Irão cumprir-se, no bem próximo ano de 2022, duzentos anos do Grito do Ipiranga, em que Pedro I, que haveria de se tornar imperador, proclamou a independência do Brasil em relação a Portugal. Tendo deixado de estar dependente de Portugal, nem por isso o Brasil passou a ser um país independente, pois apenas trocou a dependência de Portugal pela dependência dos Estados Unidos da América, que estiveram na origem dos dois golpes que marcam a política contemporânea brasileira, o golpe militar de 1964 que instituiu o terrorismo de Estado, e o golpe político-judicial de 2016 que instituiu a corrupção de Estado.
A primeira constituição brasileira, a chamada CONSTITUIÇÃO DA MANDIOCA, de 1823, que não chegou a entrar em vigor porque o imperador não a aceitou, impunha ao povo brasileiro os interesses dos latifundiários e esclavagistas. D. Pedro outorgou ao Brasil, em vez dessa Constituição, uma carta constitucional, que haveria de ser a constituição de 1824, que impunha o voto apenas dos ricos (sufrágio censitário) e protegia igualmente o poder dos latifundiários.
Essa Carta Constitucional haveria de ser substituída, em 1891, com a proclamação da República, mas tudo na sua essência permaneceu igual: se os primeiros constituintes brasileiros fizeram a CONSTITUIÇÃO DA MANDIOCA, os constituintes de 1891 fizeram a CONSTITUIÇÃO DOS CAFEZEIROS, destinada a proteger os interesses dos latifundiários do café e do leite, e o poder dos chamados coronéis, titulo dado pelos políticos aos latifundiários que mandavam numa região, em troca dos favores políticos dos coronéis aos políticos do Rio de Janeiro. Era a política de café com leite, que instituiu o VOTO DE CABRESTO, em que os coronéis impunham ao povo o voto no seu candidato, quer através de favores quer, sobretudo, através de ameaças.
As constituições que se seguiram ao fim da chamada República Velha, não mudaram muito em relação à Constituição de 1891, mantendo, no fundo, o poder económico dos latifundiários do café e do leite, com uma pequena mas significativa alteração da Constituição de 1967, a constituição dos militares golpistas que, a pretexto de combaterem o comunismo instituíram uma ditadura sanguinária e industrializante que, mantendo o poder dos coronéis, levava à modernização da agricultura latifundiária e provocava e emigração de milhões de brasileiros do campo para as cidades, onde iriam construir as favelas.
A Constituição de 1988, a chamada CONSTITUIÇÃO CIDADÃ, procurou democratizar o regime, mas copiando o sistema político americano, com uma constituição longa e confusa, presidencialista e que tornava o exercício do poder uma fonte de corrupção e de instabilidade, já que o sistema permitia que no parlamento entrassem mais de 30 partidos, como agora sucede. Por sua vez, o Presidente da República, em vez de unir a nação era criador de divisão pois exercia o poder executivo e tinha de sujar a sua imagem nos jogos políticos para poder governar.
Foi nesses jogos de poder que um individuo do calibre de Jair Bolsonaro, ignorante, corrupto e golpista, que pretende o retrocesso do Brasil ao regime confessional da Carta Constitucional de 1824, agora não com a Igreja Católica como confissão do Estado, mas com essas grandes burlas que são as igrejas neopentecostais como religiões do Estado.
Porém, não pretende só isso, quer forçar o regresso ao VOTO DE CABRESTO, já não através dos coronéis que foram perdendo o seu poder, mas através das milícias, o mundo do crime de que Bolsonaro é o grande protetor. É assim que deve ser entendida a ameaça implícita de recusa de abandonar o poder feita por Bolsonaro caso haja uma pretensa fraude eleitoral, insistindo que nas eleições de 2014 e de 2018 houve fraude, no que foi desmentido até por Aécio Neves, o candidato da direita derrotado por Dilma Roussef em 2014.
Para impedir a pretensa fraude eleitoral com o voto eletrónico, Bolsonaro pretende que se regresse ao voto em papel depositado numa urna, certamente com o nome do candidato escrito manualmente pelo eleitor, como na Constituição de 1891. Neste momento, mesmo com o secretismo do voto eletrónico, as milícias já conseguem estabelecer um certo controle de eleitor em eleitor, o que explica a eleição dos filhos de Bolsonaro e do próprio Bolsonaro, pelo menos como deputado. Porém, esse controlo é limitado.
Com o voto em papel, os escrutinadores, todos de confiança das milícias que não deixam entrar nas favelas quem elas não querem, teriam, então, o controlo total da votação nas favelas, e até fora destas, nomeadamente através de ameaças de represálias, incluindo assassinatos. Seria a segurança de futuro para as milícias e o clã Bolsonaro e seus associados.
Dada a mudança de orientação nos EUA, que são quem, na realidade, detém o poder no Brasil através da instituição militar aliada ao agronegócio e à finança, não está facilitado o golpe pretendido por Bolsonaro e os bolsonaristas, em particular as milícias. Ele terá de abandonar o poder face a uma derrota estrondosa por Lula da Silva que se anuncia. Não o fará sem sangue pois tem de seu lado as milícias que ele armou. Mas terá de entregar o poder porque os militares já se estão a distanciar dele, como o demonstra o comportamento do seu vice, o general Mourão.
Mas subsiste a instabilidade, fonte do labirinto em que se encontra o Brasil: com este sistema eleitoral e presidencialista, com a falta de autonomia do Supremo Tribunal Federal cujos membros são escolhidos pelo poder político, sobretudo pelo Presidente, o Brasil não sairá do labirinto em que se encontra em consequência duma constituição copiada da americana.
E se Lula da Silva não provocar a alteração da Constituição, com um sistema semipresidencialista de primeiro ministro suportado pelo parlamento, com um sufrágio que permita a governabilidade, nomeadamente através de uma cláusula barreira a partidos com menos de 5% dos votos, e com uma independência efetiva do poder judicial, o Brasil não sairá, verdadeiramente, do labirinto em que sempre esteve.
É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online InComunidade e da Rádio Transforma.