A intacta fúria do tempo | Henrique Levy
Adormecera e acordara com as mãos entrelaçadas. Assim mitigava a solidão de quem, todos os dias, se dirige a casa, deixando para trás um glorioso destino, nunca encontrado. Na véspera, enquanto escrevia o sumário da lição, levantara a cabeça e fixara, um a um, os olhos dos silenciosos alunos a arrumar livros, cadernos e pastas. A sala de aula era um espaço governado por imortais. Ensinar é ignorar o que se aprendeu. Inspirar coragem. Disparar na direção do que está para chegar. Depois de incendiados os conflitos, a professora dava a aula por terminada, deixando os alunos a resvalar silêncios, na busca de recursos nas notícias recusadas por jornais, mas inscritas nos manuais, como imóveis bordões a sacudir o despertar do percurso das palavras. Aquela manhã, inaugurava o início das longas férias de verão. Quase três áridos meses sem ouvir as vozes dos seus alunos. Não mais poder aproximar acções, não ocorridas, afugentava retos pensamentos, celebrava o esforço do passado a tentar fixar-se no pensamento de imortais desejosos de estabelecer, na ordem do tempo, a hegemonia da História. Hormizinda leccionava o Futuro numa escola de premonições, onde o tempo era uma benesse espectável, à volta de confabulações despojadas de passado e abandonadas pelo presente. O futuro, apesar de ter coisas belas para dizer, é sempre insolente, soberbo, pleno do seu carácter vitorioso, recheado de conselhos, notas à procura de blocos para serem apontadas. Invenções. Achados científicos de quem se descobre em aparentes alegrias por chegar. Este objeto de estudo interessava aos alunos, cansados de matérias a arrastar passados, no flutuante presente, ora naufragado nos pretéritos, ora atirado, à força de ventos, para a sua disciplina preferida o Futuro! A professora lera, durante o ano, excertos de heroicas façanhas versando as mentiras do passado inteligentíssimo. Findas essas lições, os alunos comentavam no pátio, em forma de claustro, as inusitadas considerações sobre o passado, numa aula de Futuro. Não saberia dizer, claramente, como celebrar o futuro, sem vos prender a façanhas passadas, dando-vos a oportunidade de conhecer a verdade esperada nesse tempo que tanto vos encanta. Informara a professora, após ouvir os protestos dos alunos. Era mesmo de encanto que se rodeavam os seus expedientes. Tudo o que não fazemos, guardando para o futuro, nunca será operado! Advertia, insistentemente, a mestra. Certo dia, Hormizinda tirou da mala uma bolsa de seda com areia branca da praia. Despejou a areia sobre a secretária. Com as mãos formou pequenas dunas, dispersou planícies entre elas. Eis o deserto que cerca Agadez. Quantos futuros surgirão, enquanto se aplicarem a contar estes grãos de areia? Questionou. Era o primeiro exercício da aula. Empolgados, os alunos rodearam a secretária da professora e desataram a contagem dos grãos de areia guardados em mãos fechadas, para não se perderem. No fim da aula, todos tinham a mão esquerda contendo alguma areia que a professora despejara sobre a secretária. Exceto os canhotos que seguravam a areia na mão direita. Cada aluno mostrou o desfecho da contagem de futuros, em cada grão de areia agora visível nas mãos abertas. Troquem a areia de mãos, para que cada um se possa certificar, se é certo o número de futuros fechado nas palmas das mãos dos colegas. Sugeriu Hormizinda. O futuro serpenteava pela escuridão do tempo, em que cada aluno dominava a quantidade calculável de areia contida nas mãos dos restantes colegas. Que maravilha! Podemos atirar futuros uns aos outros? Perguntou uma aluna interessadíssima nos estudos do tempo vindouro. Hormizinda anuiu. Cuidado com os olhos! Não se lançam futuros aos olhos de ninguém! Podem cegar! Aconselhou. Graças a ser aclamado grandioso, o futuro senta-se sempre num trono. É sobre essa monarquia hereditária que vos vou falar, nesta e em todas as aulas em que o nosso objeto de estudo se antecipa. Se vos pedir notícias de vossos pais, clamo por futuros ou passados? Quis saber Hormizinda. O silêncio nas palavras caladas pelos alunos foi a resposta considerada acertada pela professora. E num banquete, o futuro é o prelúdio ou o condutor da refeição? Persistiu a mestra. Todos os alunos mastigaram e engoliram pretéritos, concluindo. Se a água adormecer nos copos, deixando descair, nas asas de pássaros, gotículas dominadas pela contínua corrente de um rio, então, nem futuro, nem passado, só o presente se anuncia em ambas as margens desse rio – explicou um aluno. Em vossa mente, a extensão do leito desse curso de água surge com estrondo ou espanto? Interrogou a professora. Sem obter resposta, continuou ensinando. Quem se decidiu por responder espanto, calou futuros. Por outro lado, aqueles que pensaram em estrondo, cultivaram ardentes desejos, desajeitados nos escrúpulos do presente, a avançar veloz sobre a intacta fúria do tempo. Hormizinda obtivera o grau de doutoramento na Universidade de Helsínquia. Era especialista em Embrulhar Futuros Presentes. Seja qual for a causa, é certo ter sido o Futuro, que, se valendo dos atrativos do Presente, triunfara no zelo repetido pelo tempo arquivado no mérito de distinguir a posteridade das coisas vulgares – esclareceu a professora. Entre os gregos era o futuro que presidia à fé, aos ritos religiosos, decidindo sobre oráculos. Também, os egípcios convocavam predições, exerciam dominações sobre os embrutecidos e indómitos futuros. Ao homem, o que melhor lhe suceda vem sempre no fim. A funcionalidade desse futuro descende da intensidade da cólera, ou de afetos estrangulados no passado, impossibilitando de se revelarem, sem futuras perturbações na emoção dos que se encolerizaram, ou apaixonaram.
Os alunos constatavam a ordem do tempo a erguer-se das mãos entrelaçadas da mestra, permitindo fixar presentes, sem perjurar a dádiva de tempos venturos. É o efémero, imerso na ação do tempo, que convoca na memória a queda de paradoxos de todas as instâncias temporais. O passado que por já ter sido, não pode voltar a ser, o presente, como exigência de um tempo, explanado sobre as suposições de encontrar futuros, determina o domínio do tempo de agora! Hormizinda persistia a esclarecer, com ajuda de um gráfico, o temível futuro exposto pelos que, visitando tempos por chegar, se viram impedidos de regressar ao presente, convertido em passado, dando conta das inverdades deparadas ao confrontarem-se com o porvir das densas e definitivas circunstâncias, de um tempo capaz de seduzir todas as verdades, transformando-as em estrépitos da lógica, da ciência e da filosofia. A imperfeição do Homem criou a língua, escudando, nessa entidade, ao contrário do que acontece aos animais, marcas de um tempo sem duração ou idade. Resultando, destes estigmas temporais, a esperança, mas, também, a guerra, o destino, a poesia. Esta última surge como a única forma de colisão com o tempo, suscitando, no privilégio de se poder ocultar, a desolação e a dissolução de todos os tempos conjugados pelo verbo humano. A estas palavras da professora, os alunos, de mentes desordenadas, abjuraram a falsa paz, numa batalha escurecida pela gramática, incapaz de descrever modos e tempo nas ações de um futuro ausente, só, quem sabe, em distantes galáxias, alcantilado. Naquele último dia de aulas, antes das férias de verão, Hormizinda entrara na escola com uma écharpe presa, na gola da blusa, por um mocho de olhos de âmbar. A pregadeira simbolizava o futuro dos dias surgidos sempre nas noites que os antecedem. Os alunos levantaram várias questões relacionadas com o mocho, a gola onde estava preso, a cor dos olhos e o formato das asas, caídas ao longo do corpo. A professora viu-se na obrigação de explicar a razão para os mochos serem, quase sempre, representados descansados sobre um ramo, ao inverso das águias e outras aves, incluído as pombas, cuja representação nos é mostrada, de asas abertas, a indicar voos. Hormizinda explicou, apesar de não fazer parte da matéria do programa de Futuros, que a sabedoria se encontrava em sombras e penumbras surgidas nas noites e não no que é claro e aparentemente não levanta dúvidas aos sentidos. Ainda com as mãos entrelaçadas, adiantou. Voar de asas abertas é exercício bem mais espontâneo de operar, do que levantar voo através do conhecimento convocado por noites de escuridão, em que, do cimo de uma árvore, descobrimos o mundo, por outros olhado num voo a planar, no alto céu. A propósito, a mestra aproveitou para indicar como os animais são anunciadores de futuro. As suas linguagens não se compadecem com o passado, nem com o presente. Afirmou, exemplificando com os cães que, ao latir, anunciam a aproximação de perigo, bem como o canto dos galos a profetiza um futuro dia, ou a calar o pio a mochos e corujas. Antes de dar por terminada a última lição do ano, a professora lembrou que a divindade, referida, durante o ano letivo, com o vocábulo Deus, era construída por uma vasta coleção de futuros, abandonada de passados e desprezada por todos os presentes. Após demorado silêncio, Hormizinda abriu a gaveta da secretária, retirou um livro e abriu-o numa página, marcada com a nota À sombra de Futuros. Sentou-se, pediu atenção e leu uma passagem do livro do profeta Jeremias. Eu sei, Senhor, que não está nas mãos do homem o seu futuro; não compete ao homem dirigir os seus passos. Os alunos ignoraram o idealismo de vaticinadores de precipícios e permaneceram nas músicas e danças das festas prometidas por aquele verão, cujo futuro se anunciava como o uivo dos lobos a derreter icebergues. Desconcertados, arrumaram o passado, subiram bainhas ao presente e, para desolação de Hormizinda, abandonaram a sala. O futuro, em que a professora confiava, chegara. Não surgira do passado, não era consequência de presentes. Antes, um amante ausente, a escutar a eternidade perpétua de um tempo construído pela inexistência de todos os outros tempos.
Henrique Levy
Casa da Mediana
ilha de São Miguel
Henrique Levy, poeta e romancista, é portador de uma identidade com várias pertenças. Cidadão português, nascido em Lisboa, com nacionalidade cabo-verdiana. Viveu em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Reside, por opção, na ilha de São Miguel. É autor de quatro romances: Cisne de África (2009); Praia Lisboa (2010); Maria Bettencourt Diários de Uma Mulher Singular (2019), Segredo da Visita Régia aos Açores (2020). Memórias de Madre Aliviada da Cruz (2021).
É autor de seis livros de poesia, Mãos Navegadas (1999); Intensidades (2001); O silêncio das Almas (2015); Noivos do Mar (2017); O Rapaz do Lilás (2018); Sensinatos (2019). Editou, em co-autoria com Ângela de Almeida, em 2020, o livro de poemas, Estado de Emergência. Poemas do Próximo Livro (2022).
Editou e anotou A Sibylla – Versos Philosophicos, 2020, de Marianna Belmira de Andrade, cuja primeira edição data de 1884.
Assinou vários ensaios literários, publicados na imprensa e em revistas literárias.
Tem poemas e contos dispersos por diferentes Antologias.
Coordenador da Nona Poesia, única editora açoriana dedicada exclusivamente à poesia.