18 Janeiro 2023
“Tudo que é sólido se dissolve no ar…”
“Manifesto Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels, (1848)
Falar em modernidade situa-nos num tempo em que tudo parece “novo” e “moderno”. Desde a proliferação de novas tecnologias e novos processos de fabrico até à multiplicação de novos e eficientes equipamentos que facilitam a vida dos cidadãos, o conceito “modernidade” pretende representar uma ruptura com o passado. Podendo ser vista como uma transição do velho para o novo, a “modernidade”, já classificada, entretanto, como “pós-modernidade”, pode bem ser, como afirmou Habermas, “um projecto inacabado”. Aqui se ensaia uma compreensão da construção histórica da modernidade.
Saber o que é moderno equivale a pesquisar a forma e os efeitos provocados nos dias que correm, onde as utopias parecem dar lugar a um pragmatismo, imposto por uma realidade assustadora, onde as palavras e os conceitos são relegados para um plano secundário e, muitas vezes, vistos como ameaças ao que se chama desenvolvimento. E onde a democracia é interpretada de forma instrumental, quando não remetida para o acto do voto e desprezada de sentido participativo.
Uma possível definição do que é ser moderno, nos tempos de hoje, é dada pelo escritor e filósofo norte-americano Marshall Berman. O professor de filosofia política, falecido há 10 anos, diz, na sua obra “Tudo que é sólido se dissolve no ar: A Aventura da Modernidade”, que “Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades”.
O “conflito” da modernidade
O filósofo alemão Jürgen Habermas afirma que o termo “modernus” teria sido utilizado no século V, para distinguir a cristandade do paganismo. Todavia, a evolução do pensamento racional teria um impulso significativo no rompimento com o medieval, sobretudo com a filosofia escolástica, no início do século XVI. A abordagem “moderna” significa uma descontinuidade, uma ideia de inovação, no sentido evolucionista e de ruptura com antigas tradições. Moderno, do latim “modernus”, significa, na acepção filosófica, uma nova visão do mundo, em contraponto à visão medieval. É uma ruptura necessária para o avanço das civilizações. Habermas rompe com Max Weber, mas também com Adorno e Derrida, tentando ultrapassar o que considerava serem os impasses teóricos e práticos daqueles pensadores. Na sua “Teoria da Modernidade” propõe-se aprender com o que considerava serem falácias, aporias e impasses, propondo novas soluções para vencer as patologias dos tempos modernos, através da “razão comunicativa”, num novo conceito de sociedade. No ano de 1980, quando a cidade de Frankfurt lhe concedeu o Prémio Adorno, profere uma palestra a que chamou “A Modernidade – um Projeto inacabado“, onde salienta a necessidade de um conceito de sociedade que tenta aliar as perspectivas subjetiva e objectiva, bem como resgatar um conceito de racionalidade dialógica, num mundo actual onde parece predominar o abandono do pensamento utópico.
Modernidade e estruturação social
O sociólogo britânico Anthony Giddens considera, na sua “modernidade reflexiva”, que “…o exponencial aumento de conhecimentos propiciado pelos sistemas periciais, entre os quais se destaca a produção na área das ciências sociais, o crescente contacto dos indivíduos com especialistas de diversas áreas e a divulgação intensiva de informações especializadas pelos media, tem possibilitado aos indivíduos aceder a uma diversidade de experiências socializadoras que extravasam o seu mundo quotidiano mais restrito e enriquecem os seus recursos cognitivos”. Na elaboração da sua tese, Giddens salienta que a percepção, avaliação e orientação para a acção são influenciados de forma determinante por um conjunto de saberes especializados. Quando se questiona sobre a modernidade, Giddens reporta-a a um determinado estilo de vida ou organização social que teria nascido na Europa e se terá auto-exportado para outras culturas, com resultados duvidosos, embora assentes num paradigma moldado por grandes ideologias, filosofias e com alicerces sólidos e num conjunto de transformações sociais, políticas, económicas e culturais que formam uma nova ordem social, a chamada “ordem moderna”, fundada nos ideais de liberdade e na razão e que rompe com a crença e a centralização da religião da era medieval.
Sinais, ensaios e experiências da modernidade
Os acontecimentos marcantes da modernidade são guerras, conflitos e também alianças. O enorme contributo para a modernidade é dado pela Revolução Francesa de 1848. Napoleão Bonaparte é o grande executor e estratega da ruptura histórica operada pela modernidade contemporânea liberal face ao modelo do ancien regime. E será a França a marcar os destinos da modernidade. No ano de 1864, nasce a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), conhecida como a I Internacional, com delegados de organizações operárias da Europa e dos Estados Unidos da América. A época marca o nascimento de diversos partidos revolucionários de trabalhadores, associações e sindicatos, que reivindicavam direitos e a redução do horário de trabalho. O pensamento, escritos e intervenções de Karl Marx e Friedrich Engels, quer na formação da Liga dos Comunistas, em 1836, bem como na fundação da AIT, serão um marco decisivo na evolução do pensamento moderno e de desenvolvimento do movimento operário europeu.
O ano de 1871 (cinquenta anos depois da morte de Napoleão) verá acontecer a tomada de poder pelos trabalhadores, na Comuna de Paris, com a formação do primeiro governo popular da história, e a Terceira República em França. Bertolt Brecht lembra assim o 18 de Março, no poema “Os Dias da Comuna”: “Considerando a nossa fraqueza os senhores forjaram / Suas leis, para nos escravizarem. / As leis não mais serão respeitadas / Considerando que não queremos mais ser escravos. / Considerando que os senhores nos ameaçam / Com fuzis e com canhões / Nós decidimos: de agora em diante / Temeremos mais a miséria do que a morte.” A Comuna marcará simbolicamente o nascimento da Internacional, uma das canções mais conhecidas de todo o mundo, da autoria de Eugène Pottier, um dos membros da Comuna de Paris.
O final do século XIX irá abrir a porta à I Guerra Mundial, em 1914. A grande Revolução Russa de 1917 irá marcar a humanidade até aos dias de hoje, quer pelo significado da vitória dos trabalhadores na luta pela sua emancipação, quer pelo decurso dos acontecimentos que conduziram à degenerescência do Estado Soviético e que conduziram à sua progressiva degradação. A II Guerra Mundial, em 1939, com as potências ocidentais aliadas no combate ao nazismo e ao fascismo na Alemanha e na Itália, irá custar o maior extermínio da história da humanidade, no holocausto e na utilização do arsenal nuclear sobre o Japão, mais de 80 milhões de mortos, o equivalente a 3% da população mundial de 1940. Uma das destruições particularmente significativas da II Guerra foi a da Universidade de Iena, fundada no século XV e que conheceria o seu auge de reputação entre 1787 e 1806, com um grupo de jovens intelectuais que apostaram num novo rumo de ruptura filosófica, nomes da modernidade como Goethe, Fichte, Hegel, Schelling, Schlegel, Schiller, Novalis e Marx.
O fracasso da globalização neoliberal
A modernidade, fundada numa ideia de progresso, iria encontrar uma resposta negativa e refugiar-se na crença, mais ou menos dissimulada, de que os avanços técnicos e tecnológicos proporcionariam uma democratização da economia e uma melhor condição de vida dos cidadãos. Ao invés disso, imperou a consolidação do capitalismo financeiro, a financeirização da economia e a mais profunda desigualdade na distribuição, colocando, por um lado, uma parte da população mundial à margem desse processo e, por outro lado, uma transformação irracional na organização do trabalho. Começa a desenhar-se, no final do século XX, o fenómeno “estranho” de desvio dos rendimentos do trabalho para o capital.
É uma modernidade que trai os ideais de protecção dos cidadãos. Em vez disso, a protecção vai, de novo, para os detentores dos meios de produção e distribuição. As promessas igualitárias não passam hoje de uma miragem, num sistema social injusto e que parece apostado num retrocesso civilizacional, o renascer de ideais anti-democráticos, uma contra-revolução reaccionária, que atenta contra os princípios aceites universalmente da liberdade, igualdade e fraternidade.
Acresce ainda uma outra “construção moderna”, que radica no que se pode designar de “ódio social”, com infiltrações racistas e de classe, de que Trump e Bolsonaro serão os exemplos mais evidentes. Esse ódio está patente na forma como é interpretada a realidade e como tenta erigir um edifício baseado na mentira e na inculcação. Poderá ter aqui algum significado a passagem, durante a segunda metade do século XX, de antigas correntes marxistas para o campo do nacionalismo, de que são exemplos o russo, o chinês e, de uma certa forma também, o latino-americano, ao mesmo tempo que se assinala uma crise histórica, formal e de liderança, nos movimentos e partidos ligados aos trabalhadores.
A modernidade no século XXI – A grande regressão
O início do século XXI ostenta, por um lado, uma sociedade altamente evoluída, técnica e tecnologicamente e, por outro lado, a mais profunda desigualdade entre cidadãos. Quiçá a marca de um “progresso” que ostenta realidades tão díspares como entre a Arábia Saudita e Moçambique, entre o Japão e o Iémen, ou entre a Alemanha e Burundi, sabendo que a comparação é entre uma renda per capita, para os países mais ricos em média, superior a 90 mil dólares e para os mais pobres inferior a 500 dólares. O mundo moderno é hoje atravessado por riscos diversos, como terrorismo, mudanças climáticas, crises financeiras, grandes movimentos migratórios, com um crescente aumento da desigualdade. E as democracias liberais, assentes numa filosofia de aparente progresso, não conseguem resolver os problemas dos cidadãos, nem estancar as desigualdades. E, por conta disso mesmo, crescem propostas populistas um pouco por todo lado, baseadas numa propaganda falaciosa e no fenómeno insidioso das redes sociais.
O sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman classificou a era moderna, em face dos diversos conflitos mundiais, pela segregação de classes, indivíduos e, principalmente, de nações. Mas afirmou sempre a necessidade de confiar no potencial humano para retomar as utopias. Ao propor o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, Bauman diz que existe hoje uma relativa fluidez social, caracterizada por um ambiente de incerteza permanente, uma tentativa de colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual, um enfraquecimento dos sistemas de protecção individual e, finalmente, um divórcio completo entre poder e política. E define duas condições para o retorno das utopias. A primeira é a consciência, ainda que difusa e inarticulada, de que o mundo não está a funcionar de forma adequada e precisa rever os seus fundamentos. A segunda baseia-se no potencial humano de transformação, a capacidade dos cidadãos em tomar e definir o seu próprio destino.
A proposta antropocénica, possivelmente a mais recente da modernidade, que aponta uma era ou época geológica, ilustra a indissociabilidade entre as actividades humanas e as respostas às alterações climáticas, a nível global, ou seja, planetário. Na verdade, o termo Antropoceno aparece como contraposição ao Holoceno, que supõe a era geológica pós-glacial dos últimos 12 mil anos, poderá reportar à Revolução Industrial, isto é, à segunda metade do século XVIII, mais especificamente ao período que medeia entre 1780 e 1830, com início na Inglaterra e estendido à Europa Ocidental e aos Estados Unidos e que terá sido o das grandes transformações e de grande desenvolvimento tecnológico, caracterizado pela transição dos métodos de produção artesanais para a produção por maquinaria, ou seja, ao início do modo de produção capitalista, com uma nova forma de divisão social do trabalho.
Revolta e Melancolia
O título da obra do sociólogo brasileiro Michael Löwy pode ser um apontamento curioso. Ao dizer-nos que o romantismo “representa uma crítica da modernidade, quer dizer, da civilização capitalista moderna, em nome de valores e ideais do passado”, completa que “…é, desde a origem, iluminado pela dupla estrela da revolta e do sol negro da melancolia”. O património de Löwy é fundamental para a compreensão do enigma de um pensamento político novo, do qual é exemplo a sua capacidade para tratar a questão do estado de excepção, presente em Walter Benjamin e de substancial importância nas sociedades modernas.
A modernidade traída, é um sinal preocupante, um aviso para a necessidade urgente de os cidadãos inverterem a situação e terem uma intervenção activa na política.
A forma como o querem e devem fazer é o capítulo seguinte da mudança que urge realizar.
Alfredo Soares-Ferreira é Autor de várias intervenções, comunicações e publicações relacionadas com Cooperação e Educação para o Desenvolvimento, em Portugal, Angola, Cabo-Verde, Espanha, Guiné-Bissau, Itália, Moçambique e Timor-Leste. É Consultor de Projectos Educativos e de Inclusão Social de algumas instituições, nacionais e internacionais. É membro dos Colectivos “Porto Com Norte, Fórum de Cidadania”, “Fórum Manifesto”, “Liberdade e Pensamento Crítico” e “Tanto Mar”. É co-Autor de “Portugal, Revolução, Unidade Socialista” (1977), “Bracarenses na crise académica de 1969” (2019) e “Paranhos em Poesia, Antologia Poética” (2021). É Autor de “Reflexos do Rio Torto” (2014) e “Rio Torto- A Nascente” (2021). É Licenciado em Engenharia de Telecomunicações, pós-graduado em Gestão e Estratégia Empresarial e em Administração Educacional. Actualmente aposentado de funções públicas, foi Engenheiro e Professor em diversos graus de ensino, secundário, profissional e superior.