Cultura

Divisão da Alegria, de Raquel Nobre Guerra | Nuno Brito

 

 Subir por aquele Rapaz Acima

E chamar Deus à vontade de subir: 

 

A palavra “concreta” vem de crescer junto, conjuntamente, é o que fazem os melhores poemas, esse é o poder físico-mágico da palavra; basta dizer a palavra porta para algo se abrir. Basta dizer Eu para ser tudo aquilo que vive, concretamente: “a palavra é a minha quarta dimensão” (Clarice Lispector); com ela toco, agarro e aproximo dos olhos e da boca. A palavra pode abraçar ou repelir, podem tapar palavras com pó e entulho e torná-las automáticas como o nome de um animal ou de uma profissão servirem como um insulto, mas também as podem fazer renascer e dar um fundo diferente: escrever a palavra “Deus” numa parede de hospital, numa prisão numa igreja, numa bula de medicamentos, ou “chamar deus à vontade de subir” como no poema Trapézio de Raquel Nobre Guerra. 

 

É possível que certos poemas ensinem a cair, mas também é possível que outros nos deixem sem chão e ainda mais desarmados, subir é então uma vontade tão humana e partilhável como o risco da queda: a verticalidade é um traço central e imperante da poesia da Raquel Nobre Guerra, verticalidade em tensão, posta em risco: “partir as pernas ao poema”, “tempos ratos pedem pernas altas”, “trepar por esse rapaz acima” em que subir é um imperativo concreto, primeiro risco a correr: A Poesia de Raquel Nobre Guerra é um Trapézio e a poesia-trapézio de Raquel Nobre Guerra é feita de uma vontade intensa humana de subir: comunitária e partilhável, de uma vontade concreta de crescer junto: “para que a vida  / velha demais para receber novo batismo / não fique apenas em mim / a partir de agora falo para ti na primeira pessoa”, “Tenho saudades de quando a poesia era direta”, a poesia oração “está algo interior o planeta” que lembrará que as coisas se tocam, sempre, por dentro: “a poesia como a distância mais curta entre duas pessoas” (Lawrence Ferlinghetti), lembrando ainda que dizer eu é também dizer todos e que por isso: “quando acabar de falar nada disto será meu ou teu”, e que este “isto”: poema, matéria, vida, ou deus só tem sentido se subir e subir só tem sentido se for de todos, se com todos aprendermos o melhor e a todos dermos o nosso melhor: “o alheamento não valer uma vida” (Fernando Assis Pacheco). É também de coração cheio que a Raquel nos diz isto: “O amor eterno por favor que complete os seus vazios” como um início e expectativa, com o desejo e a oração de restaurar um assombro e o espanto, em títulos lindíssimos como este: “A Poesia é uma conversa a ter” e por isso “acende o mundo” como um “evento de título mínimo”: a poesia da Raquel conversa enquanto espaço aberto, inicial e contínuo, que pergunta e se abre ao outro – a quem se fala também na primeira pessoa e a quem se diz Eu – aquele com quem compartimos “tempos ratos” e o pão e com quem dividimos a alegria. Título de uma vitalidade ampla e profunda, por aproximações: 

 

    1. A Divisão da Alegria é um livro de opulência, de celebração, e as verdadeiras celebrações não gostam de excluir.
    2. O sorriso da Raquel é inteiro, por exemplo: A Raquel escreveu um poema um dia que se chamava “Um Trapézio”:
    3. A Felicidade de ler o livro da Raquel não se divide. Nem a poesia. Mas. Pode-se – Diz-nos de tantas e tantas formas a Raquel – dividir a Alegria toda do mundo por todas as pessoas do mundo. Dividir tudo por todos para todos ficarem com tudo é também tudo se multiplicar. A Divisão da Alegria é a expansão da alegria por todos. (Como a Repartição dos pães de Clarice Lispector)
    4. As verdadeiras celebrações não gostam de excluir.
    5. A Alegria é indivisível porque inteira como a Raquel. Como a unidade mínima divina de Giordano Bruno. Inteiro.
    6. Podemos dividir o Dia em partes como um livro: “Canções da manhã: Da mansarda ao mundo” / “Canções da Tarde: Biblioteca Nacional” / Canções da Noite: O Açúcar da Metempsicose” e dosear a alegria por todo o dia e por todo o livro. A Felicidade Inteira. Por todo o Livro:
    7. “A meio caminho para toda a viagem”

 

Divisão da Alegria é inteiro, e de tão inteiro, estremece vivo, quem diz Eu é aqui de uma opulência e de uma vida que estremece: a poesia-trapézio de Raquel Nobre Guerra ensina a cair, mostrando-nos um chão que nos humaniza e que é partilhável, humanamente divisível ou comunicante, mas dá-nos a ver também mais claramente que a poesia ensina a subir e que nisso é uma forma de crescer juntos, nisso a poesia da Raquel Nobre Guerra é concreta, afirmando: “Aqui está tudo o que vês”: “Não estou prestes a cair nem a subir / sou o mesmo que tu há mil anos a sós / com as estrelas e um coração de geleia” / desmistificando ideias como estilo pessoal e a apologia de um génio individual a poesia de Raquel Nobre Guerra mostra-nos um Eu mais profundo, partilhável, nítido e intenso: “Aqui está tudo o que vês / a minha primeira e última vontade / dobrada ao meio aberta para ti.”. um Livro necessário, cheio, vivo.

 

Nuno Brito, 2022.

Fotografia de Nuno Brito

 

Nuno Brito nasceu no Porto em 1981.  É autor dos livros de poesia: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015) e O Desenhador de Sóis (2017).

É leitor do Instituto Camões na Universidade da Califórnia em Santa Barbara onde vive desde 2015 e onde obteve o Doutoramento em Literaturas Brasileiras e Portuguesas, foi professor de Literatura Portuguesa na Universidade Nacional Autónoma do México onde viveu entre 2012 e 2014. 

Foi editor da revista literária Cràse e publicou em diversas antologias de poesia em Portugal, Espanha, México e Grécia, entre as quais a Antologia da Jovem Poesia Portuguesa (Atenas, Valkixon, 2021), a Antologia Lluvia Oblicua: Poesía Portuguesa Actual. (México: Círculo de Poesía, 2018), O Binómino de Newton e a Vénus de Milo: Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa, organização de Vasco Graça Moura e Maria Maria Bochicchio (Lisboa: Aletheia, 2011) e Antologia Jovens Escritores 2008 (Lisboa, Clube Português de Artes e Ideia). Foi distinguido por duas vezes com o Prémio da Associação de estudantes da Faculdade de Letras do Porto na categoria de Poesia e Conto e foi selecionado para a Mostra Jovens Criadores (Literatura) 2008 em Lisboa.   É coordenador editorial juntamente com Maria Bochicchio da colecção Novíssima da editora Exclamação. 

Ode Menina é o seu quarto livro publicado pela editora Exclamação e reúne textos escritos entre 2018 e 2021, assim como alguns textos publicados anteriormente em livro.

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