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Afinal, quem faz os filmes: de diretores a produtores, dois livros essenciais| Chico Lopes

Quem faz os filmes? De diretores a produtores, dois livros essenciais

 

Chico Lopes

 

Legenda: “Afinal, quem faz os filmes: de diretores a produtores, dois livros essenciais_1”

 

Entre os bons livros sobre Cinema que há no mercado (incluo os sebos) do Brasil, há um de que se fala pouco, mas é volumoso (978 páginas) e tem entrevistas interessantíssimas com dezesseis cineastas importantes para a história do cinema americano – é “Afinal, quem faz os filmes”, do cineasta (bem esquecido, apesar de ter tido bastante importância nos anos 70) Peter Bogdanovich (edição de 2000 da Companhia das Letras).

 

O título vem em resposta àquela pergunta que é comum no espectador, não muito convencido de que o que acabou de ver é obra exclusiva de um diretor, de que este merece todas as loas. Passou-se muito tempo desde que a “política do autor” da revista francesa Cahiers du Cinéma valorizou o cineasta como possível marca pessoal de muitos grandes filmes (revisando grandes nomes até então tidos por comerciais) e, apesar do prestígio de certos diretores poder ainda determinar o interesse de um filme para certa faixa de público, a grande massa de espectadores em geral sabe mais os nomes dos atores, atrizes, curte ou não a riqueza da produção, os efeitos especiais, e não fica pensando muito com no que de importante um diretor pode ter trazido para uma produção. Esta atitude tem muito de negligente, mas tem também um lado sadio, de não colocar o diretor acima de tudo, como a Cahiers pregou, o que se tornou às vezes abusivo na história da cinefilia. Cinema é sim arte de equipe – o diretor tem peso considerável, mas não se pode ignorar o produtor, o figurinista, o fotógrafo, os atores, o roteirista…

 

Mas “Afinal, quem faz os filmes” é escrito por um cineasta que, claro, até por compreensível corporativismo, acredita na teoria francesa do diretor autoral, mágico que, pondo a mão mesmo em material de terceira categoria encomendado por estúdios e produtores indiferentes a nada que fosse o tilintar das caixas registradoras, deixaria a sua marca pessoal.

 

Bogdanovich é um caso interessante. Foi o responsável, nos anos 70, por um revival decisivo de filmes da era áurea do cinema americano, dizendo o célebre “Todos os melhores filmes já foram feitos”, com incisivo saudosismo, e filmando como Howard Hawks, Hitchcock e Capra títulos como “Lua de papel”, “Esta pequena é uma parada” e “A última sessão de cinema”. No entanto, sua carreira foi degringolando, ele envolveu-se com uma “pin up” da revista Playboy que foi assassinada e os transtornos de sua história pessoal entortaram sua vida de cineasta. Ainda conseguiu mais tarde aparentar certo ar de ressuscitado com o filme “Marcas do destino”, estrelado por Cher, mas seu tempo já havia passado.

 

O saudosismo visceral de sua frase famosa perdeu bastante de seu sentido. Os espectadores de cinema de hoje em dia podem inclusive, adquirindo os muitos títulos possíveis do velho cinema americano em DVD, ver que o passado não basta para dar brilho e qualidade ao cinema de então, que produzia muita ruindade, ainda que em menor escala industrial, também. Filme antigo não é sinônimo de filme bom, automaticamente, e isso, devido a Bogdanovich e seus epígonos, nas décadas de 70 e 80, chegava a parecer axiomático. Na avalanche de ruindades que saem de Hollywood hoje em dia, há muita coisa que se destaca pela qualidade e o interesse, há diretores que continuam tendo vigor e graça e renovando as coisas dentro do possível. Suspiros pela superioridade do passado são reacionários e nada resolvem. Há filmes em excesso, nunca se produziu tanto como hoje em dia, mas a arte cinematográfica, espremida entre todos os fogos do lucro, do comércio e do oportunismo mais raso, continua existindo, vinda um tanto dos EUA, um tanto da Europa, afora as revelações de filmes do Oriente, da América Latina, da África. O que aconteceu é que o cinema não é mais previsível, não é só Hollywood de modo algum, a qualidade ficou mais rarefeita e o público passou a se dividir mais rigidamente em massa superficial (a maioria) e espectador seleto. 

 

Entrevistas constrangimentos e astúcias

 

O cinéfilo que adquirir este livro pode ir babando do começo ao fim: há entrevistas com George Cukor, Hitchcock, Leo McCarey, Fritz Lang, Joseph Von Sternberg, Otto Preminger, Howard Hawks, longas, detalhadas, reveladoras, necessárias em alto grau para quem estuda o cinema americano.

 

Algumas dessas entrevistas são, decididamente, históricas. Como bom cinéfilo, fã de carteirinha de alguns dos seus entrevistados, Bogdanovich perseguiu esses senhores ao longo das filmagens, esteve perto de alguns quando estavam para morrer (caso de Leo McCarey, diretor de “Tarde demais para esquecer”, que dá um depoimento comovente); em alguns casos, foram situações humanamente constrangedoras, mas ele ficou ali, firme, certo de estar contribuindo para a história do Cinema, profissional acima de tudo.

 

Interessante destacar, dentro desse aspecto, a entrevista feita com Alfred Hitchcock. O Mestre do Suspense, depois de “Trama macabra”, seu último filme (que acabou sendo seu epitáfio), tentava preparar nos estúdios da Universal mais um filme, para o qual recrutaria Sean Connery e Liv Ullmann, The short night. Parte das filmagens teria que ser feita na Finlândia, mas Hitch estava tão doente que ninguém dentro da Universal acreditava que o filme pudesse ser realizado e deixava o cineasta apenas viver na ilusão de que poderia realizá-lo, um tanto por compaixão, devido ao que já parecia ser o fim de um ancião venerável. Hitch fingia trabalhar, deteriorado fisicamente, e bebendo para agüentar a dura realidade. Ele recebeu Bogdanovich sem reparar que seu terno tinha manchas de sujeira. Percebeu que seu entrevistador notou e, chocado, trancou-se num banheiro, recusando-se a sair. Hitch tinha sacrossanto horror a qualquer indício de falta de higiene e essas manchas parecem uma pungente denúncia de seu estágio final. 

 

Há mais coisas nesse livro. Uma que decididamente me marcou foi a frase de George Cukor: “Os atores são a coisa…” O diretor de clássicos como “A dama das camélias” e “Nasce uma estrela”, que me pareceu exemplar pela discrição e por saber se colocar num papel relativamente modesto como autor, achava que tudo estava nos atores, e por isso sua direção era tremendamente valorizada, especialmente por atrizes, pois ele foi visto como o melhor diretor de mulheres do cinema de Hollywood, a certa altura. Otto Preminger conta a verdadeira odisséia que antecedeu a sua escolha de diretor para o filme “Laura”, que o consagrou, e deixa bem claro que diretor que quisesse fazer determinados filmes tinha que agarrá-los a unha, dente e o que mais pudesse contra a tirania dos produtores e a incompreensão de um sistema que procurava sempre a facilitação maior para o público, refletindo, na verdade, a indigência mental dos próprios senhores do negócio. Preminger ficou conhecido por ser persistente além da conta e muito astucioso, sabendo driblar as dificuldades todas que se punham à sua frente, o que a entrevista revela com bastante clareza. Impressiona também a frieza e o laconismo do grande Von Sternberg, criador de Marlene Dietrich e homem profundamente desiludido com sua história de cineasta. Impressionam o bom humor, a displicência e a modéstia de Howard Hawks, homem refinado e rico que só se tornou diretor por hobby – podia viver longe disso, e fez filmes com uma saudável despretensão que se revelaram mais artísticos e profundos do que ele, por pudor e hombridade, admitiria.

 

Na verdade, o livro de Bogdanovich pode deixar o leitor com a mesma perplexidade que motivou a sua leitura, a partir do título. Os diretores que dizem coisas mais convincentes parecem ser os capazes de modéstia, despretensão e uma competência silenciosa, um cuidado artesanal e um talento obstinado, mas estóico, por trás de toda a máquina. De modo que atribuir a grandeza de um filme apenas ao diretor segue sendo temerário. O diretor tem um grande papel nisso, mas ignorar todo o resto do trabalho de equipe é simplesmente injusto.

 

Outro ponto de vista em “O gênio do sistema”

 

Legenda: “Afinal, quem faz os filmes: de diretores a produtores, dois livros essenciais_2”

 

É quase um ponto de vista herético e desprezível, para quem se acostumou com a “política do autor” semeada pela Cahiers du Cinéma. Mas é preciso ter bom senso e reconhecer que os estúdios e os produtores tiveram sim muita importância na formatação estética de muitos filmes venerados como se fossem obras exclusivas de diretores geniais que reinassem no vácuo.  Em geral, o que sucedia é que certos cineastas de personalidade forte conseguiam usar os recursos dos estúdios a favor de suas ideias e ir longe no seu estilo pessoal, contanto que o sucesso comercial desse fôlego à sua carreira. Orson Welles não foi muito longe porque sua arte escapava demasiadamente ao controle dos produtores e ao gosto geral, mas, com mais astúcia e concessões jeitosas (nisso teria muito a aprender com Hitchcock e Preminger), teria feito outra carreira. Os produtores davam muitos palpites e, se bem que fossem, alguns, particularmente ditatoriais, havia os que tinham sim bom gosto e sabiam tutelar artisticamente, não só financeiramente, um diretor.

Este livro, “O gênio do sistema”, desmistifica um pouco, por exemplo, a histórica relação difícil que houve entre Hitchcock e David O. Selznick, o mitológico produtor de “…E o vento levou”. Hitchcock padeceu sob a sombra de Selznick desde que este o retirou da Inglaterra e lhe ofereceu milhões e uma carreira muito mais promissora em Hollywood, tendo-o convidado para dirigir o grande sucesso de “Rebecca”. Selznick era um tirano, metia demais o nariz nas filmagens, alterava coisas, contratava estrelas que jogava em lances temerários, tinha caprichos que impunha realmente, sem maiores sutilezas, sobre os diretores contratados (o grande King Vidor não o aguentou nas filmagens de “Duelo ao sol”, e deixou o filme pelo meio). Hitchcock, já muito independente e dono de uma esperteza notável, conseguia driblar as exigências dele e fazer os filmes muito a seu modo, mas nem tanto: os dedos de Selznick como produtor, sua estética de gosto duvidoso, mas também seu faro para o sucesso, determinaram muito do que Hitchcock obteve como se fosse coisa só sua. A valorização excessiva recebida por Hitchcock obscureceu muito a contribuição que ele deu à formação da obra do diretor, com seus palpites e seu notório despotismo – era antipático, o sujeito, mas é preciso reconhecer sua importância. A leitura deste livro relativiza bem a tese de “mocinhos x bandidos”, “diretores x produtores”.

 

Nos dois casos, são livros que o cinéfilo precisa ler e ter para reler. Muito saborosos, contam histórias e guerras muito sintomáticas de bastidores de filmagens que, como apreciadores de cinema, jamais esqueceremos de fato.

Legenda: “Afinal, quem faz os filmes: de diretores a produtores, dois livros essenciais_3”

Legenda: “Afinal, quem faz os filmes: de diretores a produtores, dois livros essenciais_4”: fotografia de Chico Lopes

 

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