Cultura

Afinal de que falo eu? | Vítor Burity da Silva

Catei pedaços de mim neste mundo enfim, esta soalheira seca no verdume encravado numa palavra esquecida ao virar da esquina, o ruído do eléctrico ao subir em carris pedaços esquecidos de tanta vida aqui, sim, a morada final de alguém que nunca ali viveu, apenas as saudades talvez fossem nuvens de alguém parecido comigo numa chama que clama e a morte reclama a minha vida, a que perdi anos tantos já lá vão.

 

Afinal de que falo eu?

 

Rangem-me na pele sonhos, ilusões que esqueço a cada passo por onde passo caminhando parado ali, o lugar que me viu nascer esqueceu-se de mim numa praia qualquer de Berlim, náufrago eu, neste quintal cansado de Luanda numa arena ouvir cantar Proust de guitarra afinada na mão esquerda um silêncio onde apenas o ruído se apercebe que estava eu ali, sentado no berço onde morri, quietinho sinceramente estava, não fosse o diabo lembrar-se que poderia ressuscitar de tanta malaia na malária escura de Atenas ouvir sininhos tão finos que me perdi. Enfim.

 

Tinha nome de pedra esta estátua nua que com saudades conversa comigo, desabafa com cuidado contando-me heresias e feras onde numa arruaceirice cavalos fardados comungavam os seus segredos gelados numa lua de marfim.

Tudo me parecia uma coisa linda, nuvens carregadas de nomes que um dia haviam aferido em nome da paz não fazerem mais mal onde sempre se viveu mal. O sol baila e dança ao som de bombas rápidas como marfins definhados e a gente já cansados espumamos raivas de alecrins ruivos nos jardins deste pedestal sem ninguém, apenas eu, a observar devagar a morte esvair-se de sangue como carnes de curral naquele quintal onde um dia nascera eu refém já do mundo cruel que viu como o poder pode enganar inocentes sentados na prisão mais absurda de todas as realidades possíveis, mesmo naquelas em que nunca foi possível viver!

Vítor Burity da Silva, natural do Huambo, Angola, a 28 de Dezembro de 1961.

Professor Honorário;

Doutor Honorário em Literatura;

Ph.D em Filosofia das Ciências.

 

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