Uivo em surdina
Era uma noite de breu sem luar, envolta no melhor nevoeiro paulistano, sem a menor possibilidade de estrelas. A única coisa a fazer era ficar em casa, ouvindo os uivos lancinantes de um trompete.
Miles Davis na vitrola, sem parar. Como em outras noites, outras circunstâncias, outras cidades – Lisboa ou Paris, Porto ou Milão, Bruxelas ou Rio de Janeiro, Londres ou Salvador da Bahia. O tempo todo, a mesma música: My funny Valentine. Sim, uma velha e terna e melosa canção americana. Isso, claro, antes de Miles Davis tocá-la, reinventá-la, como se invertesse a letra original, “não, você não me faz sorrir”, como se revolvesse suas dores mais fundas, para enlouquecer o mundo – para fazer a noite doer.
Pesada noite do pesadíssimo ano de 1970. Imaginou aquela música num filme, abafando os gritos dos torturados. São Paulo (eis a cidade) também pesava. Foi aí que ele disse:
– Preste atenção no tempo que ele segura a nota. Que fôlego! É impressionante.
E ela:
– Parece um cão uivando para a Lua.
Ele:
– Ou um boi berrando para o Sol.
– Mas é de noite – ela insistiu. – Só pode ser um cão uivando para a Lua.
Podia ser tudo isso, ou nada disso, ou até, talvez, uma jam session a um luar inexistente. E era apenas uma fase Miles Davis, o que foi capaz de entrar em todas e sair de todas, indo muito além do arco-íris, num planeta chamado Jazz. Não importava o que tocava. Mas o que ele estava tocando. No seu trompete, Miles Davis parecia um compositor sinfônico.
Miles Davis! Todos os trompetes havidos e a haver. Ouvi-lo é ficar com a impressão de que ele reinventou um instrumento – e, de uma certa maneira, o próprio jazz –, e que a história do trompete passou a ser contada assim: antes e depois dele.
Sua história e importância estão em um livro, vídeos, nos arquivos dos jornais e revistas de todo o mundo. Então, para que mais estas linhas? Para dizer que ele contribuiu para a efervescência artística de um tempo que acabou chegando ao fim como um uivo de surdina.
O escritor brasileiro Antônio Torres (Bahia, 1940) é romancista, contista e cronista, autor de 17 livros, entre os quais se destaca a trilogia formada por “Essa Terra”, “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”, publicada em Portugal pela Editora Teodolito. Sua obra tem conquistado inúmeros prêmios no Brasil e traduções em vários países. Membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira fundada por Machado de Assis, Antônio Torres é também sócio correspondente lusófono da Academia de Ciências de Lisboa.
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