Cultura

Eisenstein ou a Construção da Esperança II | Henrique Dória

Com a revolução de Outubro de 1917, foi nomeado Comissário do Povo para a Educação ANATOLY LUNACHARSKY. Ligado às vanguardas russas, Lunacharsky fundou, com Gorgy, entre outros, um organismo independente, embora financiado pelo Estado russo, o Proletkult.  Segundo as palavras de um dos seus fundadores, Platon Kerzhentsev:

A tarefa dos ‘Proletkults’ é o desenvolvimento de uma cultura espiritual proletária independente, incluindo todas as áreas do espírito humano – ciência, arte e vida cotidiana. A nova época socialista deve produzir uma nova cultura, cujos fundamentos já estão sendo lançados. Essa cultura será fruto dos esforços criativos da classe trabalhadora e será totalmente independente. O trabalho em prol da cultura proletária deve estar em pé de igualdade com a luta política e econômica da classe trabalhadora.

Mas ao criar sua própria cultura, a classe trabalhadora não deve de forma alguma rejeitar a rica herança cultural do passado, as conquistas materiais e espirituais, feitas por classes que são estranhas e hostis ao proletariado. O proletário deve examiná-lo criticamente, escolher o que tem valor, elucidá-lo com seu próprio ponto de vista, utilizá-lo com vistas a produzir sua própria cultura.

 

Foi esta a linha geral que guiou EISENSTEIN enquanto realizador, na que se somava o método marxista de abordagem da comunicação cinematográfica através de três momentos: tese antítese e síntese.

 

Seguindo as teorias de Pavlov, EISENSTEIN concebe o espetador como um animal que reage por reflexos condicionados, e o realizador deve procurar o modo de determinar as reações do espetador através do filme, usando, para tal, técnicas de montagem que criam no espetador um forte impacto visual e, consequentemente, emocional.

 

O seu primeiro filme, A GREVE, embora sem a grandeza das obras que viriam a seguir, revelava já o grande realizador que seria EISENSTEIN. A GREVE baseou-se em acontecimentos históricos ocorridos em 1905 que levaram a alterações políticas importantes na Rússia, pondo fim ao absolutismo czarista e à instituição de um regime parlamentar, constituindo um prenúncio da revolução de Outubro de 1917.

 

As técnicas de montagem  teorizadas e utilizadas por EISENSTEIN estavam já presentes nessa obra: a montagem métrica através da escolha do comprimento de cada fragmento da película; a montagem rítmica através do conteúdo e do ritmo das sequências, a montagem tonal que pretendia quantificar o “tom geral” e o “som emocional” de cada fragmento, manipulando o som e a luz. A montagem atonal que eleva a intensidade da montagem tonal, e finalmente, a montagem intelectual, o mais elevado estágio da montagem, no qual não só apenas as emoções que são condicionadas através da montagem mas o pensamento do próprio espetador, tirando efeitos racionalizados das emoções causadas.

Estas técnicas de montagem foram teorizadas por EISENSTEIN em vários ensaios que foram reunidos em dois livros, um de 1942, intitulado O SENTIDO DO FILME e outro, em 1947, A FORMA DO FILME.

 

A GREVE teve as limitações de criar estereótipos e paralelismos nem sempre eficazes. O diretor da fábrica obeso e envolvido em fumo, a comparação de personagens com animais através de uma montagem paralela e, particularmente, no final, o massacre dos trabalhadores em paralelismo com o abate de animais num matadouro são exemplos disso que acabaram por  ser objeto de critica.

 

Estão, no entanto, presentes em A GREVE, elementos que iriam estar presentes nas suas obras posteriores: um elemento detonador da ação ( no caso de A GREVE o suicídio de um trabalhador injustamente acusado de furto que levou à revolta dos outros trabalhadores),  imagens de forte impacto visual de tipo teatral, circense ou plástico, e um erotismo na exibição dos corpos jovens e fortes dos trabalhadores, em particular daquele operário de olhar desafiador que, com os braços cruzados, juntamente com ao seus dois colegas, mais velhos, em grave, fizerem parar as máquinas e que EISENSTEIN, exibição essa que repetiu nas obras posteriores, em particular naquele que é uma das suas obras cimeiras e uma obra cimeira da história do cinema, O COURAÇADO POTEMKIN, de 1925.

 

O COURAÇADO POTEMKIN relata um acontecimento real, a revolta, em 1905, dos marinheiros desse navio que era o mais moderno da frota de guerra russa. Como em A GREVE, há um acontecimento que leva ao motim dos marinheiros: o fornecimento de carne podre, com larvas, como alimento dos marinheiros, e a arrogância dos oficiais do comando e do próprio médico negando essa evidência. A tentativa de fuzilamento dos revoltosos falhou porque os revoltosos apelaram à solidariedade de classe dos seus irmãos mobilizados para os fuzilarem. A  morte de um marinheiro levou à decisão de tomada do controle do navio pelos revoltosos.

Porém, de modo diferente de A GREVE, o objetivo central de O COURAÇADO PONTEMKIN não era já chocar, mas seduzir. E essa sedução, que já estava levemente presente em A GREVE, nomeadamente na exibição do belo rosto desafiador do jovem operário por detrás da máquina parada, surge em agora com a exibição repetida, em grande plano, dos belos rostos e troncos nus dos marinheiros revoltosos. A mensagem é claramente erótica, mas ultrapassa o erótico: esses corpos significam a beleza e a juventude da revolução que haveria de triunfar em Outubro de 1917. E essa mensagem revolucionária estaria presente também na filmagem das massas lutando ou fugindo da repressão czarista: tratava-se da utilização no cinema do princípio marxista-leninista de que são as massas que fazem a História. A dialética entre o grande plano de rostos de homens e mulheres e o plano geral das massas faz nesta obra a conjugação perfeita entre o individual e o coletivo, como ensinava o marxismo-leninismo, e mostra a fé de Eisenstein no triunfo do povo oprimido.

 

A dialética da luz e da sombra usada de acordo com os ensinamentos de LEONARDO DA VINCI, o uso da montagem alternada de que são exemplos o carrinho de bebé que demora, oscilando, imenso tempo, a cair, ou  o contraste em marcha lenta e ordenada, com as espingardas em riste, dos soldados reprimindo a multidão desordenada e em fuga nas escadas de Odessa, o uso do branco como cor da violência repressora ( que, mais tarde, seria usado noutro grande filme de Eisentein, ALEXANDRE NEVSKY) e, acima de tudo, em nosso entender, a música de Vladimir Heifetz e Edmund Meisel potencializando a emoção dos espetadores em cada cena, fazem de O COURAÇADO POTEMKIN um objeto de admiração e estudo ainda hoje e o filme mais conhecido de EISENSTEIN.

 

Essa obra foi assim vista por POUDOVKIN, outro grande cineasta russo contemporâneo de  EISENSTEIN: “a explosão no ecrã era literalmente ensurdecedora”.

 

Tratando-se de um filme mudo, é uma enorme homenagem ao talento de Eisenstein. 

 

O COURAÇADO POTEMKIN teve, justamente, uma enorme êxito  não só em toda a Europa, particularmente na Alemanha, em Berlim, ( onde EISENSTEIN se deslocou com o seu grande diretor de fotografia  EDOUARD TISSÉ para a estreia do filme), mas também na América. E, ainda hoje,  as sequências das escadas de Odessa são reconhecidas como um dos momentos mais altos da História do Cinema.

 

Devido a este filme, e apesar de ser criticado por alguns dentro do regime soviético como formalista, EISENSTEIN receberia a encomenda de um novo filme para comemorar os dez anos da Revolução de Outubro. Dessa encomenda nasceria outra grande obra de EISENSTEIN, que é OUTUBRO.

 

Fotografia de Henrique Dória

 

Henrique Dória é advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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