Cultura

Crianças: pequenas máquinas de guerra III | Clécio Branco

Estamos seguindo o texto anterior, onde falávamos do “lugar” como ponto de partida da infância. Trata-se de uma reflexão filosófica da “política” das crianças em Gilles Deleuze e Félix Guattari.

 

 Tal lugar só é útil nesse sentido; como ponto de partida, ele é para ser abandonado em função dos “trajetos essenciais para a atividade psíquica”. Essa atividade política não depende tanto de deslocamentos espaciais; depende menos do que de meios. Os deslocamentos são funções, sujeito e objeto, eles acontecem de uma identidade a outra.

 

A segmentaridade compõe uma longa linha de deslocamentos, de um espaço a outro, da casa à escola, da casa à igreja para o culto etc.1 Nesse caso da segmentaridade, os espaços existem como funções primeiras, são fixos, os pais estão em primeiro lugar – são eles que definem como sentar, como dizer no momento em que estiver autorizado, independentemente dos meios em se situam.

 

 Mas as crianças querem ocupar o meio entre as coisas, e as coisas só são importantes porque também servem como meio no meio. É o mesmo que Deleuze diz sobre a arte, a pintura ou a escultura. A arte é, antes de tudo, a arte de cartografar.

 

(…) Ela ordena caminhos, ela mesma é uma viagem. Uma escultura segue os caminhos que lhe dão um fora, só opera com curvas não fechadas que dividem e atravessam o corpo orgânico, só tem a memória do material (…). Carmen Perrin limpa blocos erráticos de verdor que os integra à submata, devolve-os à memória da geladeira que os trouxe até aqui, não para assinar-lhes a origem, mas para fazer seu deslocamento algo visível.2

 

A arte da guerra também passa por domínios da cartografia.

 

Em O Covil, Kafka distribui víveres por todos os caminhos e bifurcações dos túneis, mas é tudo uma estratégia de meios para facilitar a fuga. 

 

Nunca se sabe quando ou por onde o inimigo vai atacar. O meio é composto de qualidades, substâncias, potências e acontecimentos fundamentais. No caso Hans, a rua e suas matérias, como a calçada, os ruídos dos comerciantes, os animais, como os cavalos atrelados e seus dramas (escorregar, cair, ser chicoteado).

 

O trajeto se confunde não apenas com a subjetividade daqueles que percorrem um meio enquanto ele se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade do percurso e do percorrido. Ele se confunde com seu objeto quando o próprio objeto é movimento.3

 

Os pais são um meio, a rua é um meio; um meio é aquilo que a criança percorre e no qual traça um mapa aberto à entrada de outros meios. Objetos e parentes são coordenadas de tudo aquilo que é investido pelo inconsciente. 

 

As crianças estão sempre mergulhadas no meio que percorrem. Ilusão dos pais pensar que são a figura mais importante; eles são também meios entre meios, são facilitadores de aberturas e fechamentos de novos meios. O mundo não deriva dos pais, os quais são apenas meios de entrada no mundo: posição cartográfica de Deleuze/Guattari, em oposição à posição arqueológica da psicanálise.

 

O pequeno Hans tenta, constrói um rizoma com a casa de sua família, com o prédio, a rua, e a obstrução dessas linhas (interferência danosa do pai e de Freud) só poderia ser combatida no “devir-animal” do menino, que aparece na forma de sintomas fóbicos. 

 

O desejo real de uma criança de fazer agenciamentos com outros, por inferência do analista, torna-se um segredo sujo. É “necessário” que esse desejo de ocupar espaços na rua esconda outra coisa. “Freud não entende nada de agenciamentos, nem de movimentos de desterritorialização que os acompanham (…). Ele só conhece o território familiar.”4 Quando se admite na psicanálise a existência de outro agenciamento, é para ser representativo da família. Todas as amantes desejadas são espécies de avatares do desejo pela mãe.

 

Por isso, o Anti-Édipo é voltado contra essa figura, que pretende atingir a totalidade e cujo desejo secreto permanece dirigido ao que há de mais íntimo na família, a mãe, cuja satisfação do desejo é condenada ao trágico fracasso, da culpa e do castigo. Contra o aparelho edipiano de repressão e regressão, os movimentos recursivos que formam a máquina desejante operam por agenciamentos e rizomas. 

 

Tal máquina é definível através de sua capacidade de estabelecer conexões infinitas, que se estendem por todos os lados, em todas as direções.

 

Sobre o medo da castração, Deleuze/Guattari consideram que Hans jamais manifestou medo algum de que lhe cortassem o pênis; quanto a isso, o menino respondeu com indiferença. 

 

As crianças não se interessam pelo órgão genital com suas funções sexuais, mas sim por seu funcionamento, que foi o caso de Hans. Ele faz do “pipi” um agente coletivo de enunciação, o “fazer-pipi” estendido aos demais membros da família e da comunidade humana e animal. 

 

“Evidentemente, as meninas têm um faz-pipi e as mamães também, pois elas fazem pipi: existem sempre os mesmos materiais, mas simplesmente em posições e conexões variáveis.”

 

A teoria em questão vai relacionar a identidade de materiais (fazer-pipi, a irmãzinha, a mãe, as meninas da vizinhança, o sexo etc.) a seu plano de referência: plano de imanência, de consistência ou de composição. 

 

Essas variações de posição e conexão com as multiplicidades dependem dos agenciamentos que a teoria estabelece. A máquina interpretativa se vê atrelada ao sistema-raiz de Édipo e à sua constelação, desprezando o fato de que os indivíduos se encontram em múltiplos agenciamentos, “(…) microcontágio ‘político’, em vez de uma macrofiliação ‘privada’”.6

 

A psicanálise brotou do solo da psiquiatria: ambas pretendem ascender ao estatuto da ciência que se vê subsumida nas raízes da representação.7 Assim, a psiquiatria e a psicanálise se viram em dificuldades para entender os delírios sem déficit cognitivo, a esquizofrenia como processo essencial da vida que escapa aos ditames de suas teorias, de uma interioridade mental, pois se trata de algo fora de qualquer psiquismo.

 

(…) ele é como o de fora de onde vem todo desejo (…). Já é assim na criança, que maquina seu desejo como o de fora, com a conquista do de fora, não em seus estágios interiores, nem sob estruturas transcendentes. Mais uma vez o pequeno Hans: há a rua, o cavalo, o ônibus, os pais, o professor Freud em pessoa, o ‘faz-pipi’ que não é nem um órgão nem uma função, mas um funcionamento maquínico, uma peça da máquina.8

 

A psicanálise parece ir bem até o momento em que esbarra com as velocidades de leis próprias. Como uma teoria, presa como está em seus próprios limites, poderia interpretar “brumas, pestes, vazios, saltos, imobilizações, suspenses, precipitações”.9

 

Notas

 

1 Deleuze e Guattari tomam a análise de Foucault – por ele denominada de microfísica do poder e que se encontra em Vigiar e punir. O poder também tem suas formas de miniaturizar e entrar em imitações moleculares, exercido em detalhes espalhados por espaços “abertos” ou fechados, para exercitar neles a disciplina. Igualmente ocorre na escola, no exército, na prisão etc. (FOUCAULT, M., Vigiar e punir, pp. 140-207).

 

2 DELEUZE, G., Critique et clinique, p. 87.

 

3 DELEUZE, G. Critique et clinique. Paris: Les Editions Minuit, 1993, p. 81 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 73).

 

4 DELEUZE, G., op. cit. p. 81.

 

5 Idem, p. 82.

 

6 DELEUZE, G. e PARNET, C., Dialogues, p. 102.

 

7 Desde Aristóteles, o mundo ocidental tem seguido os princípios lógicos da filosofia que se entendem por “representação” ou clássicos”. Essa lógica se baseia na lei da identidade, que afirma  que A é A; na lei da contradição (A não é não-A) e na lei do meio excluído (A não pode ser A e não-A, nem A não-A). Aristóteles explica sua posição muito claramente na seguinte sentença: “É impossível para a mesma coisa ao mesmo tempo pertencer e não pertencer à mesma coisa e ao mesmo respeito; e quaisquer outras distinções que possamos acrescentar para enfrentar objeções dialéticas devem ser acrescentadas. Este, pois, é o mais certo de todos os princípios…” (Aristóteles, Metafísica).

 

8 DELEUZE, G. e PARNET, C., Dialogues, p. 114.

 

9 Idem, p. 113. 

 

Fotografia de Clécio Branco

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

 

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