Cultura

Verbetes | Clécio Branco

Boca e lábios

 

I – Uma boca é muito mais do que um órgão de falar e de comer. Os lábios que fazem o conjunto boca antecedem o órgão e emprestam intensidade ao que seria apenas uma mecânica – no dizer de Descartes -. São os lábios que podem confundir, eles entram em planos intensivos quando a mulher morde os lábios, contorna-os com cores vivas, quando umedece de propósito ou quando – num jogo lúdico de variações – deixa entre abertos … seus lábios (Branco – no café).

 

II – Existem meios para dizer da boca e para analisar o conjunto boca-lábios: uma é da física clássica de Newton, onde as partículas atômicas indivisíveis determinariam a boca como máquina e os lábios como suporte mecânico, porta de entrada de uma máquina de comer. A outra forma, muito mais interessante, é da física atual que compreendeu as partículas pré-formadas. Nesse entendimento, os lábios subtraem uma intensidade aos olhos de quem vê. São partículas loucas que desfazem a máquina de comer e trazem aos lábios a loucura de seus gestos, dança sensual de duas metades, bordas de entrada e saída do objeto desejado desmesurado. São os lábios em seus movimentos intencionais, mordidas delicadas, úmidos sob o toque sutil da língua, que nos fazem entrar em indefinidos… prefiro essa metodologia (Branco – no café).

 

III – Ainda falando de partículas infinitesimais, os lábios entram no jogo lúdico da sedução – somos animais que seduzem, não apenas para procriar, mas também para ter prazer. Os lábios são uma arma delicada, em forma de pétalas de flores diversas (máquina de atração de insetos), armadilha da natureza. Eles são meticulosamente usados na arte de atrair suas presas. Devemos à sabedoria de Freud a maior e a mais bela teoria, a libidinização da boca (fase oral) – o conjunto boca-lábios é a primeira área do corpo a ser libidinada. É esta a razão de se gostar tanto do beijo, do tocar os lábios, de chupar, de sugar e de lamber. Está na história da formação humana, ainda na primeira infância, quando os lábios, máquina de tocar, em conjunto com a língua, fazem a máquina de sugar o seio, máquina de produzir leite (Branco – no café com Freud).

 

Beijos

 

I – Os beijos delicados, em toque leves e preguiçosos, onde os lábios deslizam sobre as costas nuas… 

 

Os lábios úmidos na nuca, no canto triangulado entre o lábio superior e o nariz…área de produção de feromônios…

 

Os lábios em seus cantos…beijos simulados de um “não querer”, mas de uma potência devastadora… 

 

Os lábios que passeiam por todo o corpo, fazem os amantes irem lá onde a alma encontra o seu Ser… (Branco – de férias no café).

 

Lentidão

 

I – Existe uma beleza na suavidade dos movimentos lentos… no voo da águia que flana no ar… nas marolas das ondas que desaguam na areia… no espelho d’água ao toque de uma leve brisa… no caminhar do corpo feminino que desliza dentro de um fino tecido de seda …. na música lenta que se arrasta…… no caminhar preguiçoso…. pensem no quão belo é! (Lembranças do filme In the Mud For Love, dirigido por Alexis MAGAND  Branco – no café).

 

II – Gosto de andar lento, com preguiça, gosto de falar com lentidão… de me levantar com preguiça… amo o ócio. 

 

Quero um mundo mais lento onde se possa ouvir o trinar dos pardais… ouvir os sons não-humanos da natureza… quero silêncio para perceber tudo o que o barulho e a pressa me impedem. 

 

Quero pessoas mais preguiçosas comigo, que andem lentamente, que comprem menos… pessoas que descansem o garfo e faca no prato entre cada mastigada ao almoçar…. quero andar entre as gramas dos jardins na lentidão…. dormir com suavidade…amar sem pressa, me deixar ir mansamente até o meu fim (Branco – no café com Sêneca).

 

Flores

 

I – As flores são como em – Alice através do espelho – elas realmente podem falar, mas só o fazem com pessoas com quem valha a pena. 

 

Talvez elas falem mais com as crianças e com os animais. E um pouco diferente, mas falam com os loucos. 

 

Sim, os loucos falam com as flores numa linguagem que elas entendem. As flores e os Deuses entendem o que os loucos dizem.

 

É preciso ficar louco para entender as flores (Branco – no café com

Lewis Carroll).

 

Moralismo

 

I – Dizer, “falso moralismo” é antitético. Existe “verdadeiro moralismo?” 

 

Deve-se concluir que o “verdadeiro moralismo” se funda em base “falsa”. 

 

Ou seja, o verdadeiro moralismo é verdadeiramente falso. 

 

A linguagem tem como regra geral, a imprecisão. No caso do moralismo, pode-se ter uma aproximação da linguagem pelo seu oposto. 

 

O significante – de onde parte o discurso do moralismo – é imoral. O que justifique a exterioridade moralista, por isso, os moralistas são, na maioria, paranoicos. 

 

Eles precisam repetir palavras de ordens, arregimentar seguidores, doutriná-los eliminando as possíveis contradições externas. 

 

Existe um monstro, assustadoramente imoral, vindo à superfície da pele de todo moralista (Branco – no café com Freud). 

 

Ratos

 

I – Não há “ratos” em nossa república; se houver, provavelmente veio de fora – diria convicto, o procurador da república (Branco – no café com Camus).

 

II – Não se combate “ratos” na república por uma questão lógica. São eles que fazem as leis. São os mesmos “ratos” que as interpretam. São as ratazanas que escolhem suas matilhas e seus inimigos de classe para serem julgados – há “ratos” pelos corredores do Palácio. Eles têm rostos de homens, vestem-se como homens, mas são ratos disfarçados de homens (Branco – no café com Camus).

 

III – Vou insistir no tema, na leitura comparada dos ratos em Banksy com a minha visão equivalente aos corruptos de meu país – são ratos insaciáveis. Em Banksy, os ratos evoluíram comendo resto de tudo. Ratos comem lixo hospitalar, resíduos radioativos de pilhas e baterias e qualquer coisa que encontrarem no lixo humano. A ingestão de qualquer coisa fez com que o organismo dos ratos de esgoto ficasse imune a quase tudo que se usa para combatê-los. Por outro lado, os “ratos” da política, desenvolveram imunidade parlamentar que conta com a proteção do judiciário, da polícia, da mídia e do povo que, cego como estão, são roubados por aqueles a quem se submetem. Nos dois casos, não têm solução fácil, não se extermina nem um nem outro (Branco – no café com Banksy).

 

Árvores 

 

As árvores são guardiães de nossas vidas. Não que seja esse seu propósito. Elas mesmas nem propósito têm. 

 

Nós tomamos as sombras das árvores como se donos fôssemos. 

 

Igualmente tomamos os seus frutos, o seu frescor, seu verdejar. 

 

Tomamos as árvores como madeira. Elas, inocentes, seguram os ventos, colhem as chuvas, conservam a umidade, equilibram o oxigênio que respiramos.

 

Pintamos as árvores, mas é o nome dos pintores que se eternizam, são eles que se projetam como artistas. Elas ficam como meios, silentes, expostas, vulneráveis.

 

Os pássaros moram nas árvores, se aninham em longas discussões ao ocaso do sol. 

 

Tantas vidas se encontram em árvores, umas se multiplicam: formigas, cupins, tantos insetos. Outras, vêm para uma estação, cantam, procriam e se vão sem despedida.

 

Delas se fez poemas, músicas, filmes. Seus troncos servem de tábuas de mensagens, de amores, ódios, paixões frias, corações apaixonados…

 

Por que cortamos esses indivíduos de longas vidas, de sentidos infindos, sem piedade ou reflexão?

 

Nem sabemos se elas choram, se deixam filhos órfãos além dos pássaros que perdem seus lares entre as folhagens …. 

 

Sabemos pouco sobre as folhas, muito menos ainda sobre as árvores. 

 

Dizemos muito sobre elas, mas esquecemos de ouvir o que elas teriam a nos dizer (Branco – no café com Stefano Mancuso).

 

Favela

 


I – Quando a favela cresce no meio da burguesia, estabelece-se uma fusão necessária, uma verdade inevitável e paradoxal: a favela desce para servir ao burguês que a odeia por manchar seu mapa urbano. Como em Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, a negra entra na casa grande para cuidar dos afazeres domésticos da Casa Grande. A Casa Grande depende da senzala necessariamente, numa relação de amor e ódio, para alimentar e cuidar dos filhos dos seus senhores (Branco – no café com Gilberto Freyre).

 

Cidade

 

I – Percebi nesses anos, que a cidade se desenvolveu em uma direção, não cresceu, não evoluiu. A cidade apenas se desenvolveu em torno de um eixo central. A catedral continua como pivô. Depois, o comércio entremeado de ruas e vielas. As casas de saúde, o hospital e, nos fundos de tudo o cemitério que cresceu junto com a população. Não há nada mais justo na natureza do que fazer nascer e fazer perecer tudo que nasceu um dia. Daí, se percebe o sentido único da eternidade. Só é eterno aquilo que impõe mudanças. Ou seja, eterno é o tempo que faz nascer faz demolir tudo (Branco no café – relendo Simone de Beauvoir).

 

Fotografia de Clécio Branco

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.

 

 

 

 



Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
1
Sem certezas
0

Os comentários estão fechados.

Próximo Artigo:

0 %