Hélio Augusto: a poesia feita em silêncio | Nilo da Silva Lima
Nilo da Silva Lima
Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG
a poesia
é apenas
um traço
uma frágil
linha
por entre
os destroços
(Hélio Augusto, Poemas, 2019, p. 139).
Desde 2001, tenho-me dedicado às pesquisas sobre escritores e poetas de São João del-Rei, no sentido de colocar em andamento um processo de resgate, estudo e divulgação de inúmeros intelectuais são-joanenses, dentre os quais muitos, provavelmente se possa dizer, a maioria, permanecem à margem dos estudos da literatura. Fora do alcance das múltiplas vertentes dos estudos literários que têm proporcionado à historiografia literária se reescrever por elas, e à cultura, em geral, enriquecer-se com esse resgate.
O objetivo é menos por uma mera preferência pela valorização da história e da cultura local do que pelo entendimento de que o resgate dessas fontes primárias implica na preservação física dos arquivos, bem como numa ação, em conjunto, pela construção de um acesso democrático a eles, uma vez que, públicos ou particulares, pertencem ao patrimônio cultural.
Trata-se, pois, de um patrimônio que vem enfrentando e vencendo a “efemeridade que caracteriza as folhas literárias” (VIEGAS, 1974, p. 77). Todavia, não será eterno. O fundamento maior de todo processo de resgate é, pois, a responsabilidade histórica e social do presente para com essa memória, num diálogo contínuo, que há de se valer dos avanços da tecnologia moderna aplicados ao cuidado peculiar com os elementos desses arquivos, para que tenham a ampliação de sua conservação, também, para o futuro, com vontade e desenvolvimento de políticas públicas de investimento, patrimônio que são da cultura, tanto local quanto da cultura brasileira. Senão, por que e para que preservá-los? Qual o motivo do deslocamento desse olhar da crítica e do leitor contemporâneo para os bastidores, para as margens dos grandes centros literários e culturais? Por que a insistência, por vezes, a obsessão, o “mal” (DERRIDA, 2001, p. 118), o “furor de arquivo” (ROLNIK, 2019, p. 97) por esse processo de resgate dos acervos literários num momento em que o conhecimento, os estudos culturais acenam para a pluralidade, a multiplicidade, o trânsito dos saberes, fazendo emergir todo esse patrimônio cultural vindo dessas vertentes?
Esse artigo tem por objetivo propor respostas a essas questões, como resultado inicial do processo de resgate da poesia de Hélio Augusto (1953-). Poesia feita em silêncio, e de silêncios. Poesia que acrescenta novos olhares às poéticas contemporâneas, marcando a pluralidade de vozes pela singularidade de sua voz que emerge do âmago dessa terra envolta pela voz, pela “fala” dos sinos, pelas tradições da cultura de Minas Gerais, pelo jeito peculiar de Minas Gerais fazer, ler e preservar o passado, não como um monte de arquivos de velharias, mas como elemento histórico, cultural e artístico em permanente diálogo com o presente.
Hélio Augusto Silva Gonçalves (Hélio Augusto) nasceu, em São João del-Rei, MG, em 1953. É professor, filósofo, segundo Terezinha M.G. Boechat que escreve a orelha do livro Poemas (2019) “apaixonado pelas Letras, fez da Poesia sua inseparável companheira, sendo autor de maravilhoso acervo”.
Publicou: Pedras e palavras (1979), jornal/livreto mimeografado, produzido junto com seu irmão, o escritor e jornalista José Eduardo Gonçalves que ilumina essas pesquisas com a revelação de uma produção literária feita, nos anos 70, por ele e Hélio Augusto, aquietada ao seu arquivo pessoal que vem à tona com esse manifesto interesse pela poesia de Hélio Augusto. E Poemas (2019), uma coletânea de poemas, provavelmente, escritos entre 1974 a 1986, cronologia concebida, a partir da própria datação dos poemas. Organização com prefácio da Professora de Literatura, Melissa M.G. Boechat, sobrinha do poeta que se nomeia “leitora e admiradora confessa”, da poesia de Hélio Augusto. Este “Prefácio” ao livro Poemas, até, então, era o único escrito crítico sobre a poesia de Hélio Augusto. Aliás, bem ao estilo de quase absoluta discrição do poeta. Assim, nessa apresentação/revelação do poeta Hélio Augusto, Melissa Boechat destaca três elementos fundamentais ao pensar poeticamente o pensamento poético de Hélio Augusto.
A “desobediência a um poeta que nunca quis publicar livros e tampouco dar autógrafos” (2019, p. 4). Ou seja, precisamos, em nome da Poesia por quem Hélio Augusto se apaixona e a quem dedica sua vida, desobedecer ao poeta. De certa forma, todo poeta tem consciência do ato dessa desobediência em algum momento por parte de algum leitor.
O amor como tom maior do livro Poemas. Amor, com que Hélio Augusto distingue a vida e a poesia, inseparáveis, assim como Harold Bloom (2016) concebe a literatura, um modo de vida em que se mostra enganosa toda tentativa de separação entre literatura e vida” (BLOOM, 2016, p. 23). Amor que se mostra e se realiza na paixão do poeta pelo silêncio, pela cidade, pelo tempo, pela história e pela cultura, que marcam, de maneira indelével, vida e poesia; cotidiano e palavra. A certeza, a dedicação ao esforço diário e silencioso, discreto, porém, imprescindível à reinvenção, à reescrita da vida e da própria poesia. A vida pela poesia.
O despojamento do poeta, não só das luzes sobre si, ou até mesmo de sua poesia, numa certeza, numa concepção filosófico-literária de que se a poesia, como ressalta Melissa Boechat, “pode ser quase tudo e pode ser quase nada” (2019, p. 5), ao poeta não resta nem mesmo a poesia que escreve. Talvez “apenas/uma outra folha/em branco” (GONÇALVES, 2019, p. 12).
Hélio Augusto é mais um poeta são-joanense que, celebrado por Melissa Boechat, como “poeta maior”, São João del-Rei ainda desconhece. Por esse motivo, possivelmente, nem se possa falar em esquecimento. Se por um lado, é certo que nenhuma cidade dê conta de todos os seus escritores e poetas, muitos que escrevem continuadamente sem as luzes dos olhos do leitor e da crítica, por outro lado, por que o esquecimento, o desconhecimento de escritores, poetas e artistas essenciais à cultura local? Por que a cultura local permanece, insiste na contramão de um mínimo de investimento para que, mais do que preservados empoeirados nos arquivos, sejam resgatados, trazidos à luz dos estudos, das pesquisas, no sentido de que tenham de fato, ouvida sua voz, sua temporalidade que são a razão de atravessarem o tempo e o próprio abandono?
A produção poética, a arte, a literatura e a escrita devem brilhar, aparecer na contramão do artista, dos escritores e dos poetas. É nesse sentido a morte do autor? (FOUCAULT, 1992, p. 56-57). Pela capacidade do poeta e de sua poesia de colar na cena do dia e da linguagem “os rostos do mundo” e não a poesia?
A poesia se faz, é voz, escuta e silêncio do que se ausenta da página, por que não pôde ser escrita ou porque a escrita se esvaiu no tempo. Ausente do caderno, do dia e da linguagem por incorporar o homem, o mundo, a vida. O que se vê, o que se imagina ver, o que se inventa ver. Ver, ouvir, escutar, ler. De certo modo, todos nós estamos nessa poesia que encena a retomada dos contornos, dos gestos, dos cheiros, das alegrias e tristezas, das cicatrizes e escritas que a vida impõe como rosto da poesia, como marca de sangue, ossos, lágrimas, sentimentos, corpo e alma da linguagem.
Há outro acento, por vezes, nem sempre visível à flor da escrita, até porque as poéticas contemporâneas se assemelhando, de modo específico, ao poema “Outono” (GONÇALVES, 2019. p. 150): a vida / é só / aquela folha / que cai (1986) não se fazem percebidas logo num primeiro olhar. Permeiam, encerram e incorporam toda dor que silencia, mas que expõe o fio nítido de sua escrita no corpo da vida, das cidades e da própria linguagem poética que toma a palavra por corpo – as cicatrizes dos anos de “ferida aberta/por onde/sangra/meu coração” (GONÇALVES, 2019, p. 47), ganhando eco maior no poema “Manifesto”:
Marcada a ferro e sangue
Que tributos ainda exigirá a nossa esperança?
Nossos passos
Nessas praças desertas
Trazem susto e sobressalto
De quem são essas vozes
Que conspiram
Nessa noite estranha
E nessas casas fechadas? (GONÇALVES, 2019. p. 49-51).
Os poemas deste livro correspondem aos anos de travessia pela ditadura militar até à redemocratização do país, que continua ameaçada, e ao tempo de formação humana, artística e intelectual do poeta. Trazem a voz, as vozes, o silêncio e os silêncios, e a palavra (Poesia) que são ecos, clamores e, por fim, o regozijo, de novo, pela esperança de um tempo, de um país, de homens movidos pela esperança, embora com os pés, com o corpo e a alma ainda imersos em feridas. Os desejos, no entanto, voam fora deste cenário, na construção de um novo tempo, vindo pelas penumbras, pelas frestas deste silêncio, deste calar-se. Trazem a solidão, a esperança e a desesperança do próprio poeta, recluso na cidade que ama, porém, não recluso do mundo, da história. Absolutamente à vontade na poesia, sua “inseparável companheira”. Aliás, tem-se notícias de que o poeta continua escrevendo. Não importa se não lança livros, se não se deixa seduzir pelo fascínio do mercado, do reconhecimento. Escreve. Escrever é o que importa a todo escritor, a todo poeta. E semeia esses poemas à cena do cotidiano. Por vezes, uma poesia despojada de si, quase despercebida com mera postagem em restrita rede social, como revela José Eduardo Gonçalves. À semelhança de gotas de chuva que molham a folhagem, fertilizam o chão e a linguagem sem encharcar e sem promover grandes inundações.
A fala poética de Hélio Augusto é permeada de doçura. De uma doçura que não se envergonha e não trai, na formação de seu corpo, as mágoas, a veemência, a força, por vezes, do que denuncia. Ternura que se constitui na pulsão criadora da linguagem com que o poeta enfrenta a crueza de um tempo doloroso, em que a linguagem, mais do que vislumbrar, constrói esperanças.
Possivelmente, a primeira publicação de “Manifesto” aconteça nas páginas 12 e 13, de Pedras e palavras (1979), o que se evidencia para a pesquisa, bem como ao estilo das estéticas modernistas, após o envio de mostras de alguns jornais/livretos que Hélio Augusto e José Eduardo produzem em São João del-Rei nos anos 70.
A sensação que se tem, já à primeira leitura, e que se repete, acentua-se e se fundamenta a cada releitura é que Poemas se constitui num conjunto, embora no plural, na verdade, singular. Como se lêssemos um único poema que permanece íntegro em cada poema, em cada fragmento poético, sem dispersão. Todavia diferente do “poemão” dos anos 70. Em que o amor, a paixão pela vida, pela palavra, pela história, pelo silêncio se faz verbo e carne, papel e sonho, fantasia e dor, folha em branco. Afronta da escrita, necessidade, urgência. Silêncios de escritura, destroços. Urdiduras da escrita no tempo e pelo tempo. Ofertório, despojamento, solidão, dor. Cicatrizes pela palavra, pela poesia, pela esperança, que Hélio Augusto se permite num eco audível de Fernando Pessoa: quero ainda o risco/ do poema/ além do risco da vida (2019, p. 48).
Não se reduz uma poética ao que se quer ou ao que se imagina dela ou que se deseja que ela seja – “a poesia é irredutível” – acentua Mario Quintana (2006, p. 511). Sem ficar ileso ao risco inútil da tentativa, cinco substantivos-imagens incomodam na leitura de Poemas: vida, silêncio, palavra-poesia (linguagem), fragmentos-restos-cicatrizes e tempo.
Vida como espaço da solidão, da dor, da esperança e dos sonhos. Do fazer da linguagem, da cultura e da história. O silêncio, como exercício da vida, da palavra-poesia, gestor, ou até melhor, gestador de sonhos e poesia, sempre lida, escrita, celebrada, quase, como um gesto essencialmente arraigado a si. Palavra-poesia, como uma espécie de corporificação, de corporeidade lida e inventada para a vida. Linguagem, essência da poesia. Fragmentos, restos e cicatrizes, a reescrita poética do tempo que Drummond (1967) chama de “tempo partido, tempo de homens partidos” que constitui certo território de pertencimento de alguns poemas, até mesmo pela cicatriz da cronologia que cada poema data – a citação do tempo é uma cicatriz do tempo, cicatriz temporal, não mera metáfora ou evocação perdida em ecos inaudíveis. O tempo, como espaço em que vida e poesia se encenam, sem a possiblidade de encerramento, sem o risco de se bastarem a si mesmas, de se reduzirem a si mesmas.
A esse cenário ou nesse cenário associa-se a mirada dos olhos do poeta que olha pela janela, por onde resta a entrada e a visão de luz na cidade, no mundo, e faz com que a palavra, a poesia, de onde se vê o mundo e sente o frio de invernos reiterados, apesar do ciclo das estações, da dor, do silêncio. Mas também a esperança dos dias de setembro, tomados pela floração dos ipês, escrita legível pelas ruas de São João del-Rei e se estende ao mundo pelos olhos do poeta. A poesia não é nada mais do que uma folha que cai das mãos, dos olhos, do coração, da sensibilidade humana e poética que apenas tem a palavra, a linguagem, que nem a ele pertencem.
Há uma voz em meio a tanto silêncio que tece uma urdidura quase invisível, como se lêssemos a costura que a Penélope, faz e se desfaz, alinhava-se e se dispersa na própria meada do tecido ofertado integralmente à palavra. Assim, silêncio e paixão, solidão e sol, restos, riscos e cicatrizes, dor e tristeza, destroços e desastres, temporalidade (mortalidade), esperança e desesperanças, céus azuis, fuzis e nuvens escuras, sombras, fantasmas, lembranças e memória, flores, amores, luz, noite e ruas sem estrelas, tudo forma e fia um texto múltiplo envolvendo a vida, a escrita da vida (a arte, a Poesia) no corpo da linguagem, absolutamente diferente. Portanto, distinta de uma mera tatuagem que o poeta impinge nela. Ou com que o poeta impinge o corpo da história. Antes, nasce do próprio corpo da linguagem e se constitui nesse corpo linguístico, artístico e poético.
Outro fio é do ser e estar no mundo: vida/ circo encantado/ somos todos trapezistas/ sem rede de proteção (GONÇALVES, 2019, p. 72), um labirinto/ sem nenhum fio de Ariadne (GONÇALVES, 2019, p. 97). Ou seja, viver exige escolha e responsabilidade diárias. Mas não tenha medo/ dessa noite fria/ desse sopro de gelo (GONÇALVES, 2019, p. 74), afinal, o canto de nossos pássaros cantará agora uma canção de esperança/ lembrança por lembrança/ construiremos um novo tempo (GONÇALVES, 2019, p. 78), aqui nessas ruas/ ainda há/ alguma luz/ e algum olhar (GONÇALVES, 2019, p. 81), as flores/ continuam nascendo/ como se nada/ houvesse mudado (GONÇALVES, 2019, p. 88).
Se o poeta diz: minha poesia/ não me pertence/ cada palavra/ que coloco/ no papel/ nunca mais será minha (GONÇALVES, 2019, p. 12), não resta outra alternativa senão desobedecê-lo por ela que nem lhe pertence mais. Portanto, não há razão de o poeta subjugá-la à solidão e ao silenciamento histórico e artístico que envolve, e essa, possivelmente, nem seja a sua intenção. Ainda que, num primeiro momento, possa se tratar de um desejo pessoal. O fazer poético e as poéticas contemporâneas contemplam como ressalta Harold Bloom o “pensar poeticamente o pensamento poético” (BLOOM, 2013, p. 23). Não, exclusivamente, enquanto crítica literária isolada e, por vezes, distinta da produção literária, mas enquanto permite e se impõe ao crítico no âmbito, ou melhor, como parte inseparável do exercício poético, do fazer, da produção literária.
Poemas (2019) permite ao leitor a convivência com essa vertente imprescindível da poesia de Hélio Augusto que toma a criação, também, enquanto pensamento poético, fruto de seu exercício poético da linguagem.
O primeiro poema, de acordo com a cronologia grafada, que tanto pode ser real quanto ficcional, data dos anos 70, mais precisamente, 1974, quando o poeta tinha 21, correspondendo ao período de formação humana, intelectual e artística em que os jovens buscam, constroem sua afirmação no mundo, no sentido de ouvir as vozes do mundo e de impor a ele o tom, a personalidade de sua voz. Sobretudo, nesse período em que os jovens precisam falar ao mundo, fazer o mundo ouvir sua voz, seus sonhos, seus desejos, suas angústias, dores, alegrias e esperanças. Ser, de fato, no mundo.
A publicação de Poemas acontece, em 2019, com o poeta aos 66 anos, na sua maturidade humana, intelectual e artística, concluída a travessia histórica pelos anos 70. Biograficamente, textos de professor, filósofo, apaixonado pelas Letras, em especial, pela poesia. Ou seja, em Poemas, tem-se o encontro, o diálogo entre a voz, as vozes e o silêncio do poeta com seu tempo, com a linguagem poética de seu tempo. Um poeta, cuja linguagem demonstra absoluta consciência de sua criação poética. Confirma-se, pois, a coerência lida por José Eduardo Gonçalves, uma vez que os poemas publicados pelo poeta adulto correspondem aos poemas constantes dos jornais/livretos dos anos 70, publicados pelo jovem poeta, pode-se dizer sem alteração. Dissemina-se, ao longo de seus poemas curtos, mínimos, por vezes, o pensamento poético imprescindível à abordagem de sua poesia como ressaltamos, aqui:
1) A poesia não pertence ao poeta que a cria (p. 12);
2) A poesia não sacia sede, não mata fome – ela é sede e fome (p.13);
3) Escolho as palavras antes da escrever (p.16);
4) Poesia – onde o poeta supõe, propõe – exercício da vida (p.21);
5) Poesia é silêncio (p.23);
6) Poesia é frágil/forte – tudo/nada (p.29) ambiguidade/contradição – destroço (p.139) – desacerto do poeta (p. 155); cicatriz (p. 177);
7) Farei poesia do espanto (p.58);
8) A poesia sequer é luz ou brilho; nem flor, nem sombra (p.91);
9) A poesia é folha avulsa, pregada no muro, abandono, está em quase tudo, pode ser quase tudo; bosta/merda/puta que pariu/fé/flor/palavra (p.114);
10) Entre o poema e a poesia – o barulho da máquina de escrever e a vida (p. 115);
11) Poesia no vermelho – sangue, dor da vida, pulsação da carne, desejo, amargor (p.117/119);
12)Poesia os restos de matéria/ assombrações em noites são-joanenses, fantasmas descendo pelas ruas às margens do Lenheiro que escreve – cria a cidade (p. 118-128);
13) A poesia é só um intervalo (p. 134) – brevidade, inutilidade (temporal/existencial/linguística);
14) A poesia se faz, cria-se entre pedras e palavras (p. 146);
15) A poesia é janela pela qual o poeta vê todas as noites do mundo (p. 171);
16) A poesia é isso/alguma coisa/que a gente escreve/ e que alguém/depois lê/ e sonha (p. 11)
Melissa Boechat escreve, em seu blog, “a sombra da faia”, no texto que ela nomina de “Breve ensaio não acadêmico sobre poesia”, do dia 30 de novembro de 2017:
A Poesia não é fruto de instantes. É a exposição da alma de um poeta que a constrói há anos – por suas experiências, por uma história de vida e de vidas que sequer ele mesmo pode rememorar em uma única existência.
Há quem tome para si as palavras da poesia – é esta, afinal, a magia de que a Literatura é capaz. Na relação das palavras com o mundo, o poeta compreende o sentido da teia que elabora, da alquimia que manipula, dos sentimentos que lhe povoam a alma.
Não é difícil perceber a sintonia desse pensamento com a poesia e o pensar poeticamente o pensamento poético de Hélio Augusto. O que reitera a certeza de que a escolha das passagens, categorias do pensamento poético de Hélio Augusto, demonstra a sensibilidade crítico-poética desse poeta que não apenas usa a linguagem poética como matéria metalinguística.
Em conversa informal, José Eduardo Gonçalves revela que:
O Hélio Augusto é um belo poeta. Discreto, ele tem apenas este livro publicado, editora do Autor (se não me engano, este é o nome da editora), por iniciativa de uma sobrinha. Nós tínhamos um jornal em São João del-Rei, no tempo do mimeógrafo, chamado O Beco, final dos anos 70, lá ele publicou ótimos poemas. Eu e ele publicamos juntos um livreto, em 1979, (datilografado e copiado, uma joia!), chamado Pedras e palavras. Na minha próxima ida a São João, em fevereiro, depois das minhas férias, vou levar um exemplar pra você. Em uma segunda edição do seu Dicionário, que o futuro certamente lhe propiciará, Hélio Augusto merece figurar entre os nomes.
Estava, pois, escrevendo sobre a poesia de Hélio Augusto, em fase de certa conclusão desse texto, especificamente, com fundamento no livro Poemas (2019), quando recebo uma mensagem de José Eduardo Gonçalves, que, além de comunicar a seu irmão o interesse de nossa pesquisa por sua poesia, conta acerca do jornal/livreto Pedras e palavras, que ele e Hélio Augusto publicaram juntos em 1979, numa edição mimeografada, bem ao estilo dos anos 70 de fazer e divulgar a literatura e que José Eduardo chama de uma “joia”. E, então, decido esperar pelo recebimento desse jornal/livreto pela possibilidade vislumbrada de que poderia acrescentar novo olhar à abordagem da poesia de Hélio Augusto.
No dia 6 de junho de 2022, recebo, via Correios, de José Eduardo Gonçalves, um conjunto, a título de mostra de jornais típicos dos anos 70, dentre eles, jornal/livreto como se refere José Eduardo Gonçalves, Pedras e palavras (1979), com poesias de sua autoria e de seu irmão, Hélio Augusto, com ilustração de capa e contracapa, editado pelos irmãos, em julho de 1979, em São João del-Rei.
A capa traz a estampa de uma reprodução de uma das estátuas de um dos profetas, obra de Aleijadinho que se encontra em Congonhas, Minas Gerais. À altura da boca do profeta, lado esquerdo, um balão com citação explícita à guisa de fala/diálogo com a inscrição “poesias” numa repetição em série de 7 (sete), sem vírgulas entre elas e todas as sete repetições em minúsculas. Ao canto e no alto da página, do lado direito, grafado em maiúsculas, do título “PEDRAS E PALAVRAS”. “Pedras”, escrita em horizontal, e abaixo, em vertical, perpendicularmente “e palavras”.
Abrindo o jornal/livreto, no verso da capa, já a primeira página, como sumário, a autoria das poesias, assim, determinada: “página 3 à página 11 josé eduardo; página 12 à página 21 hélio augusto; página 22 josé eduardo”.
O jornal/livreto é datilografado, mimeografado em folhas A4, dobradas ao meio, numeradas no rodapé à direita. As folhas compõem a edição solta, sem nenhum grampo, clips ou moldura. São 10 poemas de José Eduardo e 12 poemas de Hélio Augusto.
A contracapa exibe a ilustração de uma janela/porta aberta, provavelmente pensada para uma rua histórica de São João del-Rei numa disseminação do título “pedras e palavras” que se pluraliza, alastra-se, tomando toda extensão da folha, à evocação de um poema concreto. As pedras das calçadas, os paralelepípedos antigos, tipo de calçamento preservado em São João del-Rei, sobretudo em ruas da área central de tombamento de patrimônio e as palavras, remetem, ou podem ser que remetem a essa harmonia, histórica, intelectual, cultural e familiar que unem ambos os poetas, irmãos de consanguinidade, mas também, de sonhos e desejos de dias melhores, de liberdade, de esperança, de democracia para o país, irmanados, assim pelo próprio patrimônio cultural são-joanense que os impregna e que unem os irmãos, pedras e palavras, pedras-palavras nessa apropriação metonímica da conjunção arquitetônica da cidade e da cidade escrita, que os mantém legíveis em suas páginas.
O jornal/livreto traz ao final, na última página, três agradecimentos pelos desenhos/ilustração: miudo, beth, fatima, jaime (grafados todos os nomes em minúsculas), assim como os nomes de ambos os poetas. Um tratamento peculiar da linguagem poética típica dos anos 70, cujo acento maior requer um exercício continuado de libertinagem. Reitera-se, de certo modo, o pensamento de que quanto menos a literatura disser “eu” mais, certamente, se aproxima da essência da criação de linguagem – a poesia.
De fato, esse conjunto se mostra pertinente a essa leitura inicial da poesia de Hélio Augusto. O poeta do livro Poemas (2019) nos permite surpreendê-lo, numa mirada em que se lê o poeta quase surpreendido nos bastidores de sua criação, numa mirada que se faz sobre seus ombros. E o que se tem através dessa mirada que o aborda, vamos dizer, em sua criação, é o resgate de uma poesia, absolutamente, ao nível da melhor produção poética brasileira e que se mantém à margem da historiografia literária, para quem insisto na necessidade de sua reescrita continuada pela própria responsabilidade histórica do presente.
O poeta não está à cata das luzes, do brilho dessa reescrita. Porém, ela se deve a ele e à própria riqueza da diversidade da poesia brasileira, do patrimônio cultural e histórico brasileiro, senão para afirmar que a sua poesia está inscrita no âmbito das melhores produções literárias, poéticas brasileiras.
Outro aspecto relevante do resgate desse conjunto é a inserção da cultura literária são-joanense no curso das ideias e dos ideais do Modernismo que nos anos 70 inflamavam os jovens poetas e escritores aqui, pelo interior de Minas Gerais, empenhados na renovação da cultura, da história e da literatura, em consonância com a prática já de certa tradição da modernidade.
Retomamos, pois, a capa do jornal/livreto Pedras e palavras na sua reprodução de uma das estátuas de um dos profetas, obra de Aleijadinho, exposta no adro da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais. Ora, mais uma vez se tem na cena da cultura de Minas Gerais, da literatura, da poesia a alusão a esse caráter peculiar de Minas Gerais que permite sempre, aqui, a contemporaneidade, a modernidade, e, por que não dizer os modernismos, sempre em diálogo e em estrita convivência com a tradição cultural que se constitui no imenso patrimônio histórico e cultural de Minas Gerais. Por isso, aqui, acertadamente, vieram, cem anos atrás, Mario de Andrade e diversas caravanas de modernistas em busca de história e do passado. A alusão ao patrimônio cultural mineiro pela voz, pela escrita dessa poesia que quer e se faz moderna, que clama continuadamente por liberdade, democracia não o fizeram os poetas irmãos, Hélio Augusto e José Eduardo, gratuitamente, por uma apropriação aleatória ilustrativa, antes, por uma escolha, certamente, pensada, desejada, de pleno diálogo com as vozes da modernidade que por aqui, reiteramos, se faz em sintonia entre passado e presente, pela responsabilidade histórica do presente para com o passado.
Os poetas publicaram ao estilo das publicações dos anos 70 uma literatura em absoluta conexão com a literatura realizada em todo País, em consonância de estilo, de voz, de desejos, sonhos e estética com que se realizava na literatura brasileira, demonstrando Minas Gerais sempre celeiro e cenário de grandes poetas e escritores, pensadores e intelectuais. Sobretudo no âmbito de um período em que os sonhos, os desejos e a esperança viviam sob ameaças de dias sucedidos por noites de continuada escuridão, frieza, tristeza. Período em que se exigia do tempo, da história, dos homens a veemência de vozes e ações capazes de enfrentar os céus nublados de plúmbeas nuvens com a esperança e a criação, pela arte, de dias de esperança.
Em São João del-Rei, até o momento da pesquisa, ainda não se descobriu nenhuma “revista” ao estilo das revistas que circularam pelo Modernismo, mas os jornais, as “folhas literárias”, mesmo de sua “efemeridade” (VIEGAS, 1974, p. 77) por aqui circulam numa demonstração da pujança da imprensa são-joanense, da vocação peculiar pelo jornalismo, tornando-se num rico, porém, ainda relegado arquivo, com um relevante acervo em fontes primárias que preservam a força, a riqueza, a diversidade de vertentes da literatura brasileira, completamente desconhecida, com uma pluralidade de escritores e poetas relevantes à reescrita da historiografia literária. Muitos desses intelectuais têm nessas folhas o acervo de sua obra. Por vezes, o único traço de sua permanência, resistindo ao tempo. Daí o entusiasmo com que Hélio Augusto e José Eduardo Gonçalves publicaram nos anos 70 seus jornais/livretos que se constituem nas insígnias literárias e culturais deste tempo de profundas marcas e transformações na história, na cultura e na literatura desse País por essas vertentes realizadas pelo interior, na contramão dos grandes núcleos literários. Um patrimônio que requer, clama pela responsabilidade histórica do presente por eles. Por resgatá-los, por investimentos e política públicos com vontade e consciência de que esse patrimônio exige, trazendo-o às luzes dos estudos contemporâneos da literatura e da cultura brasileira. Afinal, porque foram formados, senão por proporcionarem esse diálogo com o futuro que, em parte, é esse período histórico de urgência de seu resgate?
José Eduardo Gonçalves envia junto do jornal/livreto Pedras e palavras a reprodução de algumas páginas de outros jornais que produziu junto com Hélio Augusto, com poemas transcritos do irmão para nossa pesquisa, como Fruto de louco (n.2/novembro 1975), com 4 (quatro) poemas de Hélio Augusto: Acalanto, Os sinos e os tempos, Última imagem e um poema sem título; O beco (1977), com 6 (seis) poemas de Hélio Augusto: Natal; Poema em quatro sonhos; Épico, Recital, Poeminha; Conto noturno. Todos ilustrados por Jiamo/1977, o que nos permite estabelecer com uma margem menor de erro ao supor que, possivelmente, que a edição tenha sido realizada em 1977; e Anexo, ilustrado por JoEd que, José Eduardo Gonçalves confessa:
Eu ilustrei o único texto em prosa do Hélio Augusto de que me lembre, chamado Anexo. Eu assino JoEd. Era muito atrevimento desenhar no mesmo espaço onde pontuava Jaiminho, o Emílio e outros. Ah, o H.A escreveu também um texto para teatro, que chegamos a encenar, em 1975 (Carta de apresentação e envio do conjunto de fontes – Belo Horizonte, 3 jun.22).
Confirmando a José Eduardo Gonçalves o recebimento deste material, dessas fontes primárias, gentilmente, cedidas por ele à nossa pesquisa, em função dos estudos iniciais empreendidos acerca da poesia de Hélio Augusto, ele destaca em outro fragmento dessa mesma carta que:
Vejo muita coerência, delicadeza e sentimento na poesia dele, fico feliz que esteja analisando com carinho esse trabalho (Carta de apresentação e envio do conjunto de fontes – Belo Horizonte, 3 jun.22).
De posse de todos esses documentos que se somam ao livro Poemas (2019) que era, até então, a única fonte de que a pesquisa dispunha para essa leitura inicial da poesia de Hélio Augusto, pergunto-me: o que esses documentos, de fato, acrescentam às pesquisas sobre a produção poética de Hélio Augusto? O que eles dizem? O que se escuta deles? Qual o sentido dessa poesia realizada numa cidade como São João del-Rei?
Mais certo que uma resposta permaneça em construção à medida que se convive, de modo que se apresenta menos incompleta. Todavia, nesse momento, requer-se pensar o pensamento poético de Hélio Augusto, a partir dessas considerações ainda ao ímpeto de uma convivência mínima.
Esse conjunto trazido por José Eduardo Gonçalves, antes de tudo, reitera o olhar inicial da pesquisa que procura distinguir, na criação literária, poética, de Hélio Augusto o privilégio de uma mirada, cujo acento, precipuamente, incide no cotidiano, na cidade (São João del-Rei) no tempo, na linguagem poética, na história, como um ato de esperança na liberdade, na cidadania, na democracia, num enfrentamento, pela arte, dos dias a céus cinzentos, pesados, por vezes, repletos de ruas escuras, tomadas por silêncios impostos, tortura, cerceamentos e desesperança.
Nesse aspecto, a coerência que José Eduardo lê na poesia de Hélio Augusto se confirma, uma vez que toda produção literária de Hélio Augusto traz esse caráter indelével do poeta como homem do seu tempo, da sua cidade, do seu país, da história. Que opta, apaixonadamente, pela arte literária, para se posicionar e transformar o mundo em que vive, sem nenhuma alienação. Os poetas não são seres alienados, pelo contrário, fazem da arte instrumento de sua escrita história, daí serem rechaçados de todas as repúblicas, democráticas ou não.
Por outro lado, o conjunto de fontes trazidas por José Eduardo muda a visão inicial que vinha sendo formada do poeta, a partir apenas do livro Poemas (2019). Primeiro, porque mais do que meramente supor traços da biografia do poeta que ele escreveu no âmbito dos anos 70, período de relevantes transformações históricas, políticas, culturais do país, têm-se em mãos, os bastidores da produção pessoal do poeta, em meio ao próprio fazer literário desse período. O que se tem por essa peculiar entrada no acervo dessa produção realizada, à própria especificidade de parte relevante da arte dos anos 70 em jornais e livretos produzidos pelos poetas, escritores e jornalistas, que se encarregavam, tanto da produção artístico-literária dessas folhas quanto de sua produção jornalística, do design utilizado e, sobretudo, de sua divulgação, de sua distribuição pelas ruas, praças, ladeiras e becos da cidade, dos custos dessa produção.
Portanto, tem-se o poeta Hélio Augusto em meio a esses bastidores com publicação relevante, do ponto de vista das quantidades e da qualidade literária em circulação no interior de Minas Gerais, reiterando, sempre a participação de Minas Gerais, em especial de São João del-Rei, no âmago da cultura, da história e da literatura brasileira, a partir dessa vertente que se faz das margens, da periferia do chamado dos grandes centros culturais e, que, ainda hoje, completados cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922 permanece revelando vertentes inéditas, tanto do Modernismo quanto da cultura e da literatura pelo interior de Minas Gerais.
Segundo, porquanto as fontes primárias demonstram a publicação de muitos dos poemas que constam do livro Poemas (2019) nos jornais/livretos produzidos, publicados e distribuídos nos anos 70, numa sintonia da arte realizada em São João del-Rei com a cultura e literatura pelo país. Daí a relevância das pesquisas que se dedicam ao resgate, estudo, preservação e, por conseguinte, democratização de acesso a esse rico patrimônio cultural, que vimos insistindo como responsabilidade do presente por esse passado histórico.
E temos, portanto, ampliada a abordagem sobre a poesia de Hélio Augusto de que ainda se pode destacar, por exemplo, a perspectiva do silêncio, do calar-se, da vigília, sob que mais uma vez se faz pertinente o olhar de José Eduardo ao destacar a coerência poética de Hélio Augusto. A poesia dos anos 70 é marcada pela procura de uma inscrição, por vezes, à força do grito trazido das vozes da cidade, do tempo, da história para o corpo da linguagem. A poesia de Hélio Augusto faz esse percurso de um silêncio, de calar-se que é um fazer com a sua voz silente-gritante cale “as vozes que conspiram nessa noite estranha” (AUGUSTO, 1979, p.12). A ânsia, a denúncia e a esperança são profundamente marcadas por essa voz que se impõe pela firmeza de sua audição, pela legibilidade de seu corpo escrito-inscrito no corpo do tempo e da história, pela veemência do que exige a partir da criação literária.
A perspectiva de uma ambiguidade que lhe é peculiar, talvez aqui se possa dizer, com o acento indelével de certa doçura afeita a Minas Gerais, que não exclui o tom amargo que por vezes delineia, alinhava-se à própria doçura. Aí temos a convivência entre as mágoas, as frustrações, as dores, os silenciamentos impostos de um tempo histórico vivido na travessia de um longo período, de uma longa estação escura e fria “noites de muitos medos” (AUGUSTO, 1976), diante de um cenário de esperança, traçada “pelas linhas de sonhos” (AUGUSTO, p.16). Essa perspectiva, certamente, seja um dos grandes valores da poesia de Hélio Augusto que há que ser retomada tanto pela necessidade de reescrita continuada da historiografia literária quanto pela crítica literária contemporânea.
Ressaltam-se, ainda, o aspecto formal na poesia de Hélio Augusto, preferencialmente, poemas curtos, raramente, longos, reiterando a urgência do próprio estado em que ela é concebida, que exige esquivos constantes dos silêncios impostos, dos cerceamentos, da proibição, da destruição sob a ameaça de atos subversivos à soberania nacional. Destaca-se o ritmo, não apressado, porém, breve, exato, comedido a que não sobra e nem falta o tempo exato do dizer. A limpidez dos substantivos despojados dos adornos inúteis da linguagem. A economia de pontuação, a parcimônia dos adjetivos, a precisão do verbo, da sintaxe, o corte poético do verso que por vezes evocando a ferida, o sangue, a lágrima, a dor, secura, por vezes, ternura, e o incômodo do soluço bebido, engasgando a voz, as vozes do verbo, da carne, do tempo, da história.
A poesia de Hélio Augusto, diferente de um compromisso com o tempo, com a história, com o país, ela torna tempo, história e o país em linguagem, corpo de sua criação literária, por meio de que, não apenas rememora, recupera, mas cria, reescreve o homem, a história e o país em suas alegrias, sonhos, esperança, liberdade, dores, mágoas, em tempo de céus azuis ou cinza, recorrendo à metáfora que descreve os cerceamentos dos anos 70. Nesse sentido, o poema “América” (2019, p. 78) aborda mais do que o Brasil, a América Latina, semelhantemente, imersa em cenário idêntico de uma mesma angústia histórica. “A vida escorre à margem da palavra” (p. 89). A palavra, a poesia, como corpo sustenta, ampara a vida, o sangue, os sonhos de liberdade de toda América Latina, sempre oprimida pelos “podres poderes” (VELOSO, 1984).
Por fim, a consciência crítica, história e cultural do poeta a quem restará senão o tempo e a palavra, na concisão deste poema constante do jornal Fruto de louco (1975):
além do
tempo
a palavra também
permanece
o tempo e a palavra
além deles
nada me restará (AUGUSTO, 1977, p. 6).
Manifesto
Somos uma geração
Em vigília
De tantas coisas perdidas
Somos agora apenas
Espera e angústia
Mas ainda nos restará a lembrança
Que a cultivemos em segredo
Lembranças de um tempo
Em que eram nossas as estradas
E os morros
Eram nossos os santos e as igrejas
Eram nossas
As nossas alegrias
E as nossas vidas … (AUGUSTO, 1979, p. 12-13).
Fragmento (Final)
A mão magra e nua
Descreveu o gesto no vento seco
E a flor desenhou um sonho
No ar
Antes de sumir
Na curva do rio (AUGUSTO, 1979. p. 14).
A última imagem
O rato imenso/
negro/ com
seu ar de pássaro
sonâmbulo/
roerá/ com prazer
de anjo/
suas teias/farsas/
seus pedaços de
queijo/branco (AUGUSTO, 1975).
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa, Rio de Janeiro: GB, Companhia José Aguilar, 1967.
BOECHAT, Melissa. Breve ensaio não acadêmico sobre a poesia. Disponível em <www.asombradafaia.blogspot.com>. Acessado em 4. jan.2022.
BLOOM, Harold. A anatomia da influência: literatura como modo de vida. Tradução Ivo Korytowski e Renata Telles. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume/Dumará, 2001.
FOUCAULT, Michel. O que é o autor. Tradução de José A. Bragança de Miranda e António Fernando Cascais. Lisboa: Passagem, 1992
GONÇALVES, José Eduardo; GONÇALVES, Hélio Augusto Silva. Fruto de louco. São João del-Rei, (mimeografado) 1975.
GONÇALVES, José Eduardo; GONÇALVES, Hélio Augusto Silva. O beco. São João del-Rei, (mimeografado) 1977.
GONÇALVES, José Eduardo; GONÇALVES, Hélio Augusto Silva. Pedras e palavras. São João del-Rei, (mimeografado) 1979.
GONÇALVES, Hélio Augusto. Poemas. São João del-Rei, 2019.
QUINTANA, Mario. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
ROLNIK, Suely. O furor de arquivo. Artes e ensaios. Rio de Janeiro. v.19, n.19, , p. 97-105, 2019. Disponível em: <www.revistas.ufrj.br>. Acesso em: 2 jun.20222
VELOSO, Caetano. Podre poderes. LP Velô. Rio de Janeiro, 1984.
VIEGAS, Augusto. Notícias de São João del-Rei. 2. ed. Belo Horizonte. Imprensa Oficial, 1974.
Nilo da Silva Lima, natural de Ponte Nova (MG), graduado em Letras pela FUNREI – Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei, onde também fez pós-graduação em Estudos Literários. Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Sócio correspondente da Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova. Tem artigos publicados pela Vertentes – Revista Universidade Federal de São João del-Rei; pela Ato, revista de literatura de Belo Horizonte; Cronópios, revista eletrônica especializada em crítica e literatura brasileira; Em Tese, revista da UFMG; resenhas sobre a obra de Adriana Lisboa e Denise Emmer no Caderno Prosa e Verso, do jornal O Globo; Revista da Academia de Letras de São João del-Rei; jornal A Gazeta de São João del-Rei. Mantém oblog www.literaturalima.wordpress.com.br onde publica com regularidade apenas textos literários.