Poesia & Conto

Dez poemas | Geraldo Lavigne de Lemos

ecrã

como um vagalhão,

assoma a cólera anacrônica:

ferrugem que encobre a lâmina republicana,

corrói a têmpera democrática

e esgarça tecidos sociais

mortificados.

falsas litanias ressuscitam

vetustos […]ismos. entregam grilhões

e bolas de ferro aos infantes. o pranto

ocorre a reboque do tempo. o pesar

será uma estação duradoura.

quem ler este poema no futuro

saiba que cruzamos um oceano a nado

segurando sapatos de sal.

haveremos de ficar e resistir e reconstruir

a Pindorama, a Terra Brasilis, o nosso país.

                       ***

paradigma pós-moderno

desperto a verdade

desacreditada.

a hipótese

toma o lugar

da prova.

sem experiência testada,

o interlocutor rechaça a ciência

com uma paródia mal elaborada.

eu grito que

derrube um paradigma de Kuhn,

afasto sofismas.

na deep web sobrevivem

o Kraken, o Octopus e o Behemoth.

regularmente sobem vinte mil léguas

e se alimentam do obscurantismo.

                                                 ***

o dia da mentira

no dia 1º de abril de 1964 contaram uma mentira

que durou 20 anos e 11 meses

vivemos o rescaldo dessa tragédia

e já ventilam outras petas

como a de uma revolução que nunca revolucionou

(mas que causou 434 mortes e desaparecimentos

reconhecidos pela comissão nacional da verdade

afora os relatos de pelo menos 1.918 prisioneiros políticos

torturados por 283 formas diferentes descritas

e estimativas que ultrapassam 20.000 pessoas)

a mentira tem perna curta

e vida longa (como teve a de 64)

que os ratos continuem nos porões,

os choques nos quartéis, as pimentinhas nos molhos, os

dragões nas lendas, as geladeiras nas cozinhas e

os afogamentos nos acidentes, não em nossos corpos e

cabeças.

basta de história mal contada.

                        ***

o Brasil

enquanto o Brasil for o país do futuro,

ele não passará de um clichê sobre o tempo,

sobre a causa de toda ansiedade,

de não viver o agora,

pois, quando o Brasil do futuro vier a ser,

já não será a hora

o Brasil terá sido

o país do futuro

que chegou no fim da festa

e os convidados já estavam bêbados

ou tinham ido embora

               ***

tratado do corvo

carrascos da vida hostil,

corvos planam em círculos sobre o povo

– e a gente teima vivo aqui embaixo.

eles quiseram o nosso país,

mas nunca o tiveram.

eles tramaram contra o nosso poder,

mas nunca o terão.

o Brasil profundo continua inalcançável

aos carniceiros da nação.

                   ***

aquartelado

insone enfrento a noite que se avizinha

cubro-me de Rádio-226

em sinal in extremis

(devaneio de estrela cadente)

e assinalo territórios utópicos

se capturado

torno-me engodo no bojo

: destruo no âmago a sociedade uniformizante

                         ***

perseverar

não capitular

até cair do ipê a

derradeira flor

                       ***

incorpórea

a poesia antecede o poema

e a matéria jamais a conhecerá.

a inflexão da poesia

sobre o corpo tombado,

o poema.

mil poemas lançados ao alto,

cinco mil cairão,

a poesia.

o suor

e a lágrima

do poema

dizem carregar a poesia

em vão.

                  ***

literatura

o projétil que a literatura lança

atinge o que a matéria não alcança

nesse crime óbvio

o autor carrega a pena

: mata o velho corpo

e ressuscita a alma plena

                    ***

o efeito da poesia

silêncio aqui,

mas fez barulho por dentro:

    eu li poesia.

Fotografia de Geraldo Lavigne de Lemos

Geraldo Lavigne de Lemos é poeta e advogado, autor de seis livros de poesia, sendo Poemas furta-cores (Editus, 2018) e Poética da Existência (Editora Patuá, 2019) os dois últimos. Foi coorganizador da antologia Poesia de Aluvião (Editora Patuá, 2022).



Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
2
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.