Âmago / Werken
ÂMAGO / WERKEN
âmago / werken
Quando criança, eu sempre queria eluir os pesadelos, evitá-los, esses pesadelos cheios duma agressiva persistência.
É assim; mesmo que todos os pesadelos possam parecer iguais na feitura do fenómeno, há pesadelos simplesmente insuportáveis, mais do que a imensa maioria dos outros o são, mas na realidade ninguém percebe isso, e, portanto, ninguém percebe por quê. É demasiado para uma criança não conhecer o mundo mas sim conhecer o cerne do sofrimento.
Seja como for, depois, chegou uma altura em que eles desapareceram. Não sei com certeza o que aconteceu, qual é que foi a causa. Se calhar foram umas companhias novas e reconfortantes, raras e anuladoras? Ou bem fui eu sozinho, eu que os devorei e os entranhei em mim? Ou então foram eles próprios, os pesadelos, que já nada interessante podiam querer daquela criança acabada, já espremida?
Ou, talvez, foi o tempo, simplesmente e sem mais, o tempo, que arrasta tudo, que tal como os pesadelos, também não sabe de fazer bem ou fazer mal, mas apenas arrasta, às vezes para o nosso bem, às vezes para o nosso mal; é o tempo a força motivadora verdadeira, o que deixa tudo ao acaso, o resto é só parte levada dessa contingência mesmo.
Foi quando eles já não estavam que eu compreendi quanto eles eram uma janela à compreensão do mundo, uma soleira de olhar os horrores que compõem a realidade. Agora eu quero esse conhecimento, agora que eu sou forte, agora que já não tenho medo, agora é que eu tenho o anelo de eles estarem cá comigo; mas eles já não estão.
Às vezes, é verdade, eles regressam, e eu quero com desespero que eles fiquem comigo, mas, quando acordado, eles foram-se embora, e só fica em mim a lembrança amortecida de um brado abstrato que não consigo decifrar.
Para conhecer o sentido da vida é preciso conhecer primeiro a origem da vida. E se tal origem é o mal? Então, matar por amor é bom só porque matar por qualquer razão é bom. E o resto.
Tremura
Umas galáxias
devoram outras.
não tem função, nem finalidade; é assim a entropia.
num intervalo entre dois limites, eles estão despidos e isentos de ornamentações,
sozinhos, sentados e sedestres, perante a cascata e a lagoa, com um ruído que se faz com todo o espaço para marcar o silêncio, para designá-lo, para exibi-lo, para torná-lo presente, para não esquecer. que flor é essa pergunta ele. essa é a flor de maracujá, passarinho. ela é bem esquisita. ela é a flor da paixão,
passarinho.
ao mesmo tempo que ele está aí, está adicionalmente a flutuar num imensa nada, está perante a cascata e a lagoa, e também perante galáxias que devoram outras galáxias, perante a água e perante o fogo, mergulhado em tudo e submerso em nada. é preciso eu chegar em casa, acercar-me a ti, atingir-te.
na ocasião ele está em todo o lado, mas isso faz com que ele não esteja presente em lado nenhum, com que ele não encontre a sua linguagem, não encontre a sua expressão, com que se tenham sumido; assim, forma-se a ideia de que dali ele tem de dar no lugar certo. deve decorrer a noite, isso é necessário.
eles os dois estão a olhar para a cascata, como ela cai sobre a lagoa; eles estão em
silêncio e realmente parece como se aquele local estivesse a ser predado pelo silêncio, todo ele, com eles ali, eles também.
eu não quero que este momento chegue ao fim
ele não vai chegar se tu não quiseres; podemos
ficar sempre assim,
passarinho
a recordação, manter as lembranças, é essa a única heroicidade que fica possível galáxias devoram outras galáxias. deve decorrer a noite.


Chus Negro García
Tradutor, corretor de textos e escritor, com dois livros de poesia publicados em Espanha, Historia del tiempo presente e mientras dormíamos la gran siesta, além de outras publicações como artigos sobre literatura, filosofia, etc.