

Poesia se ensina ou é um dom? Entendo que é uma linguagem, um código que se ensina e se aprende, porque todos os seres racionais possuem potencialidade para tal, com variações de facilidade/dificuldade. Aprende-se como se aprende a dançar, cantar, desenhar, pintar, fazer objetos e contas, ler e escrever. É como aprender uma língua estrangeira. Mas não tão estrangeira assim, porque o tijolo da poesia é a palavra. E com ele construímos nossa comunicação cotidiana em todos os níveis. Essa abrangência comunicativa da palavra a coloca num alto nível de exposição. Alvo e objeto de um exercício de desmatamento que tem início na primeira infância.
Nessa fase, a fala de uma criança expressa com naturalidade e vigor, coisas do real e do imaginário. O que ela pensa, sente, vê, indaga, teme, admira, requer, rejeita. Vai se expressando assim, em total liberdade. E vai se tornando inconveniente com esse deslimite. É a fala em estado de naturalidade poética. Ou de poeticidade espontânea. Aí começam as advertências, a censura, os bloqueios. O desmatamento. No fim da primeira infância, os facões e as motosseras terão concluído o seu trabalho. Com a implantação da palavra racionalista e instrumental.
Antes, a palavra espiral e arcoirisada, indo abaixo dos pés, além da cabeça e sem limites laterais, “girando, recolhendo / todas as faíscas da vida”. Agora, a palavra que vai somente da boca à testa, encerrada em quadrados, círculos, elipses, triângulos. Sem chegar às instâncias do coração, do estômago, da libido, dos pés e das raízes. Sem ir acima da cabeça. Sem ultrapassar as delimitações laterais. E esse desmatamento não é só antipoético. É antiartístico em geral. Também se estende à domesticação dos movimentos do corpo, e ao desenho, entre outros. Combinando a repressão direta e a desestimulação que atrofia. Mas os facões e as motosseras se concentram na palavra poética, por ser ela mais facilmente usada na comunicação e na expressão dos seres racionais, tornando-se assim mais incômoda ou perigosa.
O ensino da poesia, como linguagem expressiva e construtiva, consiste em recuperar a essência da palavra livre dos primeiros anos, agora devastada. Trata-se de um reflorestamento. Uma ação consciente para libertar a palavra das prisões geométricas, encerrada em figuras fechadas, restaurando a sua condição original de liberdade e abrangência. É acordar a bela, adormecida pelo elixir de racionalismo, preconceito e repressão contra os vôos livres. Trata-se de uma ressensibilização. Um reencontro com as raízes. O retorno à palavra antenada com as vibrações do ser. À palavra integral.
A partir desse contato, no processo de desbloqueio, as águas da poesia se libertam em olhos d’água. Minando em uns. Jorrando em outros. Riachos e rios de poesia alargando o mar da vida. Estimular esse reflorescimento é o primeiro esforço a ser empreendido no ensino da poesia. E na onda da necessidade de construir unidades expressivas, textos poéticos, vem a técnica. Assim como recorremos à panela, ou à assadeira, ao forno ou à churrasqueira, para preparar o prato condizente com os alimento que temos nas mãos.
Se a técnica for posta em primeiro lugar, a teoria, as regras, os históricos e descrições de escola, estilo, forma, época, recursos, figuras, estaremos recorrendo à antipoesia no ensino da poesia. O estudo de conceitos, regras, metro, rima, metáforas, metonímias, “enjambements”, assonâncias, aliterações e adjacências, não viceja poesia em ninguém, embora seja interessante como ilustração.
O ensino da poesia não é diferente, na essência, dos outros ensinares da vida. Pois aprendemos a andar, andando. A falar, falando. A andar de bicicleta, ralando os joelhos. A cozinhar, pondo a panela no fogo. Então, para poetizar, poetizemos. É simples. Sabendo nada ser tão complexo como navegar no complexo e aportar no simples. E sabendo também que, quando se chega aí, tudo se aclara. Assim como tirar a venda dos olhos. Ver a luz no fim do túnel. A sala acesa na chegada. Ter a surpresa boa.
Trata-se então de retomar conscientemente o fio da palavra poética, agora com o domínio do código, e desembaraçar o novelo. Reflorestando a terra devastada com sementes e mudas. Acompanhando na seara o nascimento de árvores, flores e frutos poéticos. Assim se deve ensinar o poetês.


Fotografia de Marcelo Mário de Melo
Marcelo Mário de Melo é jornalista, escritor e ex-preso político do Brasil. Nasceu em Caruaru, no interior do estado de Pernambuco, e veio para o Recife em aos nove anos. Escreve poemas, histórias infantis, minicontos, textos de humor e teatro e notas críticas.
Vê a elaboração poética como o olhar que mergulha e voa, o espirarco-íris de portas abertas e andantes, sintetizando o pensentir humano nos mergulhos introspectivos, nas interações sociais e nas viagens cósmicas.
Tem diversos livros publicados, de literatura e jornalismo, sendo o último deles o Literavida Historias e Casos.