Cultura

Berro | Leonardo Almeida Filho

 

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“Berro” de Leonardo Almeida Filho

 

“Berro” reúne contos escritos nos últimos cinco anos e que têm como motivo o silêncio avassalador sobre a realidade de homens e mulheres tornados invisíveis pelo mercado, pela sociedade de uma forma geral. São trabalhadores pobres de um país periférico em seu dia a dia de violência, carência e desesperança. Dividido em três partes, o livro retrata, na primeira delas, “O que se ouve por dentro”, o drama cotidiano de imigrantes (Os silêncios), de sem terra (Os comedores de batata), a violência urbana (O capador, O Bebê de Maria, Noite de Natal), o abuso infantil (Confissão) . A segunda parte do livro, “A língua universal”, enfoca a questão da arte e sua relação com os ruídos e silêncios do mundo em contos como “O alfabeto do silêncio”, que conta a história da descoberta de um livro mítico; “O caderno vermelho”, que narra a descoberta, por um marido, da verdadeira face de sua mulher recém-falecida; “O livro de Herculano”, que discute a relação promíscua entre arte e consumo; “Réquiem”, um conto de homenagem a um jovem e talentoso autor suicida e “Inventário”, a senectude revisitada. Na última parte do livro, “O berro de todas as línguas”, os contos trafegam pela mitologia contemporânea em tempos pós pandêmicos, em alegorias de um país em frangalhos (História do Brasil para Hermeneutas), o corpo devastado (Corpo tomado), o desejo castrado (O sorriso da Gioconda), a loucura e a sanidade (A grande muralha), o realismo mágico (O grande Jacommini), o metaverso alegórico e a homofobia (Os jilófilos-jilófagos, A festa dos cães e Os anjos), a depressão (Antes e depois da chuva), o não-ser na perda da memória (Uma vela queimando numa capelinha) e o grande berro que é a própria literatura (O berro).

 

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O mundo é uma grande lavoura de ruídos, mas o que mais incomoda é mesmo o catálogo de silêncios. É sobre esse dolorido silêncio que tratam os contos desse “Berro”, de Leonardo Almeida Filho. A dedicatória aponta o caminho das pedras: “aos invisíveis”. Quem são eles, que não vemos ou, pior, como parece apontar as histórias deste livro, que fingimos não ver? Os desvalidos, os abandonados, os humilhados, os explorados, os perseguidos, os injustiçados. Mulheres, negros, gays, imigrantes, nordestinos, desempregados, são os tais invisíveis sobre os quais impera um silêncio absurdo, cruel, devastador. A mudez do mundo sepultando sonhos, esperanças. O que sobra é aquele desejo de denunciar todas as mazelas e injustiças, expor toda a maldade manifesta, desmontar a engrenagem dessa máquina insensível do grande mercado que a tudo e a todos devora. Dentro dos narradores dessas pequenas histórias, pulsa a vontade de emitir um enorme berro, um gigantesco grito ensurdecedor, um terrível som de revolta e resistência, mas tudo esbarra, como canta o vate paraibano, “no mulambo da língua paralítica”. Este livro reúne 25 pequenas histórias que nos deixam num silêncio triste sobre as coisas, alimentando em nós, mais que o desencanto, o momento exato do Berro que se aproxima.

 

Luiz Carlos Mariano

Escritor

 

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Trecho do conto: O sorriso da Gioconda

 

Dia desses, para meu espanto, minha mãe fez um comentário que me pegou de surpresa.  Estávamos assistindo a um filme qualquer na televisão quando disse, sem qualquer intenção, que minha avó adorava sovacos peludos. Assim, do nada, ela me veio com essa. Sua avó adorava homens com sovaco cabeludo. Como assim? Ela me dizia que gostava muito de ver os sovacos dos jogadores de futebol quando trocam de camisa no fim de uma partida. Sério? Sim, tua avó dizia que homens com o sovaco cabeludo têm jeito de serem mais homens que os demais, achava-os lindos. Pode uma coisa dessas? Sorria minha mãe um sorriso ingênuo ao relatar a peculiar preferência de minha avó. Incrédulo com aquela informação, peguei-me, estupefato, naquele momento, sendo apresentado a uma mulher que eu nunca imaginaria viver naquela que se fora há alguns anos. Mas porque essa fixação por axilas recheadas de pelos? Perguntei-me, tentando lembrar, em vão, algo que, no comportamento de minha avó, pudesse denunciar esse fetiche. Durante toda a sua vida, não notei absolutamente nada que pudesse apontar para essa predileção. Mulher recatada, muito católica, tornou-se com o passar dos anos, cada vez mais beata. Imaginá-la admirando sovacos cabeludos era simplesmente impossível. Minha avó? Nunquinha. O fato de sentir-se atraída por sovacos peludos chocou-me, não pelo objeto do gostar, mas por vir a derrubar a imagem idealizada que eu trazia de uma certa mulher, uma idosa cheia de carinhos e afeto, pura doçura e meiguice, sem desejo ou libido, quase santa, e colocar em seu lugar uma outra mulher que, percebo agora, viveu escondida naquela. Presumo que, em momentos só seus, aquela doce mulher imaginava o cheiro da axila de Pelé ou Garrincha ou de qualquer homem de sovaco cabeludo, um estivador ou trabalhador braçal, e nesses momentos se sentia feliz. Sabe-se lá. 

 

Me pego a pensar também em quantas avós existem no mundo, exatamente iguais à minha. Gente de carne, osso, desejo, gozo, vontade, que atravessou sua existência em silêncio, aprisionando a carne, o osso, o desejo, o gozo, a vontade. Gente castrada como a minha avó. Lembro daquela cândida figura ajoelhada nas missas dominicais e nas eternas novenas. Olhos fechados, lábios movendo-se em silêncio, rezando preces intermináveis, desfiando Salve-rainhas, Pai-nossos e Ave-Marias em cândida contrição. Era decididamente uma mulher de fé. Mas, como todos nós, era muito mais que isso. Parte dessa mulher escapou a todos os olhares, obviamente por medo da censura que, inevitavelmente, se abateria sobre ela, uma mulher sozinha, sem homem ao seu lado, caso se desse ao prazer de ser mulher com outros homens. 

 

Desde que Severo se foi nos braços de Antonia e de uma garrafa de cana de cabeça, minha avó vestiu-se de luto, tornou-se uma velha virgem empedernida, mas nunca amarga, era uma mulher doce. Pelo menos era o que se manifestava diante de todos nós. Durante anos e anos, nenhum namorado, amante. Houve pretendentes, pelo que comentam meus tios, mas a todos rejeitou e permaneceu imbatível. Era uma mulher bonita, muito clara, alourada, tinha olhos azuis, herdados do meu bisavô, Manoel Almeida, português. Como essa bela mulher não sucumbira ao desejo nesses tantos e tantos anos de solidão? O que latejava dentro dela? Minha avó, que passara a vida inteira asfixiada pela incurável virulência moralista do mundo, ironicamente morreu asfixiada pela agressividade de um outro vírus. No velório, pouca gente, como preconizava o protocolo de saúde por conta da pandemia. Observando seu caixão lacrado, fiquei pensando em qual seria a expressão colada ao rosto de minha avó dormindo o sono indesejado, e imaginei que haveria em seu cadáver um sorriso discreto e misterioso como o da Gioconda.

 

Fotografia de Leonardo Almeida Filho

Leonardo Almeida Filho (Campina Grande/Paraíba, Brasil, 1960), professor, escritor, músico. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), O livro de Loraine (Edição do Autor, romance, 1998), logomaquia: um manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia, contos, 2014 e nova edição impressa em 2021), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Editora Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019 – Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019), Tutano (poesia, Editora Patuá, 2020), Os possessos (romance, Editora Patuá, 2021), além de contos, crônicas e poemas em coletâneas, revistas e jornais. 

Como músico (violonista e compositor) participou de diversos festivais e gravou o CD Papo de Boteco, uma produção independente, em 2017, disponível no Spotify e na sua página no Youtube.

Blog de poesia: www.poesianosdentes.blogspot.com.br

e-mail: leo.almeidafilho@gmail.com




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