Cultura

E se o que eu desejo ainda não tiver nome? Para Claude Monet e o Príncipe Michkin, a beleza salvará o mundo | Flávio Ricardo Vassoler

 

Abril de 2022.

Giverny fica a cerca de 1 hora e meia de trem, se tanto, de Paris.

 

 

 

Chego à casa e aos jardins do pintor francês Claude Monet (1840-1926) 1 hora antes do horário de abertura, que acontece às 9h30, então tenho tempo de tomar um café da manhã (pequeno almoço, em Portugal), no restaurante As ninfas, composto por um quiche de queijo acompanhado por uma geleia de frutas vermelhas que mais parece a tinta a óleo de Monet numa versão mais pastosa e açucarada.

 

Com um pequeno chafariz em sua esplanada, o restaurante As ninfas testemunha o pouso de uma legião de antibombardeiros: andorinhas, pintassilgos e pardais tentam demarcar seus territórios com o pólen etéreo de sua cantoria, até que, como um raio em céu azul, um véu de silêncio irrompe. Quando a elegância do beija-flor pousa no ar, sem heliporto, diante de um girassol, eu começo a entender por que Monet, como se tivesse um mapa do tesouro em mãos, converteu Giverny não numa procura, mas em sua descoberta. (Talvez tenha sido por isso que Pablo Picasso, certa vez, sentenciou: “Eu não procuro, eu acho”.)

 

Já no interior da casa e dos jardins de Monet, eu me dou conta de que minha vinda a Giverny fora prenunciada por uma epifania diante das aquarelas do pintor ocorrida pouco mais de 7 anos antes, no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova Iorque.

 

No último andar do MoMA, há uma sala ampla, por cujas paredes ovaladas se irradiam, como trepadeiras irmanadas a um muro, as mais singelas, benevolentes e coloridas aquarelas de Monet. Ao me ver envolto por tamanha bondade, eu senti a companhia do príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin, herói do romance O idiota (1869), do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). 

 

Ao nosso redor, cotidianamente, deparamos com pessoas, que, como nós, se sentem desconfiadas e apartadas dos demais. Não nos é difícil imaginar tipos cínicos e mentirosos, utilitários e pérfidos. Difícil, na verdade, é imaginar uma figura humana, cuja bondade seja não uma vala na qual despejamos recalque, ressentimento e revanchismo, mas uma mão aberta em palma para a amizade.

 

Fusão dostoievskiana de Jesus Cristo e Dom Quixote, Míchkin mescla, em suas atitudes, a solidariedade não condescendente e não competitiva do Messias (“Não julgueis para não serdes julgados”; “Aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra”) com o sonho messiânico do cavaleiro de La Mancha, que, ao ansiar pela permanência dos valores da reciprocidade cristã num mundo crescentemente saqueado pela lei da oferta e da procura, só faz ressoar que “a beleza salvará o mundo”. 

 

É assim que, ao invés de se vangloriar com títulos, propriedades e peripécias perante os demais, Míchkin escuta, entreouve e compreende. Quando ele redargui, seus conselhos e admoestações não pretendem reger o outro com a altivez de um pedestal. Míchkin fala como quem partilha o pão amanhecido de um sofrimento que também lhe é um velho conhecido.

 

Não sei dizer se Claude Monet chegou a ler Dostoiévski. (Meu saudoso pai João costumava dizer, sob a barba desgrenhada e com sua voz de trovão, que a busca por conhecimento é uma caridade que fazemos para nós mesmos.) Ainda assim, consigo discernir as pegadas do príncipe Míchkin entre as sombras projetadas pelos caramanchões dos jardins de Monet, junto a cujas hastes recurvadas em semicírculos, como mãos em concha a afagar, se espraiam flores e raízes em tamanha profusão, que sinto, como síntese revolta e colorida, a união primordial da vida.

 

 

As pontes e bonsais que Monet trouxe do arquipélago nipônico me remetem à versão japonesa do príncipe Míchkin no filme O idiota (1951), do diretor Akira Kurosawa (1910-1998). Para exprimir a inocência irmanada não à ingenuidade, mas à bondade, Kurosawa talvez tenha pedido a seu cenógrafo que maquiasse o príncipe Míchkin de modo a enfatizar suas linhas de expressão. Quando deparamos com seu semblante terno como um céu azul, sentimos a alegria da avó, que nos espera, risonha e com os olhos marejados, já com a mesa posta. 

 

Não basta dizer que Monet, da janela ampla e sobrelevada de seu quarto, podia contemplar as múltiplas cores de seus jardins como a decantação em pétalas do arco-íris. É preciso imaginar o cavalete de Monet, rente à laguna povoada por vitórias-régias, como um oráculo de um outro mundo (um mundo outro), um prenúncio da utopia. 

 

Como nós nunca vivemos em uma sociedade perfeitamente boa; como nós nunca soubemos contemplar e vivenciar a suma beleza, nossos ancestrais da Idade Média, a galope do chamado “argumento ontológico”, só faziam perguntar de onde tais noções de perfeição ética e estética, alheias à experiência humana, teriam vindo, senão de Deus, o Ser tido como integralmente bom e belo. 

 

Ao invés de buscar o belo e o bom em sua origem (supostamente) divina, como um jardineiro que cuida das raízes das flores monetianas como se abrigasse em suas mãos um pássaro frágil que quer alçar seu primeiro voo para além do útero do ninho, imagino o príncipe Míchkin, retratado por Claude Monet, como a encarnação trêmula de nossos sonhos e desejos voltados para o futuro. 

 

O príncipe Míchkin retratado por Monet é o horizonte infindo das aquarelas, que se propagam, com pinceladas gentis, como o fluxo circular e concêntrico de ondulações provocadas por uma pedrinha que uma criança (o filho de Monet?) atira na lagoa. 

 

A meu ver, o impressionismo de Monet não pretende, pura e simplesmente, representar/reapresentar a realidade. (Afinal de contas, a fotografia já o faz com uma fidelidade – há quem diga: com um servilismo – incomparável.) O impressionismo turva o limite e a fronteira das coisas – água e terra, verde e amarelo, claro e escuro -, porque, em essência, quando nós sentimos, quando nós transbordamos, somos anfíbios, policromáticos e barrocos. 

 

Não há delimitação do tempo com arame farpado – passado, presente e futuro para quem é tragado pela correnteza das lembranças e da saudade que, em Monet, deságua em pinceladas com a consistência de lágrimas. (Seria o sal das lágrimas o resquício daquilo que não conseguimos reconciliar?) 

 

Os 7 anos de distância entre meu transe epifânico com as aquarelas de Monet, no MoMA, e os jardins de Monet, em Giverny, não existem: o espaço-tempo desemboca numa jangada estacionada por Romeu e Julieta à beira de um bambuzal. Gigantes e esguias, as antissentinelas de bambu tremem – isto é, acenam – ao sabor do vento. O bambuzal se perfila, orgânica e organizadamente, não como um batalhão à espera da guerra, mas como testemunhas que resguardam o amor clandestino dos dois renegados dos clãs Montecchio e Capuleto.

 

A suma beleza dos jardins de Monet desafia o horizonte dos nossos afetos e da nossa capacidade de sentir. (Decifra-me ou devoro-te? Não. Decifra-me enquanto te devoro.) 

 

 

É tudo tão belo, é tudo tão bom, é tudo tão além, que chega a ser tangível a fé soterrada de nossa infância, a fé que o deserto de gelo do real vai exaurindo: do incêndio à tocha; da tocha à chama; da chama à brasa. Será que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) já esteve nos jardins de Monet? Será que Nietzsche caminhava sobre as vitórias-régias de Monet quando sentiu em si a centelha de um de seus mais lúdicos aforismos? “Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar”. 

 

É como se a escritora ucraniano-brasileira Clarice Lispector (1920-1957) nos ensinasse a sentir (a latejar!) a contrapelo do soterramento de nossos afetos; é como se Clarice Lispector assim sussurrasse para o príncipe Míchkin, depois de chorar nos jardins de Monet tentando acompanhar o trajeto errante de uma lágrima (a única que logrou transbordar) por seu rosto arado pelo tempo: “E se o que eu desejo ainda não tiver nome?”. 

 

Segundo os pragmáticos mais contumazes, no centro do arquipélago da loucura encontra-se a ilha da incapacidade de reconciliação com a realidade. Por esse prisma, os abolicionistas – isto é, aqueles que sonhavam com o trabalho livre e condigno – eram loucos antes do fim da escravidão. Por esse prisma, as feministas – isto é, aquelas que sonhavam com a igualdade de gênero, em seus primórdios, perante a lei – eram loucas antes do sufrágio universal. 

 

Ainda que o capitalismo neoliberal tenha reconfigurado (e embrutecido) as relações de exploração e ainda que a torpe desigualdade de gênero permaneça, em vários sentidos, em nossa época, a loucura pretérita de abolicionistas e feministas, não reconciliada com o horizonte (a masmorra) de expectativas de sua época, já clamava: “A beleza salvará o mundo”. 

 

Os pragmáticos mais contumazes apontam o dedo em riste para o príncipe Míchkin, filho de Dostoiévski e primo de Claude Monet, e sentenciam: “Mas e o mundo, Míchkin, o mundo salvará a beleza?”. Ao que Míchkin, inspirado pelo antiexército dos vagalumes que insistem em prolongar o crepúsculo nos jardins de Monet, só faz redarguir: “E se o que eu desejo ainda não tiver nome?”. 

 

Braga (Portugal), 18 de abril de 2022  

 

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber e psicanalista em formação, é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (Brasil), com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor do romance O evangelho segundo talião (nVersos, 2013); do livro de ensaios e aforismos Tiro de misericórdia (nVersos, 2014); da tese Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018); do livro de ficções, crônicas e ensaios Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019); e do romance de formação em diálogos Metamorfoses: os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021).

Canal no YouTube: www.youtube.com/c/FlávioRicardoVassoler

 

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