Cultura

Em busca do eterno verdor: algumas considerações sobre A ponte no nevoeiro, de Chico Lopes | Caio Junqueira Maciel

 

Caio Junqueira Maciel

 

Há um poema de Jorge Luis Borges em que ele afirma: “Contam que Ulisses, farto de prodígios, / chorou de amor ao avistar Ítaca/ humilde e verde. A arte é essa Ítaca/ de um eterno verdor, não de prodígios.” No romance A ponte no nevoeiro (editora Laranja Original, 2020), do brasileiro, paulista, Chico Lopes, radicado em Poços de Caldas, há uma fictícia cidade denominada Verdor (talvez inspirada em Novo Horizonte, sua terra natal) em que os protagonistas Bruno e Siqueira, “exaustos de si mesmos”, vivem e sofrem, buscando o tamanho da esperança, oscilando entre a corrosão e a ressurreição. Aliás, não é gratuita a designação de uma avó, com o nome Redenta que, embora eivada de preconceitos raciais, acena para uma possível redenção do aspirante a escritor Bruno Alfieri.

 

A propósito de outro romance de Chico Lopes, O estranho no corredor, anotei que esse autor, à maneira de Autran Dourado, Elias José e Edgard Pereira Reis, representa a sólida literatura de escritores do Sul de Minas, cujas obras evidenciam intenso mergulho no âmago dos personagens, sem deixar de abordar aspectos sociais e configurar um vivo retrato da região em que transcorrem suas narrativas.

 

Logo no início de A ponte no nevoeiro, na descrição do firmamento, há como que uma síntese da antítese entre morte e ressurreição que pautará a vida dos protagonistas: “Erguiam-se contra um céu em tons de roxo, cinza-escuro e uns fiapos de um laranja-rosado como que aceso, céu de agonia, mas também de vaga promessa de ressurreição.” (p.13)

 

Bruno Alfieri é filho de Lina, uma mãe solteira (amigada com Atílio). O pai de Bruno, Gérman Grano (quase xará do jogador do Fluminense) personifica o mistério: sempre ausente, sua nacionalidade é duvidosa (argentino? Uruguaio?). Germano (como Lina o tratava) nem se comoveu com o nascimento de Bruno “nascido em 1970, ano ruim, mortos Janis Joplin e Jimi Hendrix, Beatles acabados, não o reteve nem pareceu comover”. (p.41) Entre suas coisas deixadas com Lina, há a fotografia da ponte no nevoeiro. Busquei na Internet a partir da dica de que foi um tal de Grossmann que enviou a foto para Gérman Encontrei várias pontes em densa névoa, algumas fotos com assinaturas de alguns Grosmann ou Grossman…Aliás, Chico Lopes, como todo romancista consciente, não dá ponto sem nó: nomes espalhados pela obra têm lá suas funções. Há mesmo um pseudônimo de Hermann Hesse.

 

A imagem da ponte do nevoeiro será reiterada várias vezes, metáfora da névoa que envolve o protagonista e sua resolução de, um dia, ir em busca de seu pai. Motivo, aliás, de várias obras literárias, como Pedro Páramo, de Juan Rulfo ou À procura dos motivos, de Oswaldo França Junior. Examinar a foto é uma busca de motivos para que Bruno desvendasse o nevoeiro que envolve sua origem: “Era um lugar não definido – uma ponte, cujas vigas frontais e muradas apareciam parcialmente, mas era devorada quase totalmente devorada por uma névoa densa, com formas muito vagas de árvores e casas do outro lado.” (p.87)

 

Bruno e Siqueira, de certo modo, são personagens complementares, especulares, cada um deles buscando um motivo mais digno para suas sobrevivências, assim como também são carentes de um amor mais sólido, definitivo. Siqueira se entrega às prostitutas do lugar, embora tenha certa atração por Dalva, mulher casada, esposa de um poderoso do lugar. Bruno tinha um caso com Isa, nome inspirado provavelmente na deusa egípcia do amor, Ísis – que inesperadamente opta por largar o jovem a favor de um senhor mais velho, também de uma família poderosa de Verdor.

 

A cidade vive sob o signo do boi, fazendeiros ricos, filhos de papai com seus cavalos e carros de ano, políticos medíocres, vida rasa, enfim. Num espaço assim, Siqueira e Bruno são gauches, assim como o homossexual Otávio – embora trazendo sobrenome de família italiana, um dos próceres daquela cidade nas imediações de “R.” (seria Ribeirão Preto?).

 

Para além do enredo que nos arrebata, o que me atrai no texto de Chico Lopes (que é apenas dois dias mais velho do que eu) é o conjunto de suas referências, o vasto mosaico de filmes, músicas, livros. Mulheres parecidas com Katharine Ross, Mia Farrow, Ursula Andress; protagonista com expressão cool de Robert Mitchum ou Bogart; frases de filmes como ‘Zorba, o grego” ou recapitulações de cena de “La dolce vita”; música de Jimi Hendrix, canções dos Beatles, como a linda e lírica “She’s leaving home” – embora “Let it be”, em um certo momento, parece enjoativa para o personagem, assim como “Imagine” vai se tornando incolor com o desbotamento de sua utopia; mas há ainda “Homburg”, de Procol Harum; citações de Borges, Neruda, Bukowski.

 

O erotismo pontua algumas passagens e não posso deixar de registrar episódios humorísticos envolvendo as prostituas do lugar, principalmente “Lady Ethel”, nome cunhado por Siqueira para designar Etelvina, ou “Tervina” ou ainda “Terva”, o que me remete ao poema “Notícia”, de Dantas Mota, que assim termina: “Etelvina era da vida e bebeu veneno./ Aliás, isso é da vida também.”

 

Enfim, esse romance do Chico Lopes, embora contenha algumas gralhas, admitidas pelo próprio autor como descuido da revisão, merece ser reeditado e lido e debatido, pois demonstra a vitalidade da literatura de escritores que vivem fora do eixo badalado da vida cultural brasileira.

 

Fotografia de Chico Lopes

 

Fotografia de Caio Junqueira Maciel

 

Caio Junqueira Maciel, escritor brasileiro, mineiro de Cruzília. Mestre em Literatura Brasileira, pela UFMG, Professor, editor, autor de livros didáticos. Livros: Um estranho no Minho, O sangue que rejuvenesce o Conde Drácula, A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota, entre outros. 


CHICO LOPES, Francisco Carlos Lopes, escritor brasileiro, jornalista, tradutor e crítico de cinema. Nasceu em 6 de maio de 1952 em Novo Horizonte, no Estado de São Paulo. Radicado em Poços de Caldas, Minas Gerais, onde trabalhou como crítico de cinema no Instituto Moreira Salles – Casa da Cultura de Poços e paralelamente no Jornal da Cidade, Brand News e Mantiqueira. Publicou NÓ DE SOMBRAS, contos, 2000. DOBRAS DA NOITE. Desde então, publicou mais 15 livros, romance, contos, crônicas, poesia, memórias, biografias. O ESTRANHO NO CORREDOR, romance,  2012, CORPOS FURTIVOS, A PONTE NO NEVOEIRO. Ensaios sobre Cinema, NA SALA ESCURA e DE LEONE A TARANTINO). De contos, publicou HÓSPEDES DO VENTO e A PASSAGEM INVISÍVEL, além da antologia PARQUE DOS CÃES. Publicou também crônicas em O ABRAÇO DOS CEGOS e CORAÇÃO DISPERSO. Poesia, CADERNO PROVINCIANO, 2014,  finalista do Prêmio Portugal Telecom em 2014. e FLORIR NO ESCURO. Em 2012, A HERANÇA E A PROCURA, memórias. 



Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
1
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.

More in:Cultura