América
Num dos seus interessantes artigos sobre política internacional, o embaixador Francisco Seixas da Costa expressou no Jornal Económico de 10 de Dezembro de 2020 o que as diplomacias europeias desejam da política externa da América na era pós-Trump.
“A nuvem negra que foi a administração Trump projetou uma postura egoísta e nacionalista dos EUA pelo mundo, quebrando ou criando tensões nas alianças tradicionais e, pior do que isso, reduzindo as margens de previsibilidade e estabilidade que são essenciais à relação entre os Estados (…) juntou todos aqueles que comungavam a leitura de que a postura do presidente americano ofendia a razoabilidade e era provocatória de interesses que mereciam ser respeitados.” “Isso acabou. Trump vai-se embora e cada um de nós regressará ao seu ponto de partida (…) Que fique claro que o fim de uma administração americana hostil e a provável chegada de outra diferente não deve fazer esquecer à Europa a sua própria autonomia estratégica.”
O embaixador Seixas da Costa considera que “a Guerra Fria acabou e a Europa é hoje uma coisa bem diferente”, que a União Europeia deve assumir uma estratégia de interesses própria, autónoma, “a qual, muitas vezes, coincidirá com a dos EUA, mas que a Europa é um concorrente objetivo dos Estados Unidos em vários planos e deve assumi-lo sem complexos em áreas geopolíticas de concorrência de influências, como a África ou a América Latina”; e ainda que “nada obriga a que, como europeus, olhemos as coisas da mesma forma no Médio Oriente, desde logo, na relação com Israel e na complacência face ao medievalismo prevalecente no Golfo Arábico. Ou até no caso do desafio que a China representa”.
Parece demasiada boa vontade do senhor embaixador, além de o seu desejo apresentar alguma falta de lógica. Se, com um isolacionista e impreparado Trump, com uma administração de caixeiros-viajantes, a Europa não saiu da casca e seguiu a América trumpiana pela trela, sem se libertar, será agora, com alguém na Casa Branca certamente mais preparado e mais interventivo que a Europa se libertará? Se não se libertou de um mau cavaleiro vai libertar-se agora de um velho ginete bem instalado na sela?
Quanto à NATO, Francisco Seixas da Costa entende que esta não tem de continuar a ser um heterónimo dos Estados Unidos e, em especial, não pode aparecer como uma espécie de cobertura, sem baias geográficas, para a leitura estratégica que Washington quiser fazer dos seus interesses pelo mundo, que se habituou a identificar como sendo também os dos seus aliados. Lembra o embaixador as aventuras radicais na Ucrânia, mas podia recordar as da Sérvia, da Líbia, da Síria com ingleses e franceses, para já não falar do Iraque e do Afeganistão, ou das Primaveras Árabes. E não foi Trump quem conduziu essas aventuras!
Os que atirarem foguetes a Biden correm o sério de risco de irem apanhar as canas!
Termina Francisco Seixas da Costa o seu artigo com uma afirmação de esperança: “Uma administração Biden é mais do que bem-vinda, depois do trauma que Trump representou. O grande teste à sua benignidade, contudo, será o modo como souber respeitar a vontade dos seus aliados. No fundo, na forma como preservar o mundo multilateral que a própria América a todos nos ensinou a acreditar como sendo a forma mais democrática de gestão global.”
A maioria dos europeus responderia a estas boas intenções com um mais ou menos resignado “Ámen”, mas julgo que poucos comprarão foguetes para as boas vindas a Biden. Os que atirarem foguetes a Biden correm o sério risco de irem apanhar as canas!
O problema que determina todas as abordagens das relações da “Europa” com os Estados Unidos é que os impérios não têm aliados, mas estações de serviço. O poder imperial não depende dos humores e das gentilezas dos imperadores – e os Estados Unidos são o único império mundial! A Rússia e a China são grandes potências continentais, apenas consideradas “impérios” para efeitos de propaganda e de justificação dos monstruosos orçamentos do aparelho de poder militar do verdadeiro império: os EUA; a única superpotência, porque domina os três grandes oceanos, mais o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, a confluência de três continentes. A NATO nunca foi uma aliança, foi sempre uma “esquadra americana” com navios auxiliares a enfeitar, o mesmo se diga da ASEAN (Associação das Nações do Sudoeste Asiático).
Em termos estratégicos, a Europa é uma base americana e em termos políticos um peão americano. Acresce, para esfriar entusiasmos “bidenanos”, que a Europa nem sequer é uma união. O Reino Unido sempre foi uma ala político-militar dos EUA, os países do extinto Pacto de Varsóvia, espalhados na grande planície europeia, preferem, como sempre preferiram ao longo da história, acolherem-se à proteção de um patrono, um czar, um kaiser, um Fuhrer, um chefe qualquer que lhe assegure as fronteiras e não confiam na França, que vive de sonhos de grandeza desde Napoleão, é um Estado sonâmbulo desde a revolução, nem na Alemanha, que sofre do complexo de culpa das duas guerras, além de ser demasiado pequena para uma potência fiável.
Sendo as coisas como são, quanto ao grau de autonomia da Europa, ela será exatamente a mesma com Trump ou com Biden, apenas com as ordens dadas de forma mais educada, com um please em vez do “go” ou do “forward march!”
Em termos estratégicos, a Europa é uma base americana e em termos políticos um peão americano.
A Europa não tem qualquer autonomia na América Latina, que é um quintal americano, como a crise dos migrantes junto ao “muro” com o México e as “embrulhadas” na Venezuela, na Bolívia e no Brasil bem demonstram. Resta a África, onde os Estados Unidos não têm interesses importantes a defender nem a conquistar, a não ser o de garantir a segurança das suas empresas extrativas, como acontece na Líbia e na Nigéria, o que têm conseguido em aliança com a Arábia Saudita e os seus jhiadistas, agora ativos em Cabo Delgado, no norte de Moçambique.
A Europa, na versão geográfica e civilizacional, ou na de União política, tem menos autonomia estratégia do que a Turquia, que pode ir jogando com a Rússia e os Estados Unidos, utilizando em cada momento o comparsa mais conveniente…
Com a administração Biden talvez os Estados Unidos utilizem os europeus como guardas fronteiriços nos limites da Rússia, através da NATO, e assim libertarem meios para o seu objetivo principal: a disputa com a China no Pacífico. Mas isso é o que já estão a fazer nos países bálticos e na Polónia…
Após a ópera bufa do render da guarda na Casa Branca, Biden virá à Europa com excelentes discursos de juras de amor transatlântico e muitos sorrisos. Trará o casaco apertado e essa será, provavelmente, a grande novidade da política externa americana.
Carlos Matos Gomes é coronel do Exército, reformado. Nasceu a 24 de julho de 1946, em Vila Nova da Barquinha. Foi oficial do Exército, tendo cumprido comissões em Angola, Moçambique e Guiné. Algumas das suas obras foram adaptadas ao cinema e à televisão, entre eles Os Lobos Não Usam Coleira, adaptado e realizado por António-Pedro de Vasconcelos, com o título Os Imortais. Colaborou com Maria de Medeiros no argumento do filme Capitães de Abril. Publicou, como Carlos de Matos Gomes, e em coautoria com Aniceto Afonso, os livros Guerra Colonial, Os Anos da Guerra Colonial, Portugal e a Grande Guerra e Alcora – o Acordo Secreto do Colonialismo. Publicou doze romances, sendo os últimos no catálogo da Porto Editora, onde figuram os romances, escritos sob o pseudónimo Carlos Vale Ferraz.