Cultura

Ao ler Whisney Fraga | Fernando Chagas Duarte

Usufrutos de Demônios (Ofícios Terrestres Ed., São Paulo, 2022) 

 

A prosa de Whisner Fraga (n. 1971, Ituiutaba, Minas Gerais) pulsa e reflecte o ser e o quotidiano, liga o comum à vida, o complexo à existência. 

 

Um início que não será exactamente igual ao seu fim, “A indústria e o estresse de um chão de fábrica não eram para mim, de modo que só havia uma solução”, confirma na sua biografia digital. Primeiro engenheiro mecânico, depois professor de jovens e adultos, transmutou-se num nomeado crítico e comentador de ficção – a maioria são contos de escritores brasileiros, quase todos publicados por pequenas editoras. Professor titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo e escritor de longo-curso, premiado, lançou este ano o seu décimo-segundo livro, Usufruto de demônios, narrativas em minicontos que podem ser visitados e saboreados na voz do Autor em vídeos no YouTube

 

No posfácio desta obra, por Gabriel Morais Medeiros, diz-se: Já nos meses iniciais da pandemia, foi notável uma tentativa de esgotamento simbólico da experiência traumática. Da poesia à análise ensaística, uma série de diagnósticos, abordagens e compilações revelou um esforçou para, do desastre brasileiro, extrair-se uma percepção coletiva, o consenso de uma definição, de uma explicação possível. (…) Usufruto de demônios, série de narrativas curtas que o escritor Whisner Fraga lança agora, está na contramão. (…)Teremos, apenas, fragmentos, dicções, relances do que nos aconteceu. 

 

De facto, Fraga lança pontes improváveis entre realidades dissemelhantes; o título é sugestivo e explica a força dos conteúdos. Está desde logo patente, ali, uma oposição entre o privilégio e os outros, naquela linha que separa os favorecidos dos comuns e estes dos invisíveis: quem beneficia com o caos de um país à deriva? Ainda do posfácio de Medeiros, Temos em mãos um tratado demonológico sobre o capital, sobre um mundo como depósito de mercadorias, profundamente doente

 

Este, creio, é um livro para todos. Atente-se a Helena, um interlocutor omnipresente, nome da sua filha menor, ouvinte consciente, como se houvesse um fluxo e um significado comum a cada mini-narrativa. Leitores modernos tendem a subestimar as nuances culturais do texto; no entanto com Whisner Fraga a narrativa não consegue escapar ao disforme, nem tão-pouco será entendida adequadamente sem uma apreciação dos contextos histórico-culturais: através da obra o Autor ajuda o leitor, conduzindo-o quer a reconhecer quer a entender o que é identitário, demonstrando quanto os personagens dos seus textos são poderosas subtilezas culturais que formam a interacção da actual sociedade brasileira, como um todo. Não existem ali personagens-tipo: nas suas particularidades, Whisner estabelece as diferenças, as discriminações, a linguagem e, afinal, o contexto insano de uma colectividade nos seus diversos papéis, enquanto povo. 

 

A quem interesse este livro? A sua significância está na articulação do texto. Leitores simpáticos hão-de evitar esta leitura, porventura a minimizar o conteúdo. 

 

Aqui retrata-se a vida quotidiana como ela é, mostrada sem filtros de bondade, como se nos fossem apresentadas cenas fotográficas de grandes mestres, ampliadas em formato literário e projectadas em slides sequenciais. Recorda-me um velho projector de slides com uma selecção de imagens por demais actuais. Cenas de um país pandémico e pós-pandémico (com largas sobreposições sobre a tragédia colectiva, vítima dum negacionismo primitivo) onde se descobrem importantes indicadores de depressão e de esperança.

 

Lançado em formato de livro de bolso, Usufrutos de Demônios traz uma apresentação gráfica que não desengana sobre a intensidade do conteúdo. Uma clareza de prosa, pleno domínio da palavra.

 

Um exemplo integral, cuidado com o embrulho na calçada. “o policial ergue os braços para cumprimentar os colegas na viatura, os mendigos revoam, alarmados (homens em situação de rua, corrigirão os militantes de coletes laranjas, que aportam depois de removido o corpo): eles retornam, passos miúdos, ariscos, abaixam os pesares até ao contorno do amigo sob a manta térmica, a assepsia metálica blindando a indigência, ele não brindará mais a afeição que nunca lhe negou um gole nem o amor picando a veia num enlace fraternal, enquanto ninguém tem coragem de perguntar quem velará o companheiro quando o levarem.

 

A metáfora e a poética do caos estão presentes na circunstância de cada um dos flamantes minicontos: ressoam as vozes de um povo à beira do precipício, de onde teima em se afastar, reinventar e resistir. O autor modela cuidadosamente o quotidiano, o que pensa entrega-o tal-qual, transforma-o paradoxalmente em incidentes ficcionados, cria uma literatura cujos dramas não interessam especialmente a ninguém, excepto a todos os outros.

 

Ao nos entregar uma visão despida de moralismos bacocos, estamos perante uma prosa inteligente, cativante – subtil, tão brutal quanto paródica – não raras vezes sob a capa de um realismo fragmentado e moderno. Whisner Fraga, nome a não perder de vista, é capaz de, entre o seu imenso arsenal ficcional, os seus magníficos recursos literários e uma escrita emblemática, nos demonstrar o ser comum, o quotidiano feroz que enfrenta e a ética essencial dos dias que correm.

 

Fotografia de Fernando Chagas Duarte

 

Fernando Chagas Duarte (n.1964, Lisboa), geógrafo, escritor, poeta, fotógrafo amador, viajante do mundo e das particularidades. Autor de seis livros de poesia, publicados entre 2014 e 2023, e do romance No fim de um lugar (Ed. Kotter, 2022), tem participação em cerca de duas dezenas de colectâneas poéticas e revistas literárias de vários países.




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