Poema X | Henrique Dória
O sonho matéria do corpo
Cabeça de criança animal que corre
Abre-se para a eternidade
Mas aqui é o império das aves
O instante entre
O Nada e o Nada.
Canta ave do Nada
Colibri do instante
Segura a lua com as tuas pupilas
E o sol com os teus lábios
E canta.
Anjos demónios
Folhas voando ensandecidas.
A pá vai revolvendo a terra
Vai abrindo valas
Vai tapando as entranhas
O esmeril vai afiando
A lâmina
Que irá cortar as asas dos anjos
E tudo é insignificante menos a lâmina
A pá
A mó da água
Que tudo move em direção à morte
Que tudo mói.
Relâmpagos antecipam o estrondo
Das nuvens contra as nuvens
Tudo túneis
Tudo ecos do céu
Sem fundo.
Águas brancas emendam-se
Com águas negras
O mar pensávamos que era o mar
Miragem nevoeiro ao longe
Derrubando velas
Ondas ondas ondas
Consomem o corpo
Tudo é menor dentro do espaço
Não há tempo
Sequer para a dor
Para a linguagem
Para a mulher que se ama.
Fere a febre
Move-se o magma
Vermelho e negro
A aranha sorri
Erguendo-se até ao teto
Os seus pés foram feitos numa fornalha
Em ferro escuro
A sua teia é o tecido do cosmos
Nos quatro cantos do quarto.
Ela abre os sete selos
Onde se guardam as línguas
De um vêm os cavalos brancos
De outro vêm os cavalos vermelhos
De outro vêm os cavalos negros
De outro vêm os cavalos verdes
De outro vêm o sangue da vingança
De outro vêm os sacos de crina
Do sétimo vêm as espadas e os cânticos
Que acompanham o Cordeiro.
As trombetas deitam o fogo e o enxofre
Diante do Cordeiro
As espadas expandem-se
O fumo do incêndio sobe
Pelos séculos dos séculos
Ardem casas de jaspe
De safira de calcedónia
De esmeralda de sardónica de cornalina
De crisólito de berilo de topázio
De jacinto de ametista
Do crisoprásio da esperança.
Fundações afundam-se
Ventos fustigam os juncos
Montanhas derrubam-se com estrondo
As aves não vêm de volta
E a aranha sorri nos seus quatro cantos.
É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e dois de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.