Cultura

Três poemas de Paisagens Interiores, de Décio Torres Cruz – Resenha: Paisagens Líricas, de Aleilton Fonseca

Resenha: Paisagens Líricas, de  Aleilton Fonseca

Paisagens Interiores, Décio Torres Cruz. Ed. Patuá.

 

 

 

Aleilton Fonseca

Paisagens interiores reúne uma poesia de tonalidade plástica e musical. Décio Torres Cruz revela-se um poeta consumado, cuja experiência e intimidade com as palavras modelam a sua dicção de forma densa e original. O título demonstra a consciência do autor acerca dos temas e do material que modela e transfigura. A sua memória não é constituída apenas dos fatos, mas também das paisagens que os emolduram como entorno e matéria. Sua poesia é uma entidade que se constitui no mundo das ideias, da linguagem, das formas, das epifanias. Líricos, narrativos ou teóricos, seus poemas não são meras descrições do real, mas sim recriações subjetivas, como traços de uma pintura poética e musical.

 

Organizado em duas partituras, o poeta executa representações de “Paisagens diurnas” na primeira, com uma plasticidade que configura cada poema como uma pintura plasmada em variações de uma mesma temática. Já na segunda, “Paisagens noturnas”, desdobra-se como uma sonata, com três movimentos cadenciados: prelúdio, intermezzo, finale. Um solista, intérprete expressionista e plural, com o sopro de um engenho que transforma as vivências e as memórias em imagens idílicas, Décio rege um denso e suave concerto de imagens e melodias metafóricas, com suas tonalidades plásticas e sonoras. Apresenta um mundo vivido, observado e imaginado, reinaugurando o seu modo de ver, sentir e viver a experiência de estar no mundo.  

 

Em “Tom de despedida”, encontramos uma potente chave de leitura dessa poesia, em sua concepção íntima e existencial: “Tenta-me um raio de sol / e penetra as janelas de minha alma, / conduz-me por trilhas da imaginação / em alamedas de eterna calma.” 

 

Profundo leitor e conhecedor das poéticas ocidentais, sua poesia nasce das fontes da modernidade lírica, sobretudo das poéticas de expressão estrangeira. O autor contribui para adensar os enlaces de nosso lirismo contemporâneo, com o qual mantém um diálogo criativo e original.

 

Ao ler/ver/ouvir estes poemas, o leitor terá a sua recompensa: é uma poesia que nos transporta àquelas paisagens interiores que todos recordamos e trazemos de volta ao coração.

 

***

Três Poemas 

 

Décio Torres

 

Rituais 

 

Marie olha para o espelho e vê um fantasma

Não, não é ela por trás dos olhos azuis

Alguém se apoderou de seu corpo e plasma

e a vestiu com aqueles segredos e lágrimas de blues.

 

Ela maquia seu rosto para esconder seus medos

e olha para o lugar onde um coração costumava bater enredos

A pobre coisa sofredora não está mais sendo incomodada em vão.

Ela se tornou a rainha de suas emoções traquinas 

Livre, finalmente, de histórias de amor de segunda mão

repetidas todos os dias em “queridas” colunas femininas.

 

Lá vai ela, à procura das alegrias das noites marinhas

cansada de medir-se nos olhos de outra pessoa.

Depois de umas cervejas, conversas vazias e mentirinhas

a mesmice do bar se projeta na luz e nas paredes ressoa.

 

E cansada ela retorna, ainda faltando algo, como uma cicatriz

Entra em seu quarto e liga a TV

“Como ficaria linda no vestido daquela atriz!”

Queria ser aquela mulher se ainda pudesse ela mesma ser

mas a impossibilidade das realidades no humor do modo subjuntivo

a deixa mal humorada, e remotamente controlada, sem se conter

apaga a imagem na tela num gesto compulsivo.

 

Flashes de anos adolescentes invadem seus pensamentos sobre mundos de simulacros.

Ela tinha se esquecido das aparências de outrora 

Nenhuma mudança perceptível ocorreu em sua alma ou em seus ritos sacros

Só o seu corpo se recusa a notar o fato e a nova aurora.

 

Ela cai num sono de nostalgia secular 

e sonha com um reino à beira-mar.

 

 

***

 

Paisagem Evanescente

 

Para meu irmão Raimundo.

 

E lá estávamos nós, eu e o meu irmão,

em meio a ruínas de nossa infância.

 

Não havia mais a casa nos alicerces.

Apenas a árvore que nosso pai plantara

e o vento silvando pelas folhas eram os mesmos,

e não eram os mesmos.

 

“Venham brincar comigo, meus meninos!”

A árvore parecia sussurrar por suas beiras,

mas estávamos grandes demais para seus galhos

e tínhamos desaprendido nossas brincadeiras.

 

Descemos até o rio onde costumávamos nadar.

“Cadê a colina que subíamos antes de chegar ao rio?”

Perguntei sem me dar conta que a colina era o montinho 

embaixo dos meus pés cansados de andar.

 

Tirei fotos e me lembrei de quando via as coisas pela primeira vez

através de olhos pequeninos que ampliavam paisagens. 

O rio era agora um riachinho seco,

e se recusava a caber no tamanho da minha memória, 

transformando as minhas lembranças em visagens.

 

Eu disse: “Engraçado como as coisas mudam!”

“Ou somos nós?”, respondeu meu irmão.

Vi um arco-íris nos cristais que escorriam pelo seu rosto

e alimentavam a sede daquele chão

enquanto ele fitava um horizonte igualmente esturricado.

 

A estrada se encompridou,

o silêncio pousou sobre nossos ombros,

e cabisbaixos percorremos o caminho de volta à cidade.

 

As fotos que tirei nunca revelaram, naquela lente,

os retratos da minha mente.

 

***

 

O Outro

 

A Ítalo Calvino.

 

Se numa noite de inverno

teu olhar ficar grudado a uma máquina 

destruidora do silêncio

em um espaço sem sombras

que entorna música,

 

Se num dia de verão

a parede da escuridão te fizer fronteira

revelando um “você” mais estranho que o seu

como um viajante que perdeu uma conexão

e jaz inerte no cemitério das horas perdidas,

 

Se numa noite estrelada

ansiares por nadar contra a corrente do tempo

fingindo apagar as consequências de certos momentos

tentando recuperar uma condição inicial

que te levou a partir,

 

Descobrirás

uma torrente de novos acontecimentos

quanto mais te afastares do momento zero,

pois não conseguimos amar ou pensar,

exceto em fragmentos de tempo

que ao serem atirados ao vento

percorrem sua própria trajetória

e imediatamente desaparecem.

 

Se um dia você 

se encontrar perdido em uma terra estranha

onde uma estação de trem é o único ponto de contato

com o resto do mundo

saberá que você 

parou os relógios

e reverteu o tempo.

 

Então,

e somente então,

serás capaz de encontrar o outro você deixado para trás

Ele virá com um sorriso matreiro sobre o rosto

te fará um aceno

e passará.

 

Pela primeira vez 

em tua vida fugidia

te sentirás sozinho

enquanto a imagem daquilo que uma vez te constituiu

vai embora, fugindo de ti.

 

Se numa tarde de outono você chorar,

é a lembrança do você que ficou para trás

em uma cidade invisível. 

 

Décio Torres Cruz é escritor brasileiro, crítico literário, poeta, professor universitário e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Ufba. Sob o patrocínio da Fulbright, obteve seu Ph.D. em Literatura Comparada na State University of New York em Buffalo, EUA. Cursou Mestrado em Teoria da Literatura, Especialização em Tradução e Bacharelado em Letras/Língua Estrangeira na Universidade Federal da Bahia. Fez pesquisa pós-doutoral sobre as adaptações de Shakespeare para o cinema na Leeds Metropolitan University, Inglaterra, patrocinado pelo CNPq. 

O autor escreveu vários livros teóricos, sendo que dois deles foram publicados em inglês na Inglaterra, Estados Unidos e Holanda e se encontram espalhados em diversas livrarias e bibliotecas dos cinco continentes: The Cinematic Novel and Postmodern Pop Fiction: The Case of Manuel Puig [O romance cinemático e a ficção pop pós-moderna: o caso de Manuel Puig] (John Benjamins, 2019) foi selecionado para fazer parte da série da Fédération Internationale des Langues et Littératures Modernes (FILLM) da Unesco; e Postmodern Metanarratives: Blade Runner and literature in the age of image [Metanarrativas pós-modernas: Blade Runner  e literatura na era da imagem] (Palgrave Macmillan, 2014) é citado em alguns artigos da Wikipedia em inglês e em alemão e foi adotado como leitura básica de um curso de escrita de roteiro no País de Gales. No Brasil, publicou Literatura (pós-colonial) caribenha de língua inglesa (Edufba, 2016) e O pop: literatura, mídia & outras artes (Quarteto/Uneb, 2003; 2013) que são usados em programas de graduação e pós-graduação de algumas universidades. 

Além desses, publicou vários livros didáticos de inglês que também foram adotados em diversas universidades brasileiras e como referência para concursos públicos: English Online: Inglês instrumental para informática (Disal, 2013); Idea Factory: 100 Games and Fun Activities for your English Classes (Edufba, 2012; 2013); Inglês para Administração e Economia (Disal, 2007); Inglês para Turismo e Hotelaria (Disal, 2005); e Inglês.com.textos para informática (Disal, 2003). 

Publicou, ainda, poemas no jornal The Buffalo News (EUA, 1995) e nas coletâneas A nova poesia brasileira (Shogun, 1985) e Valores literários do Brasil II (Ed. Brasília, 1986), além de contos, traduções e diversos artigos e capítulos de livros em português e em inglês nas áreas de cinema e literatura, estudos culturais, tradução, linguística aplicada e ensino.  O autor está produzindo um livro de contos intitulado Histórias roubadas, com previsão de lançamento para o próximo ano. Paisagens interiores já está com a tradução para o italiano em andamento e será publicado na Itália pela editora WE.

Aleilton Fonseca (1959), escritor brasileiro, nasceu em Firmino Alves-Bahia, cresceu em Ilhéus, e reside em Salvador-Bahia. Publicou 22 livros, entre conto, romance, poesia e ensaio, alguns no exterior. Doutor em Letras pela USP, é professor de literatura da UEFS, em Feira de Santana, Bahia. Participou do 28º Festival Internacional de Poesia (Quebec/Canadá, 2012) e do 12º Festival Internacional de Poesia de Buenos Aires (Argentina, 2017). Publicou em diversas revistas brasileiras e estrangeiras. Tem trabalhos traduzidos para francês, espanhol, inglês, italiano, neerlandês e alemão. Suas publicações mais recentes são: Un río em los ojos (Tradução de Alain Saint-Saëns, USA, 2013), Il sapore delle nuvole (Tradução de Antonella Rita Roscilli, 2015). O pêndulo de Euclides (romance, 2ª edição, 2017), La guerre de Canudos: Une tragédie au coeur du sertão (Tradução de Dominique Stoenesco, França, 2017), O desterro dos mortos (contos, 5ª edição, 2018) e A terra em pandemia (poesia, 2020), já em italiano, La Terra in Pandemia (Edizione WE, 2021, tradução de Simona Adivincula).

 

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