Pela evidência da palavra | Leonora Rosado
(excerto retirado do futuro livro Corpo póstumo)
A noite é branda, a noite é uma branda maldição. Há corpos que se escapam pela evidência das palavras, múltiplas ossadas rubras. A noite é uma seara pungente que deixo ao seu próprio abandono. A noite é um cristal raro que vibra sem água ao sabor do olhar. Metáforas todas elas de lume e breu, a carícia volatiliza-se incomparavelmente. Há nas costas da noite um acordeão rouco, mas destemido e célere. Há ainda um estilhaço de vida no seu sopro. Há matéria de corpos famintos, lunares à beira de um jazigo. A morte e a noite, o sexo. Uma certa admiração que reside nas suas mãos, faça-se o deslumbramento e a queda, faça-se um punhal cardinal. Faça-se aritmética, algarismos nus com fome de relento. A noite é volúpia e secreções, o extremo faminto dos dedos que ao pulsar sentem a vocação para o assassinato justificável. Prefiro não ignorar a sua voz. Os seus passos de giz como janelas cobertas por negros postigos. A minha propensão para o negrume, o meu seio nu gladiando-se, debatendo-se. O meu ponto O armazenando asfixias. A noite é uma duna de sal e espuma, queiram beber da sua axila, aproximem-se que aqui o funâmbulo é uma serpente sobre a pele. Um relampejo sobre o desejo. De todas as noites que já atravessei, nenhuma se iguala a ti. Nenhuma nuvem ou estrela tem a consonância deste árido desejo. Nenhuma intenção amaldiçoada te é próxima ou mesmo por ti desejada. Tu que anoitecias a sombra como alguém que se esqueceu de consumar a eternidade de escuridão. É quase bélico este tempo de calor, quase inapreensível, quase doloroso. Os crimes de violência doméstica disparam com o tempo quente. Eu sento-me e leio poesia, à medida que vou desfrutando de um cacho de uvas, Gamoneda, soletra-me os seus versos vigorosos. Deixo a meloa para mais tarde e volto a refrescar-me no chuveiro. Cada palavra de Gamoneda é como uma uva retirada do cacho, lentamente saboreio ambas e ao que parece continuo a magoar pessoas. Ao que parece, passei ou tenho passado sob um toldo de indiferença. Sabem-me bem as uvas, acompanhadas de um vinho branco geladíssimo e da belíssima poesia de Gamoneda. Após a mudança de casa, deixei de saber onde se encontra, Oração Fria, desse mesmo grandioso poeta. Talvez esteja ainda na arrecadação, dentro de algum caixote ainda não inspeccionado. Ardem as Perdas. Pousei no lume as mãos senti-as gelar até ao infinito adeus.