Cultura

Eisenstein Ou A Construção Da Esperança IV | Henrique Dória

Alexandre Nevsky é a penúltima grande obra de EISENSTEIN, o seu primeiro filme sonoro e também primeiro filme épico. Com o aproximar daquela que seria denominada por Estaline como A GRANDE GUERRA PATRIÓTICA, era necessário convocar a união de todos os russos, independentemente de serem ou não favoráveis ao estalinismo. Para cimentar essa união, nada melhor que fazer remontar a memória do povo russo aos tempos heróicos da formação da Rússia de Novgorod, Vladimir e Moscovo, e àquele que foi o herói mítico desses tempos de gloriosas vitórias contra suecos e alemães, o príncipe ALEXANDRE NEVSKY. 

 

O filme centra-se num curto período em que a REPÚBLICA DE NOVGOROD, que ocupava uma vasta região que ia da atual Estónia aos Montes Urais, era governada por uma Assembleia. Alexandre, muito jovem, à frente do exército de Novgorod, vencera o exército sueco numa batalha junto ao rio Neva, tendo, a partir daí, passado a ser chamado de Alexandre Nevsky. Mas, apesar dessa vitória, Alexandre foi afastado da cidade por influência dos boiardos. Porém, depois da ameaça sueca, nova ameaça mais perigosa surgia para Novgorod: a ameaça dos Cavaleiros da Ordem Teutónica. Estes cavaleiros que se tinham organizado em ordem religioso-militar aquando das cruzadas, tinham constituído um poderoso estado que englobava parte do norte da atual Alemanha, da Polónia e da Lituânia. Para a católica Ordem dos Cavaleiros Teutónicos, a ortodoxa Novgorod era uma vizinha a combater. E é assim que a Ordem Teutónica invade as terras de Novgorod e conquista a cidade de Pskov, massacrando os habitantes da cidade, com a ajuda de um traidor. Mas a resistência de Novgorod organiza-se e, em 1242, dá-se a BATALHA DO LAGO PEIPUS, que ficou conhecida como a BATALHA DO GELO, em que a infantaria russa esmagou a cavalaria teutónica que se afundou nas águas do lago gelado, atraída pela astúcia de Alexandre para um combate onde ele sabia que, em Abril, o gelo não suportaria no peso dos cavalos e dos cavaleiros.

 

É este o contexto histórico do filme que, não sendo um filme que segue o rigor histórico, se fundamenta na História para fazer uma epopeia, e fazer do tempo passado um símbolo do tempo presente.

 

O filme não pretende contar-nos uma história que se desenrola em sequência. Ele é uma colagem de momentos e planos, cada um deles dizendo muito mais do que a realidade a que ele pretendeu reportar-se. Tudo nesse filme é simbólico. Quem não vê da Ordem dos Cavaleiros Teutónicos que invadiram os domínios de Novgorod as hordas hitlerianas que se preparavam para invadir a União Soviética? Quem não vê em Alexandre Nevsky, o salvador de Novgorod, que acabaria canonizado pela Igreja Ortodoxa, o líder soviético Stalin, destinado a salvar, muito mais do que o regime soviético, a Pátria russa?

 

É comummente acentuado nesse filme  a preto e branco o contraste das cores: a oposição entre o branco das vestes dos Cavaleiros Teutónicos que haveriam de se afundar no gelo, e o escuro dos defensores de Novgorod. No entanto há nessa diferença de cores um realismo que nem sempre é acentuado: as vestes dos Cavaleiros Teutónicos eram, na realidade, brancas, com uma cruz negra, e as vestes dos defensores de Novgorod naturalmente escuras porque não se tratava de um exército permanente, fardado, mas, essencialmente, de camponeses e pescadores que eram mobilizados para a guerra. O simbólico surge mais no belo rosto de Alexandre e do seu exército que se mostra verdadeiramente humano, contra a máscara que encobre os rostos dos cavaleiros  teutónicos e do seu Grão- Mestre e comandante, cuja cabeça surge encimada por cornos que simbolizam a sua natureza animal. São precisamente esses cornos que são cortados pela espada de Alexandre no combate entre ambos, simbolizando esse corte não só a derrota do seu  Grão Mestre comandante como o corte da energia sexual dos germânicos. Finalmente, o terrível desastre dos Cavaleiros afundando-se no gelo do Lago Peipus que se partira simbolizava a terrível derrota que aguardaria as hordas nazis na neve das planícies russas.

 

E essa vitória foi tanto mais gloriosa quanto foram camponeses e pescadores que se transformaram em guerreiros por a Pátria estar em perigo e ameaçada a sua liberdade.

 

ALEXANDRE NEVSKY é um filme de oposições: os russos são jovens pescadores louros, com os cabelos ao vento, e surgem-nos no início do filme envolvidos no seu trabalho com vestes brancas, um branco sujo, todas iguais (a túnica de Alexandre, príncipe daquele povo, igual às túnicas dos outros pescadores), em oposição aos tártaros de cores escuras, cabeças envolvidas em peles de animais, cujo chefe, luxuosamente vestido, se apoia sobre as costas de um soldado para subir à liteira; o povo de Novgorod pedindo a liderança de Alexandre contra os boiardos e os burgueses que queriam a subordinação à Ordem Teutónica com pagamento de tributos; as hostes de Novgorod com vestes escuras, a cor da terra russa, por oposição ao branco imaculado do exército teutónico (lembrando o mal simbolizado por “Moby Dick”, a baleia branca do romance de Hermann Melville que Eisenstein tanto admirava); a espontânea e determinada organização das forças dirigidas pelo príncipe Alexandre  contra a ordem rígida dos cavaleiros germanos com as vidas dedicadas à guerra por um voto religioso; os olhares ínvios dos líderes germanos contra a frontalidade do olhar  dos líderes e combatentes russos. 

 

Em todas estas oposições existe simbolismo, mas também simplicidade, a simplicidade da mensagem da necessidade de uma liderança forte e justa para defender a Pátria contra o invasor tirânico e desumano. O bem contra o mal. Num momento em que Hitler preparava a invasão da União Soviética,  a mensagem era a que pretendia Estaline e a que necessitava o povo russo. 

 

Porém, com a assinatura do Pacto Molotov/Ribbentrop, em Agosto de 1939, Hitler acabou por suspender a invasão e o filme deixou de ser oportuno e exibido  durante dois anos, até à invasão da União Soviética pelas forças de Hitler em Junho de 1941. Voltaria a ser exibido a partir de então como máquina de produzir entusiasmo no povo e no exército soviético.

 

Alexandre Nevsky é um herói simples, jovem e belo, sem questões morais, escolhido pelo povo de Novgorod para o liderar na defesa da Pátria. A trilha musical de Prokoviev dá ênfase à simplicidade e beleza russas contra a maldade teutónica. A sua cantata passou a ser uma das obras mais celebradas da música russa. 

 

Tudo levava ao êxito do filme, produzido em 1937 e lançado em 1938. Daí que tenha sido encomendada a Eisenstein, pessoalmente por Estaline a direção de uma outra obra histórica, que seria uma outra epopeia, Ivan, o Terrível,  o unificador da Rússia, personagem com a qual Estaline se identificava. 

 

Ivan, com duas partes, uma produzida em 1944 e outra em 1946, mas esta lançada apenas em 1958, por desagradar a Estaline, seria (contra as espectativas de Estaline que esperava ver em Ivan, o Terrível, um outro Alexandre Nevsky, herói sem medo e sem angústias), uma obra de enorme beleza e complexidade,  para muitos a maior obra cinematográfica de todos os tempos.  

 

HENRIQUE DÓRIA

 

 

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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