Cultura

Eisenstein Ou A Construção Da Esperança V | Henrique Dória

“Uma nuvem negra está a formar-se. Aproxima-se um crepúsculo sangrento. Os boiardos tramaram um plano sinistro contra a autoridade do Czar que agora estão a executar. Este é um filme sobre um homem que foi o primeiro a unir esta nação no século XVI. Um príncipe de Moscovo que criou um único e poderoso estado de principados separatistas divididos. Um guerreiro soberano que anunciou a glória militar da nossa Mãe-Pátria através do Oriente e do Ocidente. O primeiro soberano que, para alcançar estas grandes marcas, se coroou como Czar de Todas as Rússias.”

É com esta legenda que principia o grande épico que é Ivan, o Terrível. Uma legenda acompanhada de nuvens brancas e negras em revolução frenética.

Naqueles tempos de perturbação e sofrimento que foram os da II Guerra Mundial, nenhum introito melhor que este. E nenhum poderia agradar mais a Estaline, o líder russo que enfrentava a invasão na Mãe-Pátria pelas hordas nazis e pretendia unir todos os russos, mesmo os que o não apoiavam, em torno desse alto desígnio que era a defesa da Pátria. Naqueles tempos de inclemência, exaltar o unificador da Rússia era exaltar o líder que agora conduzia o povo russo contra a invasão germânica e contra os inimigos internos, reais ou imaginários, do poder estalinista, contra os quais foram conduzidas as grande purgas dos anos de 1930. 

Ivan Vassilievitch foi o quarto Grão-Duque de Moscovo, que  o clero, a nobreza e o povo apelidaram de GROZNY, palavra cuja tradução mais rigorosa é a de horrível. Teve um longo reinado de 37 anos, primeiro como Grão-Duque, entre 1533 e 1547, depois como Czar, entre 1547 e até à sua morte, em 1584.

Quando, ainda criança, sucedeu a seu pai, o poder estava, de facto, nas mãos dos boiardos, grande nobreza rural. O reinado de IVAN foi toda uma luta para concentrar em si o poder, retirando-o aos boiardos e à Igreja Ortodoxa, objetivo que conseguiu mas se desmoronou após a sua morte devido ao caráter violento do próprio IVAN, que fez abortar a nora com uma agressão e matou o seu filho, herdeiro do trono, num acesso de fúria. Ao longo do seu reinado terá mandado torturar e assassinar mais de quatro mil pessoas.

Criou dois domínios territoriais: um terço das melhores terras russas, denominadas Oprichnina, tornou-as sua pertença, espoliando os boiardos e a igreja. O resto ficou a pertencer à igreja e aos grandes proprietários rurais.

Criou uma guarda pessoal também designada Oprichnina que era, simultaneamente, polícia secreta, que aterrava a população e suscitou a oposição dos boiardos e do poder religioso. Convencido de que estes o estavam a trair, retirou-se para o convento de Alexandrov, a cerca de 120 quilómetros de Moscovo, comunicando a sua intenção de abdicar.

É então que uma delegação composta por religiosos, boiardos e comerciantes se dirige a Alexandrov e lhe pede para retomar o exercício do poder, o que ele aceita com a condição de as suas decisões não serem postas em causa pela igreja e pelos boiardos. Essa condição é aceite, e IVAN regressa a Moscovo com um poder absoluto.

É este o contexto histórico em que se move a obra de Eisenstein. 

O filme não pretende o rigor histórico nem se desenrola numa sequência cronológica mas através de sequências afastadas no tempo, num exercício de montagem cinematográfica tão caro a Eisenstein e transpondo para o cinema a linguagem teatral em que peça se divide em atos  e estes em cenas.

O primeiro deles é a cerimónia de coroação de IVAN. Entre a desconfiança dos boiardos e o espanto dos estrangeiros presentes na cerimónia, IVAN toma das mãos do metropolita de Moscovo a coroa, e coroa-se a si próprio Czar de todas as Rússias, aos 17 anos.

 

No seu discurso de coroação afirma-se como unificador e defensor do povo russo contra os seus inimigos externos e internos. Os embaixadores, afetados e  arrogantes, começam a mostrar receio, e os boiardos, liderados pela tia do Czar, Efrosinia Staritska, aumentam a sua hostilidade. Entretanto, IVAN decide casar com Anastasia Romanova, o que provoca o afastamento do seu amigo Kurbsky, também ele apaixonado por Anastasia e que continua a fazer-lhe a corte, que ela repele. Por sua vez, o seu amigo Filipe que não gosta do discurso de coroação hostil aos boiardos, pede para se afastar para um mosteiro, o que é aceite por IVAN.

No quadro seguinte assistimos ao faustoso banquete de casamento de IVAN com Anastasia. Os momentos mais altos são os do beijo prolongado de IVAN e Anastasia ( que Estaline haveria de criticar) e os cisnes brancos, símbolo de pureza e de luz, em que eram servidas as iguarias do banquete.

A festa de casamento é invadida por populares que tinham incendiado palácios de boiardos e que culpam a família da czarina, os Romanov, de serem a causa do sofrimento do povo e de manipularem o Czar. IVAN recebe o povo e dialoga com um dos populares, Maliuka, que mostra, com os companheiros, o espanto e submissão perante o Czar. A cena é interrompida pelos embaixadores do canato de Kazan que oferecem a IVAN uma faca cerimonial, sugerindo que cometa o suicídio. IVAN declara de imediato guerra a Kazan.

O terceiro quadro mostra o épico cerco a Kazan com IVAN a ordenar que sejam feitos túneis para colocação de barris de pólvora debaixo da cidade. Kurbsky mandara atar jovens prisioneiros a paliçadas próximas das muralhas e ordena aos prisioneiros que peçam a rendição da cidade, ao que eles se recusam, sendo atravessados por setas lançadas pelos defensores de Kazan, em nome de Alá.

A cidade cai em consequência da destruição causadas pelo rebentamento dos barris de pólvora.

No ato seguinte, após a tomada de Kazan, IVAN fica gravemente doente, e todos pensam que se aproxima a sua morte. No seu leito de morte é-lhe dada a extrema unção. Num momento de exaltação pede a todos os que o rodeiam que jurem fidelidade a seu filho recém-nascido, sem o qual a Rússia se fragmentaria. Os boiardos, capitaneados por Efrozina que queria ver o seu filho Dimitri (um jovem idiota) coroado Czar dos boiardos, escapam ao juramento de fidelidade, aceitando ficar do lado de Efrozina. Também, Kurbsky, amigo do Czar, hesita sobre que partido há de tomar, e convencido de que IVAN está morto, pretende que Anastásia o despose. Porém, a czarina diz-lhe que IVAN ainda está vivo, e Kurbsky, apressadamente, jura fidelidade ao filho de IVAN.

Como compensação pela fidelidade de Kurbsky, IVAN envio-o para a fronteira polaca comandando o exército, e  Alexei Basmonov, comandante da guarda pessoal, para a Crimeia. Porém, surge a doença imprevista de Anastasia, enquanto os boiardos conspiram contra IVAN. É recebida a notícia de que Kurbsky venceu os polacos, mas prossegue a conspiração dos boiardos. A czarina tem uma convulsão e, para a acalmar, IVAN dá-lhe a beber uma taça de vinho que fora previamente envenenada por Efrosina. Anastasia morre entre convulsões de dor.

O quadro seguinte decorre no funeral de Anastasia, mostrando-nos a imensa dor de IVAN junto ao ataúde onde jaz o corpo da czarina. Enquanto os monges recitam trechos bíblicos, IVAN interroga-se sobre o modo como tem exercido o poder e acredita que a morte da esposa é um castigo de Deus. Basmavov, a seu lado, sugere que perante a traição dos boiardos ele se alie a quem pode confiar. É então que começa a vingança de IVAN e a grande repressão que exerce através da guarda pessoal que acabou de criar, a Oprichnina, chefiada por Maliuta.

Num outro momento, o czar angustiado, e cedendo aos seus remorsos e à sua religiosidade, decide refugiar-se num convento.

Porém, o povo, numa imensa fila serpenteante, dirige-se ao convento a implorar o seu regresso. Aceita regressar mas  investido de poderes absolutos, o que é aceite pelo povo. A primeira parte do filme termina então com o regresso de IVAN a Moscovo.

Os quadros em que se desenrola o filme não pretendem ser  uma representação realista dessa parte do reinado de IVAN mas a sua representação teatral e como tal se desenvolve a obra. Nela vemos a presença de Shakespeare e de Meyerhold ( amigo de Eisenstein) e também, como epopeia que é, da Odisseia, com o astuto Ulisses na viagem do exercício do poder, sendo os quadros com que é construído o filme paralelos aos cantos me que se divide a Odisseia.

Por isso nela tudo é teatral e simbólico. Os olhares trocistas dos embaixadores simbolizando o desprezo; o rosto e o vestuário negro de Efrosina simbolizando a ambição e a maldade; as cabeças e os as vestes dos boiardos significando a arrogância e o luxo; o rosto e as vestes de Anastasia simbolizando a luz e o angelismo; a imponência das vestes de IVAN significando a grandeza da Rússia, a sua barba longa ( que Estaline criticou como símbolo fálico) significando o poder de IVAN e a sua ligação à divindade (como sucedia com os faraós); os enormes anéis de IVAN a sua riqueza; o canto do baixo a força da Rússia; as moedas despejadas sobre o corpo do Czar recém coroado a prosperidade do seu reinado e da mãe pátria; os olhares desviados que são recorrentes no filme significando a desconfiança e a astúcia.

Nesta primeira parte da obra repetem-se expressões que seriam caras a Estaline: “ Sem um poder único só podereis governar na loucura”,  “ O Czar não pode reinar sem terror” , “ O chamamento do povo conferir-me-á um poder ilimitado”. Estava aqui justificado o terror estalinista para salvação da Rússia dos seus inimigos externos e internos. Estava justificada a retirada de terras aos boiardos e à Igreja, como estava justificada a aniquilação dos kulaks a ação da polícia estalinista.

O filme deve também muito à arquitetura e à pintura. Os altos tetos das salas contrastando com a pequenez das passagens entre elas que obrigam as pessoas a baixarem-se; corredores estreitos, recantos tortuosos, o serpentear do exército de IVAN na cerco a Kazan em paralelismo com o serpentear da procissão do povo que vem ao convento implorar o regresso de IVAN a Moscovo; o contraste entre o preto das vestes e o branco da neve e das paredes do convento onde se refugiara IVAN.

JEAN MITRY, escreveu no seu ensaio sobre Ivan, o Terrível:

“Elevada às dimensões de uma arquitetura colossal, a composição plástica tudo o mais, e as imagens, que se esforçam por elevar à condição de lenda factos mais ou menos autênticos, graças a um representação simbólica e figurativa, tendem constantemente para a cristalização iconográfica dos acontecimentos, dos gestos e da ação. A obra está como que estratificada numa sequência de imagens prodigiosas que reduzem tudo à sua própria composição. Cada uma delas é uma obra prima pictoral…”

ROLAND BARTHES, em A CÂMARA CLARA, fala em loucura contemplativa de muitas fotos do filme. Em O ÓBVIO E O OBTUSO, acentua a importância do poético, do mágico e do enigmático na obra, um “pastiche, carnavalesco, fantasioso, vago, oscilante, elítico”. E ressalta a predominância do ângulo obtuso que é constante no filme e torna mais profundo o processo de significação da fotografia. É particularmente notável e obtuso o paralelismo entre os belos prisioneiros atados a uma paliçada de peito nu e que são trespassados pelas setas dos defensores de Kazan com as pinturas icónicas do mártir S. Sebastião, patrono dos homossexuais, também atado a uma coluna  e trespassado, como se vê na obra de Andrea Mategna, S. Sebastião, presente no Louvre. Mas também é obtuso o ângulo das sombras de IVAN nas paredes do palácio ou a figura de IVAN no mosteiro pairando sobre a multidão que, em fila curvilínea, lhe vem pedir que reassuma o poder.

A encenação exigiu dos atores, em particular do extraordinário Nikolai Tcherkassov, que desempenhou o papel de IVAN, um enorme esforço para contrariarem a naturalidade da representação, sobretudo na movimentação dos olhos para tornarem a representação em símbolo.

Há, nesta primeira parte de Ivan, o Terrível, uma profunda religiosidade, quer na encenação, quer na figura de IVAN, quer nas artes da polifonia e do contraponto acentuadas pela extraordinária música de Prokoviev, que lhe servem de suporte, quer na liturgia que vai acompanhando os vários quadros da obra, quer na coroação de IVAN, quer nas cenas em que se relaciona com o monge Filipe, quer, sobretudo, na cena do funeral de Anastasia em que IVAN, ajoelhado junto ao ataúde, de certo modo se culpa e se interroga e interroga Deus, dizendo: “Terei o direito de fazer o que faço? …Não será isto uma punição de Deus? Terei razão na minha luta obstinada?…”

Simultaneamente, um monge recita os Salmos do rei David:

“Salvai-me ó Deus …porque as águas a minha vida… Os que me odeiam sem razão são mais numerosos que a minha cabeça… Tornei-me um estranho para os meus irmãos, um estranho para os filhos de minha mãe…”

Então, Maliuta, o seu espião, o seu “cão” fiel como IVAN lhe chamava, vem dar-lhe as terríveis notícias da traição dos que o Czar considerava seus amigos, sobretudo Chuisky e Kurbsky.

E o monge continua, em contraponto, o salmo : “ Que eu seja salvo dos meus inimigos e da voragem…Espero piedade mas em vão, espero consoladores e não encontro nenhum…”

Mas IVAN retoma as suas forças e grita: “Mentes! O Czar de Moscovo mantém-se invencido!”

Os ícones representando Cristo são uma presença recorrente no filme. Porém não é o Cordeiro de Deus, do cristianismo ocidental, mas o Cristo Pantocrator, o Cristo Governador do Mundo, o Cristo Todo Poderoso, do cristianismo oriental.

A primeira parte de IVAN é um hino à grande pátria Russa, à justificação do poder e da necessidade do poder ilimitado e do terror, portanto, da governação de Estaline, num momento em que a União Soviética estava a ser invadida pelas hordas nazis. Por isso não desagradou à classe dirigente da então União Soviética: a Estaline que se revia em IVAN, a Beria, que se sentia bem no papel de Maliuta, ao KGB que se poderia considerar o continuador da Oprichinina.

A segunda parte de IVAN, o Terrível, iria ter deles um acolhimento oposto.

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória


É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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