ecrã
como um vagalhão,
assoma a cólera anacrônica:
ferrugem que encobre a lâmina republicana,
corrói a têmpera democrática
e esgarça tecidos sociais
mortificados.
falsas litanias ressuscitam
vetustos […]ismos. entregam grilhões
e bolas de ferro aos infantes. o pranto
ocorre a reboque do tempo. o pesar
será uma estação duradoura.
quem ler este poema no futuro
saiba que cruzamos um oceano a nado
segurando sapatos de sal.
haveremos de ficar e resistir e reconstruir
a Pindorama, a Terra Brasilis, o nosso país.
***
paradigma pós-moderno
desperto a verdade
desacreditada.
a hipótese
toma o lugar
da prova.
sem experiência testada,
o interlocutor rechaça a ciência
com uma paródia mal elaborada.
eu grito que
derrube um paradigma de Kuhn,
afasto sofismas.
na deep web sobrevivem
o Kraken, o Octopus e o Behemoth.
regularmente sobem vinte mil léguas
e se alimentam do obscurantismo.
***
o dia da mentira
no dia 1º de abril de 1964 contaram uma mentira
que durou 20 anos e 11 meses
vivemos o rescaldo dessa tragédia
e já ventilam outras petas
como a de uma revolução que nunca revolucionou
(mas que causou 434 mortes e desaparecimentos
reconhecidos pela comissão nacional da verdade
afora os relatos de pelo menos 1.918 prisioneiros políticos
torturados por 283 formas diferentes descritas
e estimativas que ultrapassam 20.000 pessoas)
a mentira tem perna curta
e vida longa (como teve a de 64)
que os ratos continuem nos porões,
os choques nos quartéis, as pimentinhas nos molhos, os
dragões nas lendas, as geladeiras nas cozinhas e
os afogamentos nos acidentes, não em nossos corpos e
cabeças.
basta de história mal contada.
***
o Brasil
enquanto o Brasil for o país do futuro,
ele não passará de um clichê sobre o tempo,
sobre a causa de toda ansiedade,
de não viver o agora,
pois, quando o Brasil do futuro vier a ser,
já não será a hora
o Brasil terá sido
o país do futuro
que chegou no fim da festa
e os convidados já estavam bêbados
ou tinham ido embora
***
tratado do corvo
carrascos da vida hostil,
corvos planam em círculos sobre o povo
– e a gente teima vivo aqui embaixo.
eles quiseram o nosso país,
mas nunca o tiveram.
eles tramaram contra o nosso poder,
mas nunca o terão.
o Brasil profundo continua inalcançável
aos carniceiros da nação.
***
aquartelado
insone enfrento a noite que se avizinha
cubro-me de Rádio-226
em sinal in extremis
(devaneio de estrela cadente)
e assinalo territórios utópicos
se capturado
torno-me engodo no bojo
: destruo no âmago a sociedade uniformizante
***
perseverar
não capitular
até cair do ipê a
derradeira flor
***
incorpórea
a poesia antecede o poema
e a matéria jamais a conhecerá.
a inflexão da poesia
sobre o corpo tombado,
o poema.
mil poemas lançados ao alto,
cinco mil cairão,
a poesia.
o suor
e a lágrima
do poema
dizem carregar a poesia
em vão.
***
literatura
o projétil que a literatura lança
atinge o que a matéria não alcança
nesse crime óbvio
o autor carrega a pena
: mata o velho corpo
e ressuscita a alma plena
***
o efeito da poesia
silêncio aqui,
mas fez barulho por dentro:
eu li poesia.
Geraldo Lavigne de Lemos é poeta e advogado, autor de seis livros de poesia, sendo Poemas furta-cores (Editus, 2018) e Poética da Existência (Editora Patuá, 2019) os dois últimos. Foi coorganizador da antologia Poesia de Aluvião (Editora Patuá, 2022).