Cultura

Ecocardiodramas | Alberto Pereira

ECOCARDIODRAMAS

Ecocardiodrama IV

 

Os séculos repetem:

não existem catedrais

que escapem ao adultério do estio.

O ramo onde a clorofila lê a ave

é o mesmo ao qual o homem

pede o derradeiro autógrafo.

 

Mãe,

balada de Soljenítsin

no subterrâneo do teu vestido.

O peito como se alguém

o tivesse escavado.

Na pele uma cratera.

O cheiro fétido.

Os olhos nas funestas 

células que lavram.

 

O pavor nunca perdeu a auto-estima.

 

Avança como fábula réptil

que na paisagem sublime

encontra o bárbaro fôlego.

 

À minha frente a erosão maternal.

 

Ainda encostei o cantil de névoa

à surdez dos deuses,

mas só a infância 

não era clandestina.

O quarto, 

ultraje entre o açafrão e a pólvora.

 

Também a arte se eleva 

no mesmo território 

onde o terror prolifera.

 

Steiner lembra-nos esta foice:

 

A cultura que produziu Hitler

gerou também

Freud, 

Wittgenstein, 

Mahler, 

Rilke,

Kafka, 

Broch, 

Musil.

 

A génese criativa

licenciou-se na devastação.

 

Onde estava o Criador quando Estaline

descia o léxico GULAG sobre os corpos?

 

Não esqueças,

homens decantados 

de detritos altos

calçam magnólias ao mundo.

 

Ecocardiodrama V

 

O tempo projectara já

a última demão de garças

sobre o teu corpo.

 

O peito,

enevoada tela de Goya.

A pele,

peregrinação de cítaras findas.

Tinham as mãos

um atelier de erva longa

e o estômago 

a sinfonia decapitada.

 

Eram dias de incubares

nessa habitação

repleta de bactérias.

 

O corredor longo,

aceso de luzes baças.

Uma avenida cheia de pessoas

com batas cor de neve.

Olhares cor de neve.

Todas a desfilar como cactos.

 

Parecíamos náuseas nas suas gargantas.

 

Também eu 

tinha essa profissão

de Chevrolet branco 

abastecida por Hipócrates.

 

O relógio marcava

meia-noite nas aves.

E nós,

partitura de astros ensandecidos

como se não fossemos deste lugar.

 

Ninguém reparava 

no sândalo das tuas orações.

 

Devias ter ouvido Cioran

para aprenderes o feno celeste.

 

Sem Bach, a teologia 

seria desprovida de objectivo,

a Criação fictícia,

o nada peremptório.

Se há alguém

que deve tudo a Bach,

é seguramente Deus. 

 

A meio do corredor

um espaço perfumado a éter

e a constante valsa

do Chevrolet branco.

 

A doença aprendeu

a encadernar tufões no sangue.

Não lhe exijas

os Nocturnos de Chopin.

 

Já ouviste algum tumor tocar um bosque?

 

Ecocardiodrama VII

 

A infância,

um bouquet de colmeias no peito

e o sangue desenhado por Miró.

 

Ecocardiodrama VIII

 

Era um bairro 

com vozes cercadas pela urze.

Havia um velho que falava

como se semeasse muros.

 

Na arcaica taberna

entre as tábuas e o balcão,

a geada ocupava o diâmetro

das ruínas de Pompeia.

 

Por baixo do céu de zinco,

os copos navegavam

gargantas de mastro partido.

 

O fígado,

estojo de nuvens

onde a bílis escrevia

navios fermentados.

 

Era um homem

de videiras doridas.

A boca,

distante cisterna de pássaros.

 

A minha mãe

sempre disse:

nada é sublime

sem conhecer a queda.

Se procurares um Deus,

fá-lo na rua

mais decrépita da cidade.

Por vezes,

entre os dejectos

respiram as grandes

bibliotecas universais.

Um mendigo

pode ter Ficções

do calibre de Borges

ou recitar o escuro

como Celan.

Os que definham

têm sempre

ciclones por despir.

 

O mais belo discurso

proferido por excesso etílico,

ouvi-o, ela,

na taberna Elsinore.

 

“Na guerra

as armas têm fome

e as paisagens

estão sequiosas de pássaros.

 

Balas são pássaros.

 

Árvores são lugares

onde as balas

com melhor visão

pensam.

 

Na guerra

o músculo cardíaco

é o local que menos

suporta pássaros

e o cano de uma pistola

não serve apenas

para a locomoção da pólvora.

 

Na guerra

evaporei o incestuoso pacto

que mete a beleza no limbo.

 

Arrancar 

uma página de Hamlet.

Introduzi-la 

no cano com minúcia.

 

Disparar.

 

Atingir o inimigo,

não apenas com o projéctil,

mas com o fascínio.

 

Penetrar-lhe o sangue

com o castelo de Elsinore,

o suicídio de Ofélia

ou a traição de Cláudio.

Ver os estilhaços

de uma peça de teatro

colarem-se a um corpo

que se despede.”

 

Todos os dias,

o homem remava

uma frase de Adonis:

 

Não podes ser lanterna

se não levares a noite

às costas.

 

Já nada acende

o velho Shakespeare sírio.

 

O coração é uma lebre entre os escombros.

 

 

Alberto Pereira, escritor. Nasceu em Lisboa. Licenciado em Enfermagem. Pós-graduado na área Forense. Diplomado em Hipnose Clínica e  Medical Luohan Chi Kung.

Vice-Presidente do World Poetry Movement (WPM – Portugal).

Membro do PEN Clube Português.

Publicou os livros: O áspero hálito do amanhã (2008); Amanhecem nas rugas precipícios (2011); Poemas com Alzheimer (2013); O Deus que matava poemas (2015); Biografia das primeiras coisas (2016); Viagem à demência dos pássaros (2017, Portugal / 2022, Brasil); Bairro de Lata (2017, Brasil); Como num naufrágio interior morremos (2019, Portugal / Brasil); Neve interior (2021); Ecocardiodrama (2022) e Aforismos a 600 anos-luz (2022) – Bilingue – Português / Espanhol; os versos transformados em código binário e posteriormente em ondas de rádio, foram enviados por um braço robótico de Punta Arenas no Chile para a Nebulosa Saco de Carvão, situada no Hemisfério Sul, a 600 anos-luz da Terra, no âmbito do projecto ”Universal Poem” onde chegará em 2622.

Participou em colectâneas de contos e poesia. Tem obra traduzida para alemão, chinês, francês, grego, inglês, italiano, japonês, russo, sueco e turco. Está publicada no Bangladesh, Bolívia, Brasil, Chile, Espanha, França, México, Peru e Suíça. Foi distinguido com vários prémios dos quais se destacam: 1º Prémio no Concurso Literário Conto por Conto (2011); 1º Prémio no Concurso de Poesia Agostinho Gomes (2013); 1º Prémio no Concurso Literário Manuel António Pina – Museu Nacional da Imprensa (2013) e Menção Honrosa (2014, 2015, 2017, 2018, 2020); Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant´Anna (2018 e 2020), respectivamente com os livros, Viagem à demência dos pássaros e Como num naufrágio interior morremos; Menção Honrosa no Prémio Internacional de Poesia Natália Correia (2021) com o livro Ecocardiodrama; Galardoado com o Prémio Internacional Cesar Vallejo – Excelência Literária (2021) – Unión Hispanomundial de Escritores; Prémio de Literatura Clarice Lispector (2022) com o livro Neve Interior. Finalista do 21º Concurso de Contos Paulo Leminski – Paraná, Brasil (2010) e do Prémio Internacional de Poesia António Salvado (2021) com a obra Mulheres legendadas de Alzheimer |Inédito|.

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