz para fora, cruzam de um lado pro outro a ruela, com máscara na cara, passos lépidos, saltitantes como quem evitasse tocar o próprio chão. E a noite vai chegando, colocando de prontidão aqui e ali as suas sombras traiçoeiras. Nero não desprega os olhos dessas sombras, tentando flagrar um lume de brasa de cigarro, uma mudança de forma. Contudo, nada se mexe.

 

– Mor, o Carcabala deve estar pensando como armar uma tocaia pra mim. Se não vier hoje, de amanhã não passa. Talvez espere uns dias, até eu me sentir seguro. Sei como aquela cabeça de homicida funciona…

 

A morena espicha-se no sofá. Os noticiários vão se enfileirando, os apresentadores se alternando, as notícias se repetindo, as estatísticas ganhando gráficos mais trágicos.  

 

– O vírus não tem estratégia. Simplesmente contamina e mata. É colocar a cara lá fora e assinar a própria sentença. Me escuta, Nero, sei das coisas: fica quieto – ela torna, com um timbre de voz estranhamente masculino.

 

Nero se incomoda com a insensibilidade de sua amante por seu drama pessoal. Jurado de morte, como uma gripezinha poderia ser pior que isso?

 

– Mor, que fixação é essa, seguindo um noticiário depois do outro, como quem faz maratona de série, pô! Que prazer é esse de ouvir estatísticas de morte?

 

– Nero, querido, nem precisa perguntar! Sou como todo mundo, sou viciada em histeria coletiva, em tragédias! Por acaso você não chega em casa todo excitado, cada vez que apaga algum desses meliantes de merda, como diz… – ela torna, voz tão mansa que ele não compreende.

 

– Desde que cheguei do quartel, você não me deu atenção. O Carcabala… – e interrompeu a fala, impondo-se um silêncio súbito, quando acreditou ter visto um movimento perto do portão da rua. Deve ser a vizinha chegando do serviço, a esposa parece ter falado, como se adivinhasse a inquietação dele, que tinha a arma na mão, essa é a que trabalha na assepsia na UPA aqui do bairro. Essa, sim, corre perigo.

 

Os ouvidos de Nero seguem aqueles passos, o ruído do portão sendo aberto, um vozerio intraduzível, ruídos de sapatos jogados ao chão, coisas largadas sobre uma mesinha de metal, que parece estar na garagem, sim, agora a porta da sala se abre, a vizinha entra em casa.

 

– Ela tira toda a roupa de trabalho antes de entrar em casa. Fica praticamente pelada. Moram quase dez naquela casinha de joão-de-barro – vai narrando uma voz em sua cabeça – Ali, se o vírus entra, vai ser uma calamidade.

 

Mas o sargento não está mais atento ao que a mulher diz, o que, na verdade, talvez nem tenha falado. Quiçá ela estivesse só pensando alto, fazendo das palavras de um especialista em Saúde Pública as suas próprias; depois, parece ter dublado um infectologista; em seguida um sociólogo falando sobre o ambiente propício que a pobreza havia construído para as doenças.

 

– Mor, estou escutando sua voz saindo pela televisão. Acho que estou endoidando. Sabe, tem o meu esconderijo, a gente pode ir para lá… – ele diz.

 

– A gente tem que ficar aqui, não colocar o nariz para fora – responde Mor, com voz de televisão.

 

– O Carcabala não demora a mandar seus homens. Eu vou sustentar fogo por quanto tempo? Eles são muitos.

 

– Você me ouviu?

 

– Ouviu o quê? – ele pergunta, afastando-se da janela – Vou subir para o terracinho, Mor. De lá tenho uma visão melhor da rua. Se alguém vier pelos telhados dos vizinhos…

 

O policial sobe a escadinha até uma areazinha de circulação com uma porta para a sacada. O quarto do casal com o banheiro fica nesse segundo piso do sobradinho. Embaixo, só a salinha de estar, onde está a mesinha em que fazem as refeições e a cozinha que não tem mais que dois metros quadrados. A área de serviço, com o tanque e o varal, fica na frente da casa. Uma moto desmanchada está no canto direito, encostada no muro sobre cavaletes improvisados. E o portão de chapa de metal, que dá para a rua, ao centro.

 

Nero confere cada uma dessas coisas, como se as visse pela primeira vez. Carcabala teria homens invisíveis, sombras capazes de invadir seu barraco, sem alarde.

 

– Mor, amanhã acabo de arrumar a moto, a gente vai para o esconderijo. 

 

Lá do térreo, vem uma surpreendente resposta, pois ele julgava que sua morena não o escutasse. E ela fala direto aos miolos do Nero, uma opinião que é um tirambaço, deixando a cabeça dele mexida: 

 

– Mas que moto, Nero? Um quadro, um motor faltando metade das peças, só a roda traseira. Que sonho! Você nunca, nunquinha, vai terminar esse serviço.

 

Ele se vê entrando na casa empurrando aquele cacareco, fazia meses, dizendo que teria uma moto para ir ao quartel.

 

– Pego com o Demerval as peças que faltam. Ele não vai me negar. O ferro velho está cheio de desmanche clandestino, que eu sei. É capaz de ele me dar de presente – interrompe o que diz em voz alta pra si mesmo – Sei não… os fornecedores do Dermeval é tudo gente do Carcabala. Ele vai me entregar pros caras. Melhor não. 

 

– Fica quieto em casa, o vírus te pega – ameaça Mor, sempre imitando o timbre dos apresentadores dos jornais.

 

– E você podia desligar essa televisão? Não suporto mais tanta notícia de pandemia. Por acaso estão preocupados com o Carcabala? Podiam revelar o paradeiro do cara, uma hora dessas já se livrou da tornozeleira, que palhaçada.

 

Nero adormeceu deitado na sacada. Acordou antes de o sol nascer. Olhou dentro do quarto e Mor dormia de bruços. Ele foi ao banheiro, saiu de lá com uma peruca black power, um boné surrado. Meteu uma máscara na cara e acordou a mulher. Ela se assustou, reclamou de ser acordada ainda quando nem o dia tinha chegado, ainda mais por aquela figura assombrosa. E ele foi embora com a mulher lhe perguntando se ele teria coragem de chegar ao quartel, vestido daquele jeito.

 

Mal sabia do que viria a seguir. Nero chegou com pacotes de uma loja de fantasias. Mais que depressa começou a encher balões de gás e formava com ele alguns cachos que ficaram flutuando no forro da casa. O plano, ele ia explicando, era saírem os dois dali, disfarçados, iriam até o esconderijo que ele conhecia, um lugar onde ele costumava tirar umas confissões de indivíduos maus que, de tão arrependidos, pediam para ir ao encontro de Jesus mais cedo. De forma que ninguém, a não ser ele, sabia desse paradeiro. Ela protestava, sempre aos risos, de tão nervosa, que não conseguiria andar pelas ruas vestida de Mulher Maravilha, segurando um cacho de balões coloridos. E acompanhada de quem? Isso aí é o Homem Aranha? Ele gritava, mas é claro, já vem com a máscara, ninguém vai me reconhecer.

 

Ninguém os reconheceu, evidentemente, saíram quando todos dormiam de forma que chegaram à cidade como dois animadores de festa indo ao trabalho. No ônibus, foi uma luta convencer balões a se comportar no exíguo espaço acima de seus lugares nos bancos, um ou outro estourou resultando em gritos de susto e risadas debochadas. O sargento Homem Aranha tinha vontade de encher a cara desses engraçadinhos, mas alguém ali poderia ser exatamente um olheiro do Carcabala. E a Mulher Maravilha apavorada com a quantidade de gente, uns com máscara, outros de cara limpa, ela tirou de seu cinto um frasquinho de álcool em gel e se pôs a combater o grande mal que afligia a humanidade, a peste invisível, começando pelas mãos, depois os apoios de metal do banco onde estavam. De nada adiantaram os apelos do marido para que agisse com naturalidade, ninguém estava nem aí para vírus, para a fantasia deles, era bem possível que mais temessem uma bala perdida vinda de algum lugar; temiam o relógio e os descontos no salário; temiam assalto. E justamente como temiam, levantam-se os caras, simultâneos, ao fundo e à frente do coletivo, e anunciam assalto, saem tomando tudo, carteira com quase nada, tudo que luzia e provavelmente nem era ouro, celulares ultrapassados que ainda estavam sendo pagos em setenta e duas prestações.

 

– Aí, Mulher Maravilha! Passa o que tiver.

 

Ela nem tinha voz. 

 

– Homem Aranha! – ordenou o cara, rindo.

 

Mas o besta se virou pro parceiro, o que estava justamente com a arma distraída, porque mais se preocupava em colocar as coisas numa sacola. Ele nem viu quando o Homem Aranha soltou aquele monte de balões, e nessa distração sacou a pistola e estourou o balão que estava no rumo da cara dele. Foi um pei-pei-pei-pei. O outro nem reagiu. O ônibus encostou, os passageiros todos encolhidos, amontoados pelo corredor, e os dois super-heróis saíram aos tropeços, abandonaram os balões e saltaram muito antes do ponto que queriam. Desapareceram tão rapidamente que alguns acharam que tinham voado acima dos telhados, como nas histórias em quadrinhos.

 

*

Encontravam-se no esconderijo, fora da cidade, um sítio amoitado entre bananeiras e capim colonião. Mas sua ideia de passar despercebido tinha ido por água abaixo. E ela, o caminho todo, dizendo imprecações que não ficavam bem a uma heroína, mas pros diabos, como andar numa estrada de terra, aqui pedras roliças, ali vinte centímetros de poeira, usando aquelas botas ridículas. E me explica por que a Mulher Maravilha tinha que trabalhar com um maiô, como quem vai participar de um concurso de miss? E você, seu aloprado, tinha que duelar com os caras? Viu se acertou algum inocente?

 

– Inocente? Não tem ninguém inocente no mundo. Qualquer um daqueles poderia ser gente do Carcabala.

 

E ela urrou de ódio dele o resto da tarde. E quanto mais ficava raivosa, mais passava álcool em gel nas mãos e nas coisas que tocava.

 

-Não trouxemos roupas para dormir – ela disse, lá por volta da meia noite, e foi dormir trajando a fantasia, só arrancou fora as malditas botas.

 

Ele se convenceu de que ninguém, apesar de toda a esquisitice, havia seguido os dois, desde que deixaram para trás as últimas casas da cidade, ao pegar a estrada rural.

 

– Não liga, ia dizendo, aqui eles estão acostumados. O normal aqui é ser doido. Esse povo passa fome, come o que encontra no lixo, veste o que encontra no lixo. Nós estamos um lixo,  muito bem adequados.

 

Adormeceu. Acordou com a Mulher Maravilha pedindo que ele levantasse o braço, ela lhe enfiou no sovaco o termômetro, um dos itens de seu cinto de combate ao vírus. Aturdida, cinco minutos depois comunicou a Nero que ele estava com quase trinta e nove de febre. O suor do sargento tinha empapado a fantasia.

 

– Deve ser a agitação de ontem – ela disse, sem muita fé, passando álcool em gel no termômetro – Vou buscar o remédio, toma quarenta gotas.

 

Na cozinha, ela começou a chorar, seus soluços chegavam até ele, mas não era aquilo que ela prenunciava que o amedrontava. Ventava muito e os ruídos o confundiam. Tomou o remédio que a mulher trouxe numa xícara de café sem asa. Se enfiou debaixo do chuveiro frio, enxugou-se com uma toalha que cheirava a mofo. Tentou ficar de guarda perto da janela, enquanto ela preparava o café. Contudo, os ruídos que Mor fazia foram se distanciando. Ele adormeceu num sonho de verão escaldante, em que explicava minuciosamente a ela as coisas que comentavam no quartel. Mor, ontem uma mulher parecida com você chegou a uma fila para entrar na farmácia. Mas começou a tossir. A fila se desmanchou, formaram um círculo de medo, distante dela. Não há o que fazer. O dono da farmácia gritava para todos irem embora, ligou para a Vigilância Sanitária, cerrou as portas da farmácia. As pessoas correram como ratos. A mulher teve convulsões, morreu ali mesmo, afogada no seco. Foi repentino e brutal. Então, chegou o rabecão, os homens paramentados como astronautas, colocaram o corpo num saco, foram embora. Em seguida chegaram os homens da desinfecção, também vestidos de astronautas, os virunautas. Só que dirigiam um caminhão-pipa, jorraram hipoclorito nas casas, nos passeios, na rua, foram embora só deixando o silêncio. Entendeu? Não existe tempo de chorar os mortos, nem identificar. Mor, estão dizendo que encontraram o corpo do Carcabala. Eu só acredito vendo, mas é o que afirmam. Mas não estava num barracão lá do Buraco do Judas, estava na cela. Colocaram uns vinte para morrer. Quem liga como morreram? Estavam com buracos de bala, mas ninguém faz autopsia. Tiraram todos em sacos. Enterraram todos em covas rasas. Você vê televisão o dia todo, um desses enterros, dizem, foi do Carcabala, cheio de vírus de calibre 45. Mas eu só acredito se enfiar o dedo no buraco de bala, que não sou besta.

 

Acordou brevemente para vomitar do lado da cama. Mor não estava no quarto. Lá de fora da casa, usava uma enxada tosca para abrir uma cova rasa. Não lhe dirigiu mais a palavra, mas falava para si mesmo como ele fora teimoso, que não escutara seus avisos. Ele variou o dia todo, contando como enterravam por ali os homens maus que horrorizavam a cidade. E lá de fora, cavando, ela o admoestava, Nero, que bobagem, não tem justiça na existência, veja como os inocentes estão sendo entregues à terra da mesma forma que você enterrava seus crimes. E ele, bêbado de febre, gorgolejava, sufocando-se com saliva e maldições, o pulmão naufragando em líquido. Até que parou. 

 

Então, já amanhecia o outro dia, quando Mor entrou na casa, e olhou o corpo retorcido sobre o colchão encardido. Puxou-o pelos pés, sentindo-o leve, como se fosse a vida que pesasse, agora livre estava. E estava distraída nisso, puxando a terra sobre o corpo, quando percebeu a coisa de cinco metros, meio corpo atrás de uma mangueira, o homem que a observava.

 

– O que está fazendo, mulher?

 

Ela não interrompeu sua faina. Cuidou de socar a terra com os pés e batendo a enxada. Enfim, apoiou-se no cabo e encarou o estranho.

 

– Enterrando meu marido. A peste levou ele…

 

– E quem era ele? – perguntou o sujeito, de olho em tudo o que a Mulher Maravilha exibia, um tanto suja, é verdade, mas talvez por isso mesmo sensual.

 

– Está morto. Já era. E você?

 

– O que tem eu, mulher?

 

– O que faz por aqui? – ela pergunta, uma postura altiva, desafiadora, ainda arfando pelo esforço.

 

– Sou um sobrevivente. Estou muito vivo, ao contrário desse aí – responde.

 

Ela caminha na direção dele.

 

– Tem um cigarro?

 

O sujeito se mostra por inteiro. A arma está enfiada no cós da calça, à mostra. Porém, ela não parece se abalar com aquilo. Vem decidida em sua direção. Pega o cigarro que ele lhe estende, depois se curva para apanhar o fogo do isqueiro de prata que ele acendeu demonstrando afeição por aquele objeto.

 

– Ouviu as notícias? – ele pergunta, em meio à fumaça que ela aspira provocativa no rumo da cara dele – Os jornais falam de dois super-heróis que aprontaram um tiroteio dentro de um ônibus lotado – conta, parecendo se divertir.

 

Ela tira o diadema que ainda trazia na cabeça. Joga-o no chão. Sacode a cabeleira.

 

– A polícia está parecendo um vespeiro. O tal Sargento Nero anda fazendo um pente fino por aí, sabe como? Achei melhor não cair nas mãos dele – continua o sujeito.

 

– Sargento Nero, é?

 

– Já ouviu falar? – o sujeito pergunta.

 

– Não… mas ele parece te dar medo – ela responde, evasiva.

 

– Sabe como é… fiquei cabreiro. Um assalto perto da minha comunidade. Devia ser gente que eu conhecia. Não gosto que façam isso na minha área, isso atrai a polícia. E foi no que deu. É ruim pros negócios. 

 

– E que negócios são esses? – ela pergunta acabando o cigarro, pisando o bira no chão.

 

– No momento, nada. Estou parado, como se vê. Mas tirei um tempinho para pensar. Seguir a pista de duas pessoas vestidas de super-heróis, não é tão difícil. Não entendi a razão da polícia não ter chegado até aqui, antes de mim. O que você e seu marido aprontaram? 

 

– Ele morreu da peste. Mas pode ser que tenha levado um tiro naquela confusão, sabe como é. Pei-pei-pei! Nós só corremos para salvar nosso couro.

 

– E a polícia vai acreditar nisso, quando chegar aqui?

 

– A polícia não vem aqui. E quem não deve, não teme… – brincou ela, dando-lhe as costas, requebrando em direção à casa. 

 

Ele a seguiu.

 

– Tem café?

 

– Não tive tempo de passar, mas se você esperar um pouco…

 

– Preciso ficar aqui um tempinho, sim, ele diz, entrando na pequena sala de estar, onde só tinha uma mesa pequena e duas cadeiras bambas.

 

Ela acende o fogareiro, enche a vasilha e põe a água para ferver. Passa pela sala e sente que ele não tira os olhos dela.

 

– Vou dizer uma coisa, morena, você é muito atraente… o cara perdeu um mulherão.

 

Ela está emoldurada pela porta do quarto. 

 

– Eu vou tomar uma ducha fria, enquanto a água do café esquenta. Por que você não tira esta camisa?

 

– Como assim?

 

– Eu não trouxe outra roupa. Sua camisa pode me servir.

 

Ela entra no quarto onde se despe, a porta aberta, uma desenvoltura proposital que deixa o cara desnorteado, perdido em conjecturas, talvez essa viúva negra tenha executado o próprio marido, que mulher é essa que enterra o marido e dez minutos depois faz jogo de sedução com um estranho? Hem? E o pior é que a diaba… Da sala, onde ele também se despe, pergunta a ela, como você se chama, mulher maravilhosa. Ela vem, nua, os dois braços um pouco atrás. Ele jamais olharia para suas mãos escondidas, pois existem dois seios que o distraem.

 

– Mor.

 

– Mor? – ele pergunta, enfiando os olhos por entre duas coxas morenas.

 

– Sim – ela diz, olhando com um fio de ternura o tal Carcabala,  bem mais novo do que ela o tinha imaginado. 

 

– Mor… de amor – ele deduz, sorrindo, puxando também o cinto, a calça jeans surrada caindo a seus pés, enquanto o único ruído que chega ao ambiente é da água já borbulhando no fogareiro. Ou Mor de Morena?

 

– Mor… de morte, na verdade. 

 

– Como alguém tão linda pode ter um nome tão terrível – ele considera, preso entre as pernas dela, ainda.

 

– Dizem que sou fatal – responde Mor, esgueirando-se até o banheiro, onde se mete debaixo do jato de água fria, tão fria quanto suas ponderações. Se vê com aquele rapaz, dominando-o, como fez com Nero. Carcabala comandaria uma falange de facínoras, ordenaria ataques a bancos, cada vez mais ousado porque assim se tornam os homens apaixonados. Mor é capaz de sentir o cheiro dos dois se amando, tendo aos pés uma cidade aterrorizada, milhares de luzes acesas, como as velas da superstição, tentando mantê-los à distância, livres do mal. Carcabala, o novo amante da Morte. Sorri de contentamento.

 

Tem outra vertente de pensamento: talvez ele a domine na cama e a ameace, perguntando sobre o que ela teria enterrado naquela cova. Já lhe disse, é meu marido. O Chapolim? Para mim você enterrou o que roubaram. Quando? Naquele ônibus. Besteira, aqueles assaltantes drogados de merda recolheram celulares e carteiras, quinquilharias, pra comprar suas drogas. Quem disse que mexo com drogas. Ah, vá, Carcabala, vai dizer que é um santo? Como sabe quem eu sou? Já vi sua foto. E não tenho medo de você. Mas ele não acreditaria, tentaria arrastá-la pelos cabelos até a cova e a obrigaria a desenterrar o tesouro escondido. Porém, surpresa, quando chegam lá fora, a cova está aberta. E antes que o facínora se recupere, como assim, a cova está vazia! Nero surge bem atrás dele. E diferente dos filmes, que o mocinho fica batendo o maior papo furado com o bandido, dando explicações, falando de astrologia e culinária, ele já foi logo descarregando sua arma. Bom, Mor desistiu desta versão bem na hora dos tiros, afinal, ela estava com a arma bem ali, no banheiro.

 

Nesse ponto, ela ouve o Carcabala correndo até a cozinha para socorrer a água fervente, passa o café e procura estabanado por uma xícara. Prova o café quente e puro, depois torna a encher a xícara, aquela sem a asa. O cheiro, de fato, domina o casebre. A água limpa de seu corpo toda a terra, vai deixando um rastro avermelhado até o ralo. Compara aquilo ao que poderia vir. Ela, na sala, vestindo a camisa do jovem sobre o corpo molhado. E ele chega, uma das mãos com o bule de ágata descascado, a xícara fumegante na outra. E vem na direção dela. Mor, café fresquinho. Ah, como ela se delicia com suas possibilidades. Teria tempo de intrigá-lo, não tema o Sargento Nero. Por que diz isso, Mor, morena? Mor pode ser de morena, não pode. Pode. Mas por que você está dizendo para eu não me preocupar? O café anunciando-se em sua língua, escorrendo para a garganta. Que gostoso. Por quê? Ora, você tão jovem, o que pode ter feito de tão terrível? O cara já me mandou pro xadrez uma vez, disseram a ele que eu o jurei de morte. E não? Ah, que pena Carcabala, esse olhar indeciso e cheio de medo.

 

Daí, ela desliga o chuveiro, torce um pouco os cabelos e já o enxerga caindo com o impacto da bala, mal tendo tempo de compreender que brilho é aquele diante de sua cara, a arma de Nero que tanto o procurara e que a Morte, com voluptuosos truques ilusionistas, o alcançava. Ela imagina a cena de como arrastaria seu jovem corpo pelos pés, deixando um rastro vermelho pelo chão de tijolos, como cavaria mais um buraco ao lado da outra sepultura, e diria ao finado Nero, com confidências e fidelidade de uma recém-viúva, homem, bem lhe preveni que o vírus era mais traiçoeiro, mas você temia este traste. Vamos, pode enfiar o dedo no buraco que esse desgraçado tem na testa, sentiu? Agora acredita que ele esteja morto, como jamais esteve antes? Então, Nero, descanse em paz.

 

– Trouxe seu café quentinho – anuncia-lhe Carcabala, tirando-a do transe. 

 

Ela vira todo o café em dois goles, quase sôfrega, saboreia o intenso amargor daquele instante. E Mor atira contra ele um sorriso certeiro. 

 

Fotografia de Marco Túlio Costa

 

Marco Túlio Costa nasceu em Formiga (MG), em 1955 e reside em Passos (MG). Possui 23 obras publicadas. É do grupo da revista literária Protótipo, que circulou de 1972 a 1975 e teve contos publicados em suplementos literários e revistas alternativas. Além de contos e romances, tem uma respeitada produção infanto-juvenil, como O mágico desinventor, que tem 24 edições no Brasil e 11 edições no México. A Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) destacou alguns de seus livros com o selo de ‘altamente recomendável’ e ‘acervo básico de literatura infantojuvenil’. Também integrou o programa “Viagem da Leitura”, do extinto Instituto Nacional do Livro – INL/Ripasa/Fundação Roberto Marinho, em 1986. Entre os prêmios literários, o “Alfredo Machado Quintela”, da FNLIJ, em 1985; Prêmio Brasília de Literatura, de 1991;  Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional, em 2012, e o Prêmio Jabuti, categoria infantil e juvenil, em 2004,em que foi finalista outras quatro vezes.



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