Política

A direita radical contemporânea: um novo perigo para a democracia | Carlos Martins

Nos últimos anos, têm sido frequentes, por parte dos defensores da democracia liberal, as comparações entre os novos partidos de direita dita “populista” que se aproximam do poder e os movimentos e regimes fascistas do entre-guerras. De resto, a ideia de que, de uma maneira ou de outra, estamos a assistir ao regresso do fascismo e à repetição da história é por vezes defendida pelos comentadores mais sérios. Tais comparações são, evidentemente, compreensíveis e, algumas delas, não são, de todo, destituídas de uma certa pertinência. Ainda assim, no âmbito de uma investigação que desenvolvi recentemente, a propósito da ideologia destes partidos de direita, pretendo apresentar uma perspetiva mais subtil a respeito das características específicas deste fenómeno político (aparentemente novo), que tem vindo a pôr em causa os fundamentos da democracia liberal. No fim de contas, é reconhecendo as especificidades de um dado fenómeno que seremos capazes de reconhecer as ameaças e os perigos concretos que ele representa, e ao mesmo tempo enfrentá-lo mais eficazmente. Assim, nos parágrafos seguintes, apresentarei aquelas que, no meu entendimento, são as principais componentes ideológicas daquilo a que chamarei de “direita radical populista”. A reflexão sobre os perigos concretos que esta direita representa, bem como a apresentação das características de outros fenómenos de direita que não se encaixam totalmente no que aqui descrevo, poderão ficar para um texto posterior.

 

Antes de prosseguir, refiro apenas que a questão do “regresso ao fascismo” é mais complexa do que poderia parecer à primeira vista, uma vez que a direita dos nossos dias não é homogénea (como, de resto, também não o era a da época do fascismo) e que, entre os movimentos e partidos que vão chamando a atenção nos nossos dias (onde se incluem, por exemplo, os Identitários), existem alguns que efetivamente podem ser classificados como fascistas, como será o caso do partido grego Aurora Dourada e o movimento italiano Casa Pound. Ainda assim, a maioria destes “novos” partidos de direita enquadram-se num fenómeno diferente do fascismo, com particularidades distintas, não se baseando num culto da violência, do militarismo e do confronto físico, e não almejando transformar radicalmente a sociedade com a criação de uma “nova” elite de “heróis” e guerreiros (características fundamentais da ideologia fascista). Ademais, refiro também que, com base em Cas Mudde (um dos autores que mais me influenciou no meu trabalho), faço uma distinção entre a extrema-direita e a direita radical, uma vez que a primeira tem por objetivo a destruição completa da democracia através de métodos violentos, ao passo que a segunda almeja antes transformá-la por dentro e enfraquecê-la, sem a aniquilar totalmente.1 É precisamente neste segundo fenómeno, o da direita radical, que insiro a maior parte dos “novos” partidos e movimentos de direita, nos quais incluo o Chega português, o Vox espanhol ou o já não tão novo assim Front National francês (que entretanto mudou de designação). 

 

OS ELEMENTOS IDEOLÓGICOS DA DIREITA RADICAL POPULISTA 

 

Novamente com base em Cas Mudde (embora alterando ou aprofundando alguns dos conceitos que este autor apresenta para caraterizar o fenómeno), destrinço três conceitos centrais na ideologia da “direita radical populista”, cada um deles associado a conceitos secundários: o de nacionalismo, autoritarismo e populismo. De seguida, resumirei o que entendo por cada um deles:   

 

Nacionalismo- que remete para a valorização de uma comunidade nacional concebida de modo exclusivista. Na ideologia da direita radical populista, apenas alguns membros pertencem, por direito, à nação, fazendo parte de um “nós” que se distingue de um “eles”, ou seja, dos elementos que alegadamente são estranhos e prejudiciais à comunidade nacional (por exemplo, minorias étnicas, imigrantes ou grupos de pessoas cujos comportamentos, distintos dos dos “cidadãos de bem”, são vistos como perniciosos). Acima de tudo, importa referir que, para a direita radical, a nação deve ser valorizada acima de tudo o resto e que todos os objetivos do seu programa político devem estar submetidos a este. Entre os conceitos secundários associados ao nacionalismo encontramos o de “nativismo” (que remete precisamente para a conceção exclusivista da comunidade nacional e para a ideia de que só os nativos a podem habitar), “islamofobia” (particularmente vincado em algumas variantes da direita radical, como é o caso da francesa, que elegem o muçulmano como seu principal inimigo), e ainda conceitos como os de “anti-cosmopolitismo” e “euroceticismo” (que são uma óbvia consequência da valorização exacerbada da nação). 

 

Autoritarismo- que remete para a valorização dos valores tradicionais da ordem e da hierarquia. Almejando fazer com que o respeito pela autoridade seja restaurado, depois de este ter sido alegadamente posto em causa pelos movimentos progressistas (ou por outras pretensas ameaças), a direita radical pretende combater aquilo que vê como um perigo para os princípios tradicionais da sociedade, que deverão voltar a ser incutidos na comunidade nacional. Entre os movimentos que a direita radical elege como especialmente perigosos e subversivos encontram-se o feminismo e os movimentos LGBT, que por vezes são menosprezados com expressões como “marxismo cultural” ou “movimentos woke”. Entre os conceitos secundários associados ao autoritarismo encontram-se os de “hierarquia” e “virilidade”, uma vez que a direita radical almeja recuperar valores associados ao “masculinismo”, que alegadamente foram postos em causa pelo progressismo.

 

Populismo- que remete para a conceção do “povo” como uma comunidade “pura”, pretensamente dona da verdade, e homogénea, isto é, da qual estão ausentes as clivagens. Assim, para a direita radical, a política é concebida como uma luta entre um povo “puro” e uma elite política “corrupta” que silencia e oprime o “cidadão comum”. Já os líderes da direita radical pretendem apresentar-se como a voz deste pretenso povo, dizendo “aquilo que todos pensam”, mas não são capazes de expressar por receio de serem criticados. Esta conceção do “povo” é, de resto, uma das razões pelas quais a direita radical coloca em causa a democracia liberal, pois, ao ver a comunidade nacional como uma entidade indivisível, é mais propensa a rejeitar o pluralismo e o debate de opiniões (mais sobre isto poderá ser dito numa discussão acerca dos perigos concretos que a direita radical representa). Entre os conceitos secundários associados a este conceito principal encontramos os de “vontade geral”, “luta antissistema”, “anti-elitismo”, “anti-cientificismo” (já que a direita radical tende a ignorar o conhecimento cientifico, valorizando antes uma alegada “sabedoria alternativa” que se torna propícia para a difusão de teorias da conspiração) e mesmo o conceito de “euroceticismo” (se este for concebido como uma luta contra as “elites” opressoras de Bruxelas).

 

Nota

 

1 Ver Cas Mudde, Populist Radical Right Parties in Europe (London: 2017). 

 

Fotografia de Carlos Martins

Carlos Martins é doutorado em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e investiga sobretudo a história do fascismo e outras ideologias de extrema-direita. É autor do livro From Hitler to Codreanu: The Ideology  of Fascist Leaders e, mais recentemente, Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini. Brevemente, publicará um novo livro sobre a direita radical contemporânea.

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