Poesia & Conto

As palavras já não são | Mário Trigo e Tânia Cadima

fotografia de Tânia Cadima, “O Mar Mediterrâneo”

textos de Mário Trigo

fotografias de Tânia Cadima

 

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Hécuba. 

As muralhas caídas. O vazio habita a casa. As pedras racharam. A cidade será cinza. Os frutos foram abocanhados. 

A vida vergasta, roda em torno do sol. O tempo será uma cortina de bronze amortalhando a liberdade. De madeira serão feitos os dias, lenha que arde.

Príamo caiu, os ossos são lascas quebradas. Os filhos – sombras de sombras serão sombras. 

 

A água movimenta os peixes que vieram de Atenas, os cães lambem o mármore dos deuses. Hécuba é já uma pedra acantonada. A vida ainda é o mar. 

fotografia de Tânia Cadima, “Hécuba”

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De quando o gesto bruto descarna a vida, e ainda assim lhe deixa traços de uma evidência figurativa… épica. 

Esta, a cabeça de Heitor depois de ter aberto sulcos no chão de Troia. O sol tempera-lhe as carnes – sal embutido na terra.

 

O pulmão escava o último sopro. As palavras puxam o sangue, esvaem-se em urina. 

As palavras já não são.

fotografia de Tânia Cadima, “De quando o gesto”

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O corpo distende-se, o sangue passa. A tapeçaria desenha as guerras que foram antigas. Corre dos vasos o ouro. O cérebro será veludo que dobra o sono. O outono é a casa. 

Andrómaca sonha, estará só quando outra mão, guerreira, a arrastar para uma cama de sexo bruto.

A filiação já ceifada, apodrecendo nos torrões de Troia. Andrómaca é uma mulher doce.

Agora dorme.

fotografia de Tânia Cadima, “O corpo distende-se”

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Existe um girassol. Erguido, cobrindo as nuvens. Assim Aquiles – um anjo que desce para retalhar os corpos em terra. 

O seu escudo rasurou as pedras, virou-lhe a melancolia. A sua morte atrasa o Tempo. 

Os anéis de ouro do seu cabelo farão a vida de Alexandre. A espada de Alexandre enterra-se nas valas do Nilo. Será ainda o falo de Aquiles, a guerra.  Alexandre morrerá durante o coito.

Pátroclo, lavou, secou a enxerga. Espera Aquiles numa ilha branca onde correrá abundante o esperma. Um mar de pérolas – líquido dossel. 

fotografia de Tânia Cadima, “Existe um girassol”

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Um apartamento, duas assoalhadas. A cadeira sustenta um corpo. Café.

Os aviões sobrevoam. Direcionam pontos vermelhos para baixo. 

O apartamento já não. Não existe banheira. O cabelo, argamassa para cogumelos. 

O recolhimento dos caças, alinhados em hangares. Ignição, petróleo, trabalho feito.  Descanso. Espuma de barbear.

Do outro lado do mundo trabalham-se vedações. Cristo mentiu, não somos todos irmãos. Existem pretos, amarelos, brancos… 

Partam-lhes os ossos. Cristo não interessa para rigorosamente nada – um pilarete onde constantemente se tropeça, foda-se.

Tudo deve fluir, desmantelar-se. O próprio Diabo sabe que terá de ser assim.

fotografia de Tânia Cadima, “Um apartamento”

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O mar Mediterrâneo é uma tinturaria.

Antigo é o sangue encrostado – as vestes de Ajax não secaram ainda.

O Mediterrâneo serve o céu à mesa. Nuvens em castelo dentro da baixela.

A terra abre-se por baixo das marés. Gavetas da geologia que arrumam os corpos. 

As ondas levantam-se, chapam-se nas embarcações. 

Seria A Fuga Para o Egito abrindo a paleta do Barroco – numa visão de Esteban Murillo. 

Ao rés das águas faz frio. Dormir é um direito eterno.

fotografia de Tânia Cadima, “O Mar Mediterrâneo”

***

 

Texto de enquadramento cénico

 

São textos que se relacionaram com fotografias integradas no espetáculo multidisciplinar intitulado A Secret About a Secret, tendo em conta o conceito da fotógrafa norte americana Diane Arbus que afirmava ser uma fotografia um segredo sobre um segredo — quanto mais uma fotografia nos diz, menos ficamos a saber. 

 

Esta foi a proposição para um objeto cénico que fez uso de fotografias de Tânia Cadima projetadas em tela e comentadas em tempo real pelos intérpretes Catarina Rodrigues e Miguel Coutinho, apropriando-se de uma escrita contemplativa, com recurso a pulsões inconscientes, sendo por vezes automatizada, acercando-se ou afastando-se do sentido figurativo das imagens sequenciadas numa espécie de mural cénico. 

 

Num espaço cenográfico íntimo, partilhado pelos intérpretes da HIPÉRION Projeto Teatral e pelo próprio público, refletiu-se, extensiva e ludicamente, sobre temáticas como a antiguidade grega, o desassossego da guerra, ou as decisões políticas que nos fazem a vida. 

 

_ Mário Trigo

 

Texto de enquadramento formal fotográfico 

 

Uma imagem rememorada nunca é algo pronto. A matéria de que é feita é instável, muda a cada instante. Evocar uma imagem que pertence ao passado, recuperá-la, trazê-la ao momento presente, é um exercício criativo dinâmico cujas variáveis escapam: é como tentar fixá-la numa superfície que se encontra em constante movimento. O meu trabalho é um ensaio poético que tenta dar conta deste processo.

 

Parte-se, então, em direção ao fundo de um arquivo de imagens fotográficas, um objeto que nos faz acreditar que é possível guardar intactas imagens-lembrança. Rapidamente se percebe que a dimensão cronológica rígida que costuma caracterizar estes objetos, quando submersos, desfaz-se. As imagens perdem a sua referência temporal e a fronteira entre o que foi real e agora inventado dilui-se.

 

Impregnado de subjetividade, o papel da imaginação é, aqui, determinante. Guiadas por um impulso, ora estético ora lúdico, algumas destas imagens emergem: uma proposta de leitura em que o espectador é convidado a entrar como num labirinto, sendo que é na sua própria memória que vai encontrar a chave para a saída.

 

_ Tânia Cadima

 

fotografia de Mário Trigo

Mário Trigo nasceu em 1969. É encenador, por vezes ator, por vezes desempregado. Vive num contexto político desfavorável à criação não determinada pelos agentes culturais. Todavia, tem resistido. A escrita constitui-se uma trincheira onde se tem resguardado. Ao longo dos anos, partilhando alegrias e fadigas, levantou sessenta e seis espetáculos teatrais. A energia vem-lhe eventualmente de um desejo subversivo. Não tem qualquer esperança na humanidade, que considera estar a mais entre as espécies conhecidas.

fotografia de Tânia Cadima

Tânia Cadima (Marinha Grande, 1979). Vive e trabalha em Lisboa.

Licenciada em Design de Comunicação pela Universidade de Aveiro (2002). Vencedora do 1º prémio Novos Talentos Fnac Fotografia, com o trabalho Brejo (2013). Frequenta Cursos de Fotografia no Atelier de Lisboa desde 2013, de onde nasceram ClepsidraBereniceOdds and Ends e Hide-and-Seek, trabalhos que participaram em várias exposições coletivas. Apresentou Berenice numa exposição individual no m|i|mo, Museu da Imagem em Movimento, em Leiria (2017). Apresentou Hide-and-Seek numa exposição coletiva inserida no Imago Lisboa Photo Festival (2021). O livro Hide-and-Seek foi selecionado pelos Encontros da Imagem de Braga (2022).

Atualmente é designer e fotógrafa residente da companhia HIPÉRION – Projeto Teatral.

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